Decorreu em Lisboa, no dia 17 de dezembro de 2011, a Convenção nacional organizada pela Iniciativa para uma Auditoria Cidadã (IAC). Cerca de 500 pessoas vindas de diversas partes do país estiveram presentes neste encontro histórico de activistas empenhados em saber como chegou a dívida soberana portuguesa ao seu estado actual, como funcionam os mecanismos de transferência sistemática dos recursos públicos para as mãos da banca privada, que soluções devem ser propostas no futuro para pôr termo a este saque e às medidas de austeridade.
A apresentação pública da iniciativa teve início na noite de dia 16, com a introdução do tema da dívida soberana e da auditoria cidadã por Ana Benavente [1], Costas Lapavitsas [2] e Eric Toussaint [3].
Os trabalhos da Convenção decorreram durante todo o dia de sábado, divididos seguintes blocos principais:
Apresentação de alguns trabalhos prévios de investigação sobre os processos de endividamento, nomeadamente nas áreas dos transportes, da saúde, e das PPP. Esta apresentação, embora ainda sumária, revelou-se particularmente interessante para o público presente, pois não só demonstrou que é possível ao cidadão comum examinar a questão do endividamento sectorial e local, como expôs imediatamente a existência de factores ilegítimos, ilegais e talvez mesmo odiosos na formação da dívida pública
Dívida pública
Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social.
.
Os dois convidados internacionais, aos quais se veio juntar neste dia Maria Lucia Fattorelli |5| [4], apresentaram um panorama da crise internacional, dos movimentos europeus de auditoria cidadã e dos contributos que a experiência grega, irlandesa, brasileira e equatoriana podem trazer à recém-nascida auditoria cidadã em Portugal. Duas das questões mais sublinhadas por estes convidados com larga experiência internacional (experiência essa adquirida tanto ao nível da auditoria cidadã como da auditoria oficial) foram: 1) a necessidade de envolver a sociedade civil de forma activa e efectiva no processo de auditoria, sem a qual a iniciativa correria sérios riscos de fracasso; 2) a necessidade de estruturar e delimitar criteriosamente o âmbito e objectivos da auditoria, de forma a não dispersar os meios humanos e técnicos existentes.
Aprovação de um documento orientador dos princípios gerais de acção
Acção
Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais.
da Auditoria Cidadã, e de uma lista de membros da Comissão de Auditoria encarregada de dirigir e coordenar os trabalhos futuros. Alguns destes documentos estão disponíveis em http://auditoriacidada.info/.
O panorama internacional e histórico - semelhança de todos os processos de endividamento
As intervenções de Costas Lapavitsas, Eric Toussaint e Maria Lucia Fattorelli deixaram clara a uniformidade de processos de endividamento e quebra de soberania utilizados pela banca privada, o FMI e o Banco Mundial desde os anos 1980 nos países do Sul, e agora aplicados de forma rigorosamente semelhante na Europa pelo FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu. Ao longo destas 3 décadas, vemos que os processos utilizados para endividar os Estados periféricos (ou seja, para transferir recursos públicos para a esfera privada e inversamente «nacionalizar» os prejuízos das aventuras financeiras privadas) não só se mantêm na substância e no pormenor, como continuam a produzir precisamente os mesmos resultados: endividamento público crescente, recessão económica, esvaziamento do papel do Estado, abolição das práticas de solidariedade social e internacional, desequilíbrio fiscal e destruição dos mecanismos de redistribuição social da riqueza, destruição dos recursos naturais, aplicação de medidas de austeridade sobre as camadas mais frágeis da população como forma de transferência de riqueza para os mais ricos.
Esta repetição das velhas receitas, se, por um lado, tem o triste efeito de trazer para a Europa a mesma miséria e o mesmo sofrimento inflingidos às populações do Terceiro Mundo durante décadas, por outro lado oferece-nos uma enorme vantagem: já conhecemos de cor e salteado essas receitas de austeridade e saque, sabemos bem os seus truques, consequências e mecanismos, e portanto deveria ser mais fácil compreendê-las e combatê-las; temos perante nós um conjunto de factos historicamente comprovados que não carecem de maior comprovação ou discussão.
Uma mudança na atitude das populações
Outro aspecto que ficou patente na participação das cerca de 500 pessoas presentes na Convenção, e que vamos detectando de forma crescente nas reacções expressas na rua, nos blogues, nas conversas de café, é a mudança de atitude face ao problema da dívida e à sua auditoria por parte do cidadão comum.
Até aqui pesava muito na consciência pública a ideia, laboriosamente construída pelos poderes públicos e pela comunicação social dominante, de que o endividamento interno e externo do Estado é da responsabilidade das populações, e que as dívidas, sejam elas de que tipo forem, devem ser honradamente pagas. São cada vez mais vastos os sectores da população dispostos a encarar a ideia de que a dívida pública tem sido gerada pelas instituições financeiras privadas, em benefício destas, e não em benefício da população ou do suposto «gigantismo» do Estado social. De facto, a dívida pública é insignificante, quando comparada com a dívida privada gerada pelas instituições financeiras e habilidosamente tornada pública.
A metáfora «ninguém paga uma refeição sem conferir as parcelas da conta», que tem sido usada nos últimos meses para que as pessoas compreendam a necessidade de se fazer uma auditoria cidadã, começa agora a ser substituída por outra muito mais rigorosa: «eu não encomendei este prato, portanto não me compete pagá-lo».
Embora ainda haja dentro dos movimentos que têm dinamizado e apoiado a iniciativa por uma auditoria cidadã uma vaga tendência para o pagamento «honrado» das dívidas (alheias), embora essas tendências proponham a amenização do reembolso da dívida através da renegociação de prazos e juros para «não doer tanto», vai crescendo a consciência de que, afinal, o significado histórico de palavras como «renegociação» e «reestruturação» esconde um objectivo perverso: trata-se de transformar os actuais juros em capital, isto é, obrigar as populações a pagarem juros sobre juros; trata-se de, sob o disfarce duma melhoria das condições de pagamento, aumentar os montantes de reembolso a longo prazo; trata-se de, ao negociar novos contratos para as dívidas anteriores, esconder todas as ilegalidades e ilegitimidades em causa (impedindo assim uma auditoria sobre os contratos caducados); trata-se de abafar a reivindicação e indignação popular, fornecendo uma falsa esperança de melhoria futura; trata-se de cortar pela raiz o envolvimento das populações na investigação dos factores de endividamento e na sua resolução.
Na verdade, todo o défice ilegítimo de Estado assenta simplesmente num défice democrático.
É precisamente esta a importância duma auditoria cidadã: a questão de fundo não está em verificar o acerto das contas (embora este passo seja muito importante), mas sim em envolver as populações na investigação do processo de endividamento e na busca de soluções para pôr termo a esse tipo de injustiça social. A auditoria cidadã deve visar a própria raiz do problema, ou seja, deve servir o combate contra o défice democrático. Esse é o único caminho possível para combater o défice orçamental.
Temos a maior esperança que a Iniciativa por uma Auditoria Cidadã avance com sucesso - ou seja, que se torne um elemento-chave neste combate, mobilizando as populações a nível sectorial e local, criando uma miríade de movimentos cívicos capazes de paralisar as políticas neoliberais e pôr fim ao saque dos bens colectivos.
Rui Viana Pereira - membro do Comité para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa (CADPP) e subscritor da Iniciativa por uma Auditoria Cidadã e da Convocatória para a Convenção de Lisboa.
[1] Ana Benavente - membro da IAC; ex-secretária de Estado de um dos governos do Partido Socialista na área da educação.
[2] Costas Lapavitsas - professor de economia na School of Oriental and African Studies em Londres.
[3] Eric Toussaint - presidente do CADTM-Bélgica e ATTAC-França; autor de diversas obras sobre a situação internacional, os países periféricos e a dívida soberana; membro da comissão de auditoria do Equador.
[4] Maria Lucia Fattorelli - auditora e revisora de contas; coordenadora da auditoria cidadã brasileira; membro da comissão de auditoria do Equador; autora de diversas obras e estudos sobre a dívida soberana e a auditoria cidadã.
revisor, tradutor e sonoplasta; co-autor de Quem Paga o Estado Social em Portugal? e de «E Se Houvesse Pleno Emprego?», in A Segurança Social É Sustentável (Bertrand, Lisboa, 2012 e 2013 respectivamente); co-fundador do CADPP.
Membro do grupo cívico Democracia & Dívida.
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