18 de Março de 2012 por Damien Millet
Desde o início dos anos 1980 os países do Terceiro Mundo vêem-se confrontados com a crise da dívida e suas consequências. O FMI e seus credores impuseram planos de austeridade estrutural que mantiveram as economias terceiro-mundistas em estado de submissão, provocaram a devastação social e abriram a porta aos lucros das sociedades transnacionais, que assim puderam apoderar-se entraves das quotas de mercado das empresas locais.
Até meados dos anos 2000 esta lógica perdurou. A subida dos preços das matérias-primas a partir de 2004-2005 permitiu aos países exportadores amealhar reservas de divisas que utilizaram para sacudir a tutela esmagadora do FMI: Brasil, Argentina, Uruguai, Filipinas, Indonésia, todos reembolsaram antes dos prazos. Nenhum país se empenhou a fundo em montar um modelo económico alternativo ao capitalismo actual, que encosta a humanidade contra a parede, tanto no plano social como ambiental, apesar de a Argentina e o Equador terem feito a vida negra aos credores. De Dezembro de 2001 a Março de 2005, a Argentina suspendeu o reembolso de 90.000 milhões de dólares e fez frente aos credores privados, que tiveram de aceitar a perda de 65% do valor dos créditos que detinham. Em 2008, após uma auditoria decretada pelo presidente Rafael Correa, o Equador recusou-se a reembolsar 70% da sua dívida considerada ilegítima, que acabaria por comprar a 35% do seu valor: o governo economizou assim 7.000 milhões de dólares, reinvestindo-os em gastos sociais.
Desde 2007-2008 que a crise ataca o Norte, sendo a Europa o continente mais afectado. Os povos europeus têm de extrair a lição dos sofrimentos infligidos ao Sul desde há três décadas. Tanto no Norte como no Sul o discurso dominante culpabiliza as populações, acusando-as de viverem acima das suas possibilidades. Partindo deste dado, a única solução proposta é terrível: austeridade generalizada, incontáveis sacrifícios, extensa deterioração das condições de vida – tudo isto com o propósito de garantir o reembolso da dívida aos credores.
No nosso dia-a-dia todos os nossos pagamentos são efectuados contra a apresentação duma factura que atesta as mercadorias compradas ou os serviços prestados. No caso da dívida pública, onde está a factura? Se existe dívida, ela provém de três causas: a subida das taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. no início dos anos 1980, a contra-reforma fiscal que permitiu uma grande redução da colecta sobre as entidades mais ricas e os beneficiários das sociedades comerciais, e a crise actual provocada pelos bancos e outras instituições financeiras privadas. As populações não têm culpa de nada disto, não vivem acima dos seus meios – até porque os direitos humanos não estão ainda garantidos em muitos casos e a factura apresentada não corresponde a bens ou serviços adquiridos em proveito da população. Sendo assim, deve a população reembolsar uma dívida que não é sua?
A única forma de oferecer uma resposta consiste em questionar ao pormenor essa dívida. O instrumento adequado é a auditoria cidadã: compete-nos a nós compreender donde vem essa dívida e apontar os responsáveis. A auditoria permitirá determinar a parte da dívida que é ilegítima, que o povo deve recusar pagar e que deve ser anulada. No passado Verão de 2011 as associações, os sindicatos e os partidos políticos criaram em França o Colectivo por uma Auditoria Cidadã da dívida pública (CAC, ver www.audit-citoyen.org). Redigiu-se um texto de referência para subscrição. Este apelo a uma auditoria foi subscrito por mais de 58.000 pessoas seis meses mais tarde.
Lançada a nível nacional, esta reivindicação da auditoria foi rapidamente adoptada por numerosos cidadãos em todo o país. Dez dezenas de comités locais organizaram-se espontaneamente sem que fosse necessária intervenção «vinda de cima». A vontade de lançar esta auditoria deu resposta às inquietudes dos cidadãos franceses e à sua vontade de agir, no momento em que a União Europeia sofre a razia da austeridade justificada pela dívida. Ainda que decidamos pagar, queremos saber porquê. Queremos decidir sobre o que aceitamos pagar e o que não tem motivos de reembolso. A auditoria é um passo obrigatório para atingir esse objectivo.
Em Dezembro de 2011 a dupla emissão «Là-bas si j’y suis», de Daniel Mermet, na France Inter, intitulada «La dette ou la vie», sobre as actividades do CADTM teve um sucesso notável. Nas semanas seguintes houve inúmeros pedidos de informação e contactos. A resposta ao apelo por uma auditoria e à ilegitimidade da dívida foi estrondosa.
A 14 de Janeiro de 2012, o CAC organizou a sua primeira jornada de actividades em Paris, destinada aos comités locais que não paravam de pedir informações e pistas de acção. Esperava-se meia centena de pessoas – compareceram 120. Era a confirmação de que algo muito prometedor estava em marcha. As solicitações dos intervenientes para lançar comités locais ou oferecer ajuda especializada aumentaram de forma exponencial. No dia seguinte, por iniciativa da Attac-France e da Médiapart, mais de 1100 pessoas juntaram-se no Espace Reuilly, em Paris, para reflectir sobre o tema «A dívida deles, a nossa democracia». Teve de se improvisar uma conferência diante do Espace Reuilly, porque a sala não comportava mais de 700 lugares… Tinha-se vencido mais uma etapa.
No início de Março de 2012 foram criados mais de 110 colectivos locais. Em muitos casos os subgrupos de trabalho permitem desenvolver informação sobre a análise global ou começar o trabalho de auditoria local das dívidas criadas pelas instituições regionais, os hospitais e os organismos de assistência social. Outros preparam acções de rua ou analisam o impacte das políticas de austeridade à escala local. Vão-se mobilizando energias, articulando estruturas – começou a ofensiva. O que está aqui em causa é a reapropriação democrática do poder de decisão confiscado pelos credores e os mercados financeiros. Foi derrotado o tabu sobre a questão do reembolso da dívida pública.
Damien Millet é o porta-voz do CADTM-France e autor com Eric Toussaint do livro AAA. Audit Annulation Autre politique, ed. Seuil, 2012.
Tradução: Rui Viana Pereira
professeur de mathématiques en classes préparatoires scientifiques à Orléans, porte-parole du CADTM France (Comité pour l’Annulation de la Dette du Tiers Monde), auteur de L’Afrique sans dette (CADTM-Syllepse, 2005), co-auteur avec Frédéric Chauvreau des bandes dessinées Dette odieuse (CADTM-Syllepse, 2006) et Le système Dette (CADTM-Syllepse, 2009), co-auteur avec Eric Toussaint du livre Les tsunamis de la dette (CADTM-Syllepse, 2005), co-auteur avec François Mauger de La Jamaïque dans l’étau du FMI (L’esprit frappeur, 2004).
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