11 perguntas / 11 respostas sobre a nova crise mundial da dívida e a responsabilidade de a reduzir radicalmente

Primeira parte (1/5): a dívida é um instrumento de dominação

11 de Dezembro de 2020 por Eric Toussaint , Olivier Bonfond , Mats Lucia Bayer


Introdução: A crise actual é sem dúvida a mais grave desde 1929. Trata-se de uma crise multidimensional do capitalismo: sanitária, econômica, social, ecológica, climática, democrática.

A crise sanitária em curso já teve e vai ter consequências socioeconômicas dramáticas e um enorme impacto nas finanças e no endividamento público, tanto no Norte como no Sul Global. Este estudo vai se concentrar na dimensão da dívida pública. Mas recordemos ainda assim dois factos importantes.

Primeiro, segundo as estimativas publicadas na revista Science em 2018, existe mais de um milhão de vírus desconhecidos alojados nos mamíferos e nas aves, dos quais 540.000 a 850.000 «teriam a capacidade de infectar os seres humanos». Não há mistério nas causas da pandemia de covid-19, ou de qualquer outra pandemia moderna. Os riscos de contaminação dos seres humanos por esses vírus são exponenciados pela lógica capitalista neoliberal (desflorestação massiva, expansão da agricultura intensiva e química, agricultura industrial, comércio internacional excessivo, etc.). Esta lógica destrói a natureza e intensifica os contactos entre animais selvagens e domésticos, potencialmente portadores de vírus patogênicos, e os seres humanos. 70 % das novas doenças (ébola, zica) e «quase todas as pandemias conhecidas» (gripe, sida, covid-19) provêm de patogênicos animais.

Segundo, a situação dramática que vivemos ao nível sanitário é consequência directa das desastrosas políticas de austeridade, que enfraqueceram os sistemas de saúde pública, os serviços públicos e a segurança social. Enquanto no Sul o FMI impõe há décadas cortes drásticos nas despesas de saúde, na Europa, entre 2011 e 2018, a Comissão Europeia recomendou por 63 vezes aos estados-membros da UE que privatizassem certos sectores da saúde ou reduzissem as despesas públicas em matéria de saúde.

Para resolver esta crise sanitária e impedir que novas pandemias mortais e devastadoras se multipliquem nos próximos anos, é forçoso romper com a lógica capitalista e construir outra sociedade, fundada noutros valores que não sejam o lucro puro e simples, o crescimento econômico, a competição, o egoísmo e a propriedade privada dos grandes meios de produção.

Ora, como veremos neste estudo, a dívida é uma das principais armas que permitem ao capitalismo manter-se e desenvolver-se.



Resumo

Embora nem toda a dívida seja ruim em si mesma (pergunta 1), a dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. constitui há dois séculos um mecanismo de transferência de riquezas a favor dos detentores de capitais, por um lado, e um instrumento de dominação política e econômica, por outro (perguntas 2 e 3).

No Sul, como aconteceu durante a crise de 1982, a armadilha da dívida está de novo em vias de se fechar. Segundo o Banco Mundial, 19 países encontram-se em incumprimento de pagamento parcial ou total e 28 países estão sobre-endividados. Tendo em conta que a crise actual destruiu em poucos meses cerca de 300 milhões de empregos formais (dados da OIT), mais 100 milhões de pessoas vão cair na pobreza extrema e mais 250 milhões de pessoas vão ficar em situação de insegurança alimentar aguda, e os países do Sul continuam a consagrar cinco vezes mais recursos ao serviço da dívida que às despesas de saúde, a anulação imediata e incondicional da dívida dos países do Sul é uma questão central. Apesar de alguns discursos oficiais irem nesse sentido, a resposta efectiva dada pelo G20 e pelos credores consiste, mais uma vez, em atirar poeira para os olhos (perguntas 7 e 8).

Na Europa, os governos estão em vias de repetir o péssimo cenário de 2008. Depois de terem suspendido provisoriamente as regras orçamentais, os governos europeus emprestam milhares de milhões de euros aos mercados financeiros, que os encaminham prioritariamente para salvar as grandes empresas, os bancos e os accionistas. Se os movimentos sociais não actuarem, existe um grande risco de rapidamente os governos liberais voltarem a servir-nos o TINA (there is no alternative) e imporem aos cidadãos/ãs, em nome de uma dívida pública demasiado elevada (aumento de 20 % do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
num só ano, em 2020), novas políticas antissociais: novos ataques aos direitos sociais, à segurança social, redução dos direitos democráticos, novas privatizações nos sectores estratégicos, etc. As medidas actualmente tomadas (planos de relançamento nacional, planos de relançamento da Comissão Europeia, plano de urgência do BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
) são totalmente insuficientes e, contrariamente ao que certos economistas afirmam, nenhuma mudança na orientação neoliberal está na ordem do dia (perguntas 9 e 10).

Este cenário desastroso não é uma inevitabilidade. É possível dar a volta por cima e sair da crise; existem soluções credíveis para reduzir radicalmente a dívida e mudar de rumo (pergunta 11).

Apoiando-se na lei, que prevê que determinados tipos de dívida não têm de ser reembolsados (pergunta 4), e buscando inspiração em experiências concretas de países que suspenderam o pagamento ou anularam a dívida pública (pergunta 5), os povos e os governos progressistas, tanto no Sul como no Norte, devem tomar em mãos esta questão e pôr em causa o pagamento da dívida pública. Trata-se também de extrair lições da forma como o governo Syriza na Grécia enfrentou o problema da dívida, a fim de evitar uma nova capitulação face aos credores, caso um governo progressista chegue ao poder (pergunta 6).
Índice

Parte 1: a dívida é um instrumento de dominação
1. Serão todas as dívidas ruins em si mesmas?
2. De que forma a dívida é um mecanismo de transferência de riqueza?
3. De que forma a dívida é um instrumento de dominação política e econômica?

Parte 2: Não, uma dívida nem sempre deve ser reembolsada
4. Quais são as dívidas que não devem ser reembolsadas?
5. Quais são os exemplos históricos de países que suspenderam ou anularam as dívidas?
6. Que nos ensina a experiência grega em matéria de dívida?

Parte 3: A dívida pública no Sul: a armadilha volta a fechar-se
7. Por que a armadilha da dívida volta a atacar nos países do Sul?
8. Qual a resposta dada pelo G20 e pelos credores para gerir a crise do Sul?

Parte 4: A dívida pública no Norte: nenhuma ruptura com o neoliberalismo em curso
9. Qual é a situação na Europa?
10. Quais são as respostas dos estados, do BCE e da União Europeia?

Parte 5: Existem alternativas!
11. Que soluções devem ser avançadas para reduzir radicalmente a dívida

Parte 1: A dívida é um instrumento de dominação

Ainda que nem todas as dívidas sejam ruins em si mesmas, a realidade é que a dívida constitui há mais de dois séculos um mecanismo de transferência da riqueza criada pelos trabalhadores para as mãos dos detentores de capitais, por um lado, e um instrumento de dominação política e econômica, por outro.

 1. Serão todas as dívidas ruins em si mesmas?

O CADTM, rede internacional existente há mais de 30 anos, milita ao nível local e internacional para concretizar dois objectivos: a anulação imediata e incondicional da dívida dos países do Sul e a anulação de todas as dívidas ilegítimas em todo o mundo.

Para o CADTM a anulação da dívida não constitui um fim em si mesmo. Trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir a satisfação dos direitos humanos. Portanto é necessário ir além da anulação da dívida pública, caso a Humanidade deseje realizar a justiça social e respeitar o meio ambiente.

Reivindicar a anulação das dívidas não significa recusar toda e qualquer forma de endividamento público. Embora seja preferível financiar o desenvolvimento humano por meio de recursos que não geram endividamento, a dívida pública pode constituir um instrumento de financiamento para os poderes públicos, na condição de se restringir ao domínio dos projectos sociais ou ecológicos de grande amplitude. Por exemplo:

  • investir na saúde e nos serviços públicos;
  • substituir os combustíveis fósseis e a energia nuclear por energias renováveis que respeitem o ambiente;
  • financiar a reconversão da agricultura actual;
  • reduzir radicalmente o transporte rodoviário e aéreo, em proveito de transportes colectivos e vias férreas.

Por conseguinte, para dar a volta por cima das crises econômicas, sociais, sanitárias e climáticas em curso, pode ser necessário recorrer ao endividamento público. Mas nesse caso é fundamental que a política de empréstimos seja transparente, que seja sujeita ao controlo dos cidadãos e que vise servir os interesses colectivos. A quem pedir emprestado? Em que condições? Para fazer o quê? Quais são as alternativas ao endividamento? … Eis algumas das perguntas a fazer. Adiante voltaremos a elas.

 2. De que forma a dívida é um mecanismo de transferência de riqueza?

A dívida constitui um poderoso mecanismo de transferência de riqueza para os detentores de capitais, nomeadamente através do pagamento de juros, que sugam uma parte considerável da riqueza produzida pelos cidadãos/ãs. Este mecanismo está desenhado para se perpetuar eternamente, em particular por meio do roll over (rolagem da dívida) ou refinancing, ou seja, o refinanciamento: uma técnica que permite aos estados reembolsar antigos empréstimos recorrendo a novos empréstimos no mesmo montante. O refinanciamento, praticado pelos estados em todo o mundo, é muito conveniente para os bancos. Por um lado, permite-lhes continuar a receber indefinidamente os juros da dívida. Por outro lado, permite-lhes manter a pressão sobre os estados: se fossem decretadas políticas desfavoráveis aos bancos, estes poderiam aumentar a carga da dívida (subindo a taxa de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. ) ou, pior ainda, poderiam decidir acabar com o refinanciamento, a fim de estrangular financeiramente o país.

Este mecanismo de drenagem das riquezas desviou recursos consideráveis que poderiam ter sido utilizados em políticas socialmente úteis e ecologicamente sustentáveis. No decurso do período 1980-2008, os países do Sul transferiram 4.400 milhares de milhões de dólares [pt-br: 4,4 trilhões; pt-pt: 4,4 biliões] a título de reembolso do serviço da dívida. O montante de transferência é igualmente considerável nos países do Norte: entre 2010 e 2019, os 19 países da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. pagaram aos grandes bancos 2,496 biliões de euros de juros da dívida, ou seja uma média de 250 mil milhões de euros por ano (fonte: Eurostat).

«A dívida pública – por outras palavras, a alienação do Estado – é uma marca distintiva da era capitalista. A dívida pública opera como um dos agentes mais enérgicos de acumulação primitiva.» Karl Marx (1867), em O Capital, livro I, cap. 31.

 3. De que forma a dívida é um instrumento de dominação política e econômica?

O endividamento dos países latino-americanos como meio de impor a livre troca e a subordinação

A partir da década de 1820, os banqueiros europeus, sobretudo os britânicos, procuraram activamente endividar os novos estados independentes. Estes estados precisavam de se endividar, nomeadamente para financiarem os esforços de guerra e reforçarem a independência. Mas o recurso ao endividamento externo revelou-se desastroso, nomeadamente porque os empréstimos foram contraídos em condições leoninas (taxas de juro excessivas, comissões abusivas). No livro «O Sistema da Dívida – História da Dívida Soberana Dívida soberana Dívida de um Estado ou garantida por um Estado. e Seu Repúdio», Éric Toussaint mostra como, por um título de dívida emitido no valor de 100 libras, o país devedor apenas recebia 65 libras; o resto revertia para o banco sob a forma de comissões. O estado devedor tinha no entanto de pagar taxas que iam até 6 %, calculados, claro está, sobre uma dívida de 100, que devia ser integralmente reembolsada. Rapidamente os países devedores entraram num círculo vicioso de endividamento.

Em 1825 estoura a primeira grande crise mundial do capitalismo, resultante do estouro da bolha especulativa Bolha especulativa A bolha económica, bolha financeira ou bolha especulativa forma-se quando o nível dos preços de troca num mercado (mercado de activos financeiros, mercado de câmbios, mercado imobiliário, mercado de matérias-primas, etc.) se estabelece muito acima do valor financeiro intrínseco (ou fundamental) dos bens ou activos trocados. Neste tipo de situação, os preços afastam-se da valorização económica habitual, com base numa crença manifestada pelos compradores. na Bolsa de Londres. Os banqueiros europeus deixam então de conceder empréstimos (fim do roll-over) e muito rapidamente todos os países latino-americanos independentes vêem-se financeiramente estrangulados (suspensão total ou parcial do pagamento). As potências ocidentais, em particular a Grã-Bretanha, utilizam então o endividamento como meio de pressão e subordinação, para imporem políticas favoráveis aos seus interesses, em particular: a livre troca (acordos que abriram a economia dos novos estados às mercadorias e aos investimentos britânicos, enquanto a Grã-Bretanha continuava a proteger a sua indústria e o seu comércio); empréstimos «ligados» (obrigação dos estados de utilizarem o dinheiro dos empréstimos para comprarem mercadorias inglesas, de forma que o dinheiro regressasse directamente a Inglaterra) e privatizações (em 1825, Simón Bolívar, presidente da Grande Colômbia, paga a dívida cedendo uma parte das minas do Peru).

George Canning, um dos principais políticos britânicos da época, escreveu em 1824: «O negócio está no papo. A América Latina é livre e, se nós não fizermos barbaridades nos negócios, é inglesa.» Treze anos mais tarde, Woodbine Parish, cônsul inglês na Argentina, escreve assim ao falar de um gaúcho da pampa argentina: «Atentem em todas as peças do seu vestuário, examinem tudo o que o rodeia, e verão que, exceptuando os objectos de couro, tudo é inglês. Se a mulher dele vestir uma saia, há 99 por cento de hipóteses de ter sido fabricada em Manchester. O caldeirão ou a marmita onde ela cozinha, o prato de faiança onde come, a faca, as esporas, o freio do cavalo o poncho que o cobre, tudo veio de Inglaterra.»

Depois de se libertarem do jugo colonial da Espanha e de Portugal, os estados da América Latina caíram num novo ciclo de dependência, subordinação e espoliação, guiado pelos interesses do grande capital britânico e francês.

«Os empréstimos constituem para os velhos países capitalistas o meio mais seguro de tutelar os novos países e de exercer pressão sobre as suas políticas externa, aduaneira e comercial.» Rosa Luxemburgo (1913)


O endividamento em África e noutros países do Sul nas décadas de 1960-1970 seguiu exactamente os mesmos processos, com os mesmos objectivos

A dívida dos países africanos (como a de outros países do Sul) aumentou fortemente no decurso dos anos de 1960 e 1970, por diversas razões.

Comecemos por relembrar que em diversos casos as dívidas contraídas pelas potências coloniais durante a colonização, e que portanto serviram para pilhar os recursos desses países e oprimir os respectivos povos, foram legadas aos novos estados africanos independentes, o que é absolutamente odioso e contrário ao direito internacional.

O Banco Mundial e o FMI emprestaram massivamente para servir os interesses econômicos das potências, fosse para impor um modelo de desenvolvimento baseado na exportação dos produtos do subsolo (petróleo, gás, minérios) e dos produtos agrícolas (chá, cacau, banana, café), enquanto os países europeus podiam transformar esses produtos e embolsar enormes mais-valias, fosse para financiar megaprojectos destinados a servirem os interesses das potências ocidentais, como, por exemplo, enormes barragens hidroeléctricas que permitiam extrair os minérios (cobre e alumínio) do subsolo e exportá-los para o mercado mundial. Aquelas duas instituições também concederem empréstimos por razões geoestratégicas, a fim de manter os países na esfera capitalista.

«Em muitos casos, os empréstimos eram destinados a corromper os governos durante a Guerra Fria. O problema não estava em saber se o dinheiro favorecia o bem-estar do país, mas se conduzia a uma situação estável, dadas as realidades geopolíticas mundiais.» Joseph E. Stiglitz, in «L’Autre mondialisation», Arte, 7-03-2000

Os governos do Norte também concederam empréstimos «ligados»: o dinheiro recebido tinha de servir obrigatoriamente para comprar provisões, mercadorias, equipamentos e tecnologias aos países que concediam os empréstimos.

Por seu lado, os banqueiros privados estavam interessados em emprestar dinheiro aos países que tinham importantes recursos em matérias-primas, porque mesmo que esses países um dia tivessem dificuldades em reembolsar, essas riquezas permitiam duma forma ou doutra recuperar o dinheiro.

Acrescentemos que na maioria dos casos os governos do Sul, em vez de se oporem a este mecanismo de submissão do seu país e do seu povo, preferiram meter ao bolso as comissões e conluiarem-se com as classes dominantes locais, que tinham (e continuam a ter) interesse em perpetuar o mecanismo da dívida.

Tanto no caso dos países da América Latina ao longo do século 19, como no caso de todos os países do Sul na segunda metade do século 20, a dívida foi utilizada pelas classes dirigentes do Norte para substituir o colonialismo por um neocolonialismo, a fim de manter a sua dominação sobre as economias dos povos do Sul.

No seu livro «As Confissões de Um Assassino Econômico» (Cultrix, 2005), John Perkins resume perfeitamente a situação: «Uma vez que tínhamos endividado os estados e que eles eram incapazes de reembolsar a dívida, podíamos pressioná-los para venderem o petróleo às nossas companhias a preços irrisórios, ou para votarem a nosso favor e apoiarem a nossa política nas sessões das Nações Unidas, ou ainda para nos autorizarem a construir bases militares no seu território. Esse tipo de coisas. E por vezes, quando não conseguíamos corromper os presidentes ou obrigá-los a aceitarem empréstimos, passávamos a bola a assassinos contratados que derrubavam os governos ou assassinavam os seus dirigentes.»


A crise mundial da dívida de 1982: uma arma para impor o neoliberalismo puro e a austeridade a mais de 100 países do Sul

No período de 1960-1980, a dívida dos PED (países em desenvolvimento), fortemente incitados a endividarem-se, aumentou 12 vezes: passou de 50 para 600 mil milhões de dólares. Durante esse período os países do Sul conseguiram de maneira geral reembolsar as suas dívidas, graças aos recursos obtidos com a exportação das matérias-primas. Mas a partir de 1978 começa a derrocada geral, devido essencialmente a duas razões:

  • aumento pronunciado das taxas de juro (quadruplicou, passando de 3 para 12 %); de um dia para o outro, os países do Sul tiveram de reembolsar muito mais juros da dívida;
  • queda do preço das matérias-primas.

A combinação destes dois factores estrangulou financeiramente os países do Sul e em 1982 a crise estalou: mais de uma dezena de países declararam-se em incumprimento de pagamento.

O FMI entra então massivamente em campo, com uma lógica assaz simples: em troca dos empréstimos de urgência, impõe aos «beneficiários» a aplicação de políticas econômicas neoliberais: austeridade orçamental (despedimentos em massa de funcionários públicos, congelamento dos salários, cortes drásticos nas despesas de saúde e educação), privatização dos recursos naturais e dos sectores estratégicos e liberalização da economia (abertura dos mercados às multinacionais do Norte).

O balanço destas políticas é negativo a todos os níveis: a dívida continuou a aumentar; o desenvolvimento humano estagnou; a pobreza e as desigualdades aumentaram; o tecido econômico e social desestruturou-se; os ecossistemas continuaram a degradar-se fortemente. Acrescentemos que este sistema de dominação continua activo Activo Em geral o termo «activo» refere um bem que possui um valor realizável, ou que pode gerar rendimentos. Caso contrário, trata-se de um «passivo», ou seja, da parte do balanço composta pelos recursos de que dispõe uma empresa (os capitais próprios realizados pelos accionistas, as provisões para risco e encargos, bem como as dívidas). . Mudou de nome diversas vezes – hoje em dia já não se fala de políticas de ajustamento estrutural (PAE), mas de plano estratégico para o crescimento e a redução da pobreza (PECRP) –, mas a lógica continua a ser a mesma: os estados e os povos do Sul continuam sujeitos aos ditames dos credores, do FMI e do Banco Mundial.


No Norte, a dominação pela dívida atinge o seu auge desde 2009

Ainda que as coisas tenham decorrido de forma menos violenta que nos países do Sul, a crise mundial da dívida nos anos 1980 implicou igualmente uma hemorragia financeira e políticas antissociais nos países do Norte.

Desde a crise financeira de 2008, que, por via da socialização massiva das dívidas privadas dos bancos, se transformou numa crise das dívidas soberanas, os povos europeus, em particular os da Europa Meridional e de Leste, sentiram na carne os efeitos devastadores das políticas de austeridade neoliberais, postas em marcha em nome do reembolso da dívida pública. Reforço das privatizações, redução dos impostos directos, desregulamentação financeira, austeridade orçamental, ataques contra os direitos sociais, enfraquecimento dos sindicatos, flexibilização dos direitos do trabalho, todas estas ofensivas contra os direitos sociais são levadas a cabo em nome do défice orçamental e da dívida. O problema é que toda a dívida pública desempenha igualmente o papel político de dominação nos países do Norte: é em nome da dívida e da redução dos défices públicos que, há décadas, todos os governos da UE aplicam cortes massivos nos serviços públicos, privatizam empresas públicas estratégicas ou rentáveis, degradam os sistemas de saúde pública e desenvolvem uma ofensiva contra os direitos econômicos e sociais dos cidadãos e cidadãs.

«Há duas maneiras de conquistar e submeter uma nação. Uma é pela espada. A outra é pela dívida.» John Adams, 1735-1826, segundo presidente dos EUA


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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Olivier Bonfond

Ele é membro dos [Comissão para a Verdade sobre a dívida pública> 11511].

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CADTM

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