Anúncio do FMI sobre US$ 650 bilhões em direitos especiais de saque, uma propaganda enganosa

10 de Setembro de 2021 por Eric Toussaint , Milan Rivié


Kristalina Georgieva, diretora-geral do FMI, conversa com David Malpass, do Banco Mundial (crédito Fundo Monetário Internacional, sob licença CC BY-NC-ND 2.0. Para ver uma cópia desta licença, visite https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/)

Entrevista com Milan Rivié e Éric Toussaint, pelo CADTM.



CADTM: O FMI anunciou no final de agosto de 2021 que estava disponibilizando US$ 650 bilhões para a economia mundial para atender necessidades urgentes. Isso implicará um aumento dos direitos especiais de saque. De que se trata?

Milan Rivié e Éric Toussaint: Os 190 países membros do FMI têm direito a receber do FMI uma alocação não reembolsável em moedas fortes; esta alocação é chamada de «direitos especiais de saque», além dos empréstimos que o FMI decide conceder a um país que pede ajuda. Os empréstimos são remunerados com juros e estão ligados a condições que impõem um aprofundamento das políticas neoliberais.

A quantia alocada a cada país membro depende do seu peso econômico e político na instituição

Kristalina Georgieva, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), fez a seguinte declaração em 23 de agosto de 2021: «A maior alocação de Direitos Especiais de Saque (DES) da história (cerca de US$ 650 bilhões) entra em vigor hoje. Esta alocação é uma verdadeira injeção no braço da economia global e, se usada sabiamente, uma oportunidade única para superar esta crise sem precedentes». A diretora-geral do FMI acrescentou que o aumento dos DES «proporcionará liquidez adicional ao sistema econômico global, complementando as reservas de divisas dos países e reduzindo sua dependência de dívidas internas ou externas mais onerosas. Os países podem usar o espaço que isso cria para apoiar suas economias e intensificar sua luta contra a crise».

Ao anunciar que os direitos especiais de saque estão sendo aumentados em US$ 650 bilhões, o FMI informa que os países membros podem sacar desta quantia se assim o desejarem, mas a quantia que podem obter depende de seu peso econômico e político, o que se reflete na cota que detêm no FMI. Por exemplo, os Estados Unidos têm uma cota de 17,43, enquanto a República Democrática do Congo (RDC) tem apenas 0,22, ou seja, 80 vezes menos do que Washington. No entanto, a RDC tem cerca de 100 milhões de habitantes, enquanto os EUA têm cerca de 330 milhões.

 

CADTM: Os DES representam uma dívida com o FMI?

Milan Rivié e Éric Toussaint: Os DES são um ativo de reserva internacional projetado para complementar as reservas oficiais dos 190 países membros do FMI e fornecer liquidez no caso de uma crise na balança de pagamentos, ou seja, quando um Estado não tem mais recursos financeiros suficientes disponíveis em moeda estrangeira para honrar seus compromissos financeiros fora de suas fronteiras, incluindo o serviço da dívida.

Os DES não representam uma dívida com o FMI. Também não são uma moeda; nenhuma transação pode ser feita usando deles. Seu valor é determinado por uma cesta de moedas composta pelo dólar americano, o euro, o yuan chinês, o iene japonês e a libra esterlina. Por outro lado, os DES podem ser trocados contra uma ou mais moedas, ou moedas estrangeiras, se preferir, através dos bancos centrais.

Para falar claro, um país que não possui reservas suficientes em uma ou mais moedas estrangeiras para pagar sua dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. externa a um ou mais de seus credores pode usar a totalidade ou parte dos DES a ele alocados para pagar o serviço da dívida.

 

CADTM: Para o FMI, este acordo é, naturalmente, «histórico». Embora a alocação de DES não seja nova, seu montante é muito maior do que o que foi alcançado no passado. Como esta alocação pode ser benéfica para os países em questão?

Milan Rivié e Éric Toussaint: Digamos, para seguir o raciocino do FMI, que esta alocação de DES está diretamente livre de condicionalidades políticas e que não é diretamente contabilizada pelo FMI como uma dívida. Mas se esta alocação representa à primeira vista uma verdadeira lufada de ar para os países do Sul, a realidade é bem diferente.

 

CADTM: O que você quer dizer com isso? Esta ajuda é uma farsa?

Milan Rivié e Éric Toussaint: Sem dúvida! Há pelo menos quatro limitações a esta alocação.

Em comparação com os trilhões de euros e dólares americanos liberados desde o início da pandemia pelo Banco Central Europeu e pela Reserva Federal dos EUA, a alocação de 275 bilhões é simplesmente uma quantia irrisória

Primeiro, há a questão de como repartir esta alocação de US$ 650 bilhões. Como mencionado acima, «os DES são distribuídos aos países na proporção de suas cotas relativas no FMI». Como resultado, dos 190 países membros do FMI, os 135 países em desenvolvimento compartilharão US$ 275 bilhões, ou pouco mais de 40 % da alocação, enquanto os 55 países mais ricos receberão cerca de US$ 375 bilhões. Além disso, dentro dos países em desenvolvimento, existem grandes disparidades de renda, o que reforça ainda mais as desigualdades na repartição da alocação. Ou seja, os 29 países de baixa renda, ou países mais pobres, com 700 milhões de habitantes, receberão apenas 21 bilhões de dólares. Isto é muito inferior aos 450 bilhões de dólares que, segundo o FMI, precisariam para impulsionar suas economias durante os próximos 5 anos.

Portanto, o montante alocado é totalmente problemático. Os US$ 275 bilhões representam pouco mais de 8 % da dívida externa pública e um quarto do serviço da dívida externa pública dos PED (países em desenvolvimento) entre 2020 e 2022. Em comparação com os milhares de bilhões de euros e dólares americanos liberados desde o início da pandemia respectivamente pelo Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu e pela Reserva Federal dos EUA, é simplesmente uma quantia irrisória.

Outro elemento que definitivamente não deve ser negligenciado são as consequências políticas desta alocação. Desde a crise global de 2007-2008, o FMI voltou a ser incontornável e está presente na maioria dos países do Sul. Recorrer a esta alocação é reforçar a posição central de uma instituição que tem falhado constantemente desde sua criação, tanto por seu funcionamento antidemocrático quanto por sua ideologia neoliberal mortífera. A situação é semelhante para os 55 países mais ricos. Já estão em andamento negociações para redistribuir parte dos 375 bilhões em suas mãos para os países do Sul. Mas cuidado, a proposta que atualmente domina o debate é para enganar os tolos. Os países ricos emprestariam cobrando juros parte dos DES a eles destinados, tendo acesso a eles sem custo. Sem mencionar os muito prováveis acordos estratégicos e comerciais assinados debaixo da mesa com os governos do Sul, sem qualquer possibilidade de negociação, dada sua situação crítica.

O presidente mexicano já anunciou que utilizará os DES para pagar a dívida externa do país. No entanto, o país precisaria de recursos financeiros para combater os efeitos da pandemia

Por último, mas não menos importante, o uso futuro desta alocação. Deve-se notar que atualmente mais de 25 % dos países do Sul dedicam mais recursos ao serviço da dívida do que aos gastos com a saúde. Ao mesmo tempo, nem a iniciativa de suspensão do serviço da dívida, nem o Common Debt Framework nem o Fundo Fiduciário de Alívio de Desastres criado em 2020 estão à altura dos desafios. E para completar o quadro, os credores privados, de longe a grande maioria, ainda não concederam nenhum alívio ou cancelamento de seus créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). . Sob estas condições, é provável que esta alocação seja utilizada principalmente para reembolsar os credores privados direta ou indiretamente. A lógica dominante atual para os estados do Sul é preservar sua credibilidade nos mercados financeiros e perante outros investidores. Ao ceder à chantagem dos credores e das agências de classificação, os Estados estão claramente ignorando o direito internacional, os direitos humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.

Por exemplo, o presidente mexicano já anunciou que utilizará os DES para pagar a dívida externa do país. No entanto, o país precisaria de recursos financeiros para combater os efeitos da pandemia, já que houve mais de 260.000 mortes no México por causa do coronavírus.

 

CADTM: Sua observação parece implacável. Mas será que os países do Sul realmente têm outras soluções?

Milan Rivié e Éric Toussaint: O que é muito claro é que, apesar da natureza sem precedentes da crise e dos sucessivos discursos alarmistas, nenhuma das instituições internacionais atuais foi capaz de implementar um mecanismo para cancelar a dívida incondicional.

Para os países do Sul, não há nada a esperar das Instituições Financeiras Internacionais. É necessário, portanto, tomar medidas soberanas. Melhor ainda, tudo isso é bem possível

Ontem como hoje, para os países do Sul e para as populações nada mudou, não há nada a esperar das Instituições Financeiras Internacionais. É necessário, portanto, tomar medidas soberanas. Melhor ainda, tudo isso é bem possível. Sob o direito internacional, existem fortes argumentos legais que podem apoiar uma decisão unilateral de suspender pagamentos, entre eles o estado de necessidade e a mudança fundamental das circunstâncias. Quando um Estado invoca estes argumentos, a legitimidade ou não da dívida é irrelevante. Mesmo que a dívida reclamada do país seja legítima, isto não impede que o país suspenda o pagamento. Com a ajuda do povo e da solidariedade internacional, essas são as condições para uma saída da crise.

Tradução: Alain Geffrouais


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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