Série: Bancos versus povos: os bastidores de um jogo manipulado (9ª parte)

Bancos: boletim de saúde traficado

1 de Setembro de 2013 por Eric Toussaint


Parte 9 da série : Bancos contra Povos: os bastidores de um jogo manipulado!.



A euforia neoliberal e Basileia II

Os acordos de Basileia II foram concebidos em plena euforia neoliberal, quando os banqueiros capitalistas conseguiram obter a supressão de algumas regras de prudência que ainda subsistiam e que provinham do rescaldo da grande crise dos anos trinta.

Basileia II corresponde ao período em que Alan Greenspan [1], presidente da Fed (o banco central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). dos EUA), perorava sobre a capacidade dos mercados financeiros para se auto-regularem e advogava a supressão de todas as restrições que continuavam a refrear, segundo ele, a «criatividade» dos banqueiros.

Os acordos de Basileia II entraram em vigor em 2004-2005, pouco antes de rebentar a crise que teve início em 2007, e continuam em vigor em 2013-2014. A implementação dos acordos de Basileia III, elaborados em resposta à pressão da crise de 2010, revistos em 2011 [2], está ainda em fase de interpretação e negociação. A aplicação dos acordos de Basileia III estava prevista para 2018-2019. Por isso é tão importante começar por entender os acordos de Basileia II, enquanto a maioria dos comentadores dirigem a atenção, a sua e a dos leitores e leitoras, para Basileia III, como se estes já estivessem em vigor. As autoridades encarregues do controlo – os governos, articulados com os grandes banqueiros privados e a imprensa dominante – pretendem fazer crer ao público que foram impostas sérias restrições ao mundo da finança. É falso. Como veremos, o que está previsto no Basileia III não modifica realmente as regras laxistas que permitiram aos bancos fazer o que lhes aprouvesse. De facto, Basileia III permitirá que os bancos continuem a maquilhar as suas contas e o seu boletim de saúde, graças ao sistema de ponderação de activos que detêm [3], em função dos riscos. Podem também continuar a ter actividades fora do balanço de contabilidade, de forma perfeitamente legal. Isto encoraja-os a assumir riscos. Bastam estes dois elementos para tornar totalmente ineficaz a panóplia de pequenas medidas anunciadas com grande pompa e circunstância. Para dar a impressão de que o Basileia III é duro, os bancos protestam um pouco e tentam convencer as autoridades a suavizar o Basileia III ou a adiar os prazos. É uma verdadeira jogada de sonsos. Os governantes e as autoridades da tutela mostram assim até que ponto são cúmplices e solidários com os grandes bancos privados.

Antes de analisarmos o Basileia III, examinemos os acordos de Basileia II, que ainda estão em vigor.

Basileia II: licença para matar

Basileia II levou ainda mais longe a desregulamentação que já tinha sido encetada pelos acordos de Basileia I (veja-se o artigo precedente [4]). Há que sublinhar dois pontos importantes no Basileia II: 1) o montante obrigatório de capital próprio Capital próprio Soma do capital social (angariado pelos accionistas ou sócios) e dos lucros não distribuídos (reservas). foi diminuído; 2) os bancos foram autorizados a adoptar o seu próprio modo de cálculo dos activos a ter em conta para avaliarem o rácio fundos próprios Fundos próprios Capitais colocados ou deixados pelos accionistas à disposição duma empresa. Há que distinguir entre fundos próprios em sentido restrito, também chamados capital próprio, e os fundos próprios em sentido lato, que incluem também as dívidas subordinadas de duração ilimitada. /activos exigidos.

Basileia II e a redução do capital fixo exigido

O montante de capital fixo exigido foi reduzido a pedido dos bancos: já não representa mais de 2% dos activos ponderados! Sim, leram bem: trata-se de 2% do montante dos activos ponderados em função do risco. Acima desses 2% de capital próprio (ou seja, o capital investido pelos accionistas e os lucros não distribuídos), e a fim de alcançar os 8%, Basileia II permite aos bancos incluir no cálculo dos seus fundos próprios diversos elementos (por exemplo, títulos de dívida subordinada Dívida subordinada É a dívida cujo reembolso, em caso de liquidação, só tem lugar depois das outras (ditas privilegiadas ou senior debt). Os credores subordinados correm portanto um risco maior que os outros credores, o que justifica uma taxa de juro mais elevada.  [5]) que têm uma relação longínqua com a formação de capital em sentido estrito. Às autoridades nacionais compete definir o que pode ser tido em conta pelos bancos, para além dos 2% de capital próprio, para atingirem 8%. Por outras palavras: manteve-se a referência aos 8% previstos no Basileia I, mas a sua fórmula de cálculo foi completamente alterada:

  • no numerador (fundos próprios) abriu-se espaço para as categorias de dívida que a banca pode incluir no cálculo, muito além do capital próprio;
  • no denominador foi introduzida a possibilidade de os bancos definirem eles mesmos o seu modelo de cálculo dos activos, ponderados pelo respectivo risco.

No exemplo teórico do Banxia (ver parte 8 desta série de artigos) mostrámos como a banca já pode jogar com o denominador (os seus activos). O Basileia II permite além disso jogar com o numerador (os fundos próprios e outros que a banca pode aí juntar para alcançar os 8% requeridos).

No jargão dos acordos de Basileia, fala-se de Tier 1 (capital próprio ordinário de nível 1) e de Tier 2 (nível 2) [6]. O Basileia II considera que o Tier 1 (que representa 4% dos activos calculados em função do risco) é composto por duas partes: uma de 2% (capital próprio), uma outra de 2% na qual os bancos podem entrar em linha de conta com diferentes elementos que não constituem capital da empresa no sentido estrito. Os bancos franceses e belgas (com o acordo dos seus reguladores nacionais) metem aí, por exemplo, os títulos híbridos (meio capital, meio empréstimo obrigacionista). O Tier 2 contém elementos ainda mais afastados do capital em sentido estrito. Tanto assim é que os bancos japoneses, nos anos noventa, obtiveram das suas autoridades nacionais a possibilidade de incluir no Tier 2 as suas mais-valias bolsistas latentes. Anos mais tarde, quando rebentou a bolha imobiliária Bolha imobiliária A bolha imobiliária é uma bolha especulativa que afecta o mercado imobiliário, caracterizada por uma subida rápida do valor dos bens imobiliários. Traduz-se num afastamento pronunciado e persistente entre o preço dos imóveis e a variação das suas determinantes fundamentais económicas, como os salários ou o rendimento dos arrendamentos. japonesa, caíram da noite para o dia abaixo dos rácios regulamentares. Mas nada disto levou o Comité de Basileia a adoptar uma definição mais estrita do que podia entrar no Tier 2, ou mesmo no Tier 1. Só em 2010 o Comité de Basileia anunciou um endurecimento que entraria plenamente em vigor em 2018 ou 2019, ou mesmo mais tarde!

Para termos uma pequena ideia do que um banco pode ter em linha de conta para alcançar os 8% que representam o Tier 1 e o Tier 2, eis o que se pode ler no relatório anual de 2008 do banco Dexia:
«Os fundos próprios elegíveis segundo o BRI decompõem-se em:
Fundos próprios de base (Tier 1 de capital) que incluem capital social, prémios, resultados dos lucros do exercício, títulos híbridos, diferenças cambiais e juros minoritários subtraídos das imobilizações incorpóreas, dividendos vencidos, acções próprias e goodwill;
Fundos próprios complementares (Tier 2 de capital) que incluem a parte elegível das dívidas subordinadas a longo prazo, subtraídas das dívidas subordinadas e das acções de instituições financeiras.
Os fundos próprios de base têm de ascender a 4% e os fundos próprios elegíveis totais têm de representar pelo menos 8% do total dos activos ponderados.» [7]

No relatório de 2012 do Dexia vamos encontrar a mesma enumeração [8].

Basileia II: os bancos podem determinar por si mesmos o valor dos activos a levar em linha de conta

O Basileia II deposita total confiança nos banqueiros: cada banco pode decidir o seu próprio modelo de apreciação dos riscos. É o que fazem todos os grandes bancos, com raras excepções.

Mais precisamente, o Basileia II propõe aos bancos que escolham uma de duas opções: ou retomam o método de cálculo dos activos ponderados pelo risco proposto pelo Comité de Basileia II, ou definem por sua própria iniciativa um método de cálculo dos activos em função dos riscos que estes representam. Para adoptar este sistema devem obter autorização das autoridades de supervisão, o que é fácil para um grande banco na posse de meios avultados.

A abordagem normalizada recorre a critérios preestabelecidos pelo Comité de Basileia [9], que fazem o jeito às agências de notação. No exemplo teórico da parte 8, utilizámos os critérios da abordagem normalizada. Concretamente, os créditos Créditos Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor). da banca sobre os Estados e os poderes públicos que têm uma notação entre AAA e AA- são considerados como não representando qualquer risco. Por conseguinte, os activos correspondentes não são tidos em conta. Significa isto que o banco não necessita de capital para amortizar as perdas eventuais dos seus créditos.
Os créditos sobre bancos ou grandes empresas cotadas entre AAA e AA- apenas contam a 20% (o banco pode deduzir 80% dos activos que correspondem a esses créditos). Os créditos sobre bancos e empresas cotadas entre A+ e A- apenas contam 50%. Os créditos sobre bancos e empresas cotadas entre BB+ e B- contam 100%. Se a notação for inferior a B-, os créditos contam 150%. Os empréstimos às famílias contam 75%. Os créditos sobre pequenas e médias empresas contam 100%, uma vez que estas empresas não são cotadas pelas agências de notação.

Dexia: uma bela ilustração do laxismo do Comité de Basileia e das autoridades nacionais de controlo

O exemplo do Dexia ilustra bem os perigos do sistema de ponderação dos activos em função dos riscos, quer se trate da versão normalizada ou da notação interna.

Em Junho de 2011 o Dexia passou com distinção no stress test imposto pela autoridade europeia de controle a 90 grandes bancos europeus [10]. Quatro meses mais tarde, teve de ser resgatado da falência pela segunda vez em três anos. É edificante ler o documento apresentado pelo Dexia para passar brilhantemente no exame [11]. Enquanto os activos (não ponderados) ascendiam a 567 mil milhões de euros [12], os activos ponderados pelo risco representavam mais de 141 mil milhões de euros [13]. No exemplo teórico da parte 8, a ponderação de riscos permitiu ao banco fictício Banxia passar os seus activos de 100 para 40. O Dexia fez muito melhor em Junho de 2011: os seus activos passaram de 100 para 25. Há que tirar o chapéu aos prestidigitadores do Dexia! A realidade ultrapassou a ficção.

O Dexia afirma no documento enviado à autoridade europeia que o seu rácio de fundos próprios / activos ponderados pelo risco chegava aos 12,01%. Os reguladores ficaram deslumbrados! Se os activos não ponderados tivessem entrado em linha de conta, o rácio teria caído para 3%, o que revelaria uma imagem mais próxima da realidade. Se as autoridades de controlo não permitissem aos bancos, entre os quais o Dexia, juntar aos seus capitais em sentido estrito os produtos financeiros Produtos financeiros Produtos adquiridos durante o exercício duma empresa que dizem respeito a elementos financeiros (títulos, contas bancárias, divisas, investimentos de capital). que não correspondem a capital, o rácio seria ainda mais inquietante. De sublinhar que se as regras de Basileia III (que entrarão em vigor, em pleno, em 2018-2019) estivessem em vigor no que diz respeito ao rácio fundos próprios / activos NÃO ponderados assim como ao rácio fundos próprios / activos ponderados, o Dexia teria igualmente passado no teste, o que demonstra que o Basileia III não nos traz nenhuma solução.

Os bancos: um enorme engano

O caso Dexia não anda isolado. Segundo o Relatório Liikanen, em 2011 os fundos próprios dos grandes bancos não representavam mais de 2 a 6% dos activos não ponderados. No caso do Deutsche Bank, representam pouco mais de 2% (o que representa um efeito de alavanca Efeito de alavanca O efeito de alavanca designa a rendibilidade dos capitais próprios duma entidade (empresa, banco, etc.) que recorre ao endividamento. O rácio capitais alheios / capitais próprios dá-nos a medida desse endividamento. igual a 50). No caso do ING e do Nordea (Suécia), representam um pouco menos de 4%. Quanto ao BPN Paribas, Crédit Agricole, BPCE, Société Générale ou Barclays, representam cerca de 4% (efeito de alavanca de 25). No caso dos espanhóis Santander e BBVA, dos italianos Intesa Sanpaolo e Unicredit, bem como do belga KBC, cerca de 6% (efeito de alavanca de cerca de 16 vezes) [14].

Ora todos estes bancos passaram no stress test de Junho/2011 e apresentam um rácio de fundos próprios / activos ponderados superior a 10%.

Com base nos seus relatórios anuais de 2012, publicados em 2013, calculámos os rácios fundos próprios / activos ponderados e fundos próprios / activos NÃO ponderados para dois grandes bancos europeus que têm a reputação de ser sólidos: BNP Paribas e Deutsche Bank. Como se vê na ilustração seguinte, o resultado é alarmante mesmo para os mais confiantes.

A fazer fé no Financial Times, que não tem qualquer interesse em provocar o pânico nos mercados, a situação do Deutsche Bank é ainda mais inquietante e escandalosa do que a ilustração acima dá a entender. O rácio de alavancagem do maior banco europeu não seria de 2,7% (ou 1/37) mas apenas de 1,6% (ou 1/62)!1 Quer isto dizer que se o Deutsche Bank tivesse de enfrentar uma «pequena» perda de 10 mil milhões num total de 2 biliões de euros de activos, ficaria à beira da falência; se sofresse uma perda de 32,2 mil milhões, o seu capital seria totalmente engolido! No mesmo artigo, o Financial Times afirma que o rácio do UBS (principal banco suíço) anda pelos 2,5%, o da Société Générale (França) pelos 2,8%, o do Barclays (Reino Unido) pelos 2,5%. [15]

O Basileia III não permitirá instaurar uma verdadeira disciplina financeira
O Basileia III, adoptado ao nível dos princípios gerais em 2010 e com aplicação prevista a partir de 2018 ou 2019 à escala planetária, apenas prevê uma alteração de monta: em vez dos 2% de capital próprio exigido pelo Basileia II, os bancos deverão reunir 4,5% de capital próprio [16]. A isto juntar-se-á 3,5% de fundos calculados de maneira mais fluida para perfazer os 8% já exigidos pelos Basileia I e II.
Mas o elementos fundamental a reter é que os activos continuarão a ser calculados em função do risco que representam. Isto reduz a zero os discursos sobre a solução prometida pelo Basileia III para a crise bancária. Porque os 4,5% de capital próprio em proporção dos activos ponderados pelo risco são uma palhaçada. Todas as maquilhagens de contas são possíveis.
Um estudo realizado pelo Comité de Basileia em 2012-2013 conclui que para um mesmo tipo de activos, diferentes bancos adoptam cálculos de ponderação de risco que podem variar muitíssimo, por vezes de 1 a 8. O banco X pode considerar que necessita de 8 vezes menos capital que o banco Y para absorver o risco representado por uma carteira de derivados sobre as taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. . Em 15 grandes bancos (de 9 países diferentes), a diferença varia em média de um a 3, metendo todos os activos no mesmo saco [17]. Um estudo publicado pelo Barclays mostra que a ponderação dos riscos é utilizada pelos bancos para reduzirem ao mínimo os fundos próprios requeridos. Segundo o Barclays, há 20 anos os bancos consideravam que os activos ponderados representavam em média 53% dos activos totais, no entanto, em 2012 representam apenas 32% dos activos totais [18]. Por seu lado, a autoridade europeia de controlo dos bancos (EBA) publicou os resultados de um estudo que demonstra que metade das ponderações de risco calculadas pelos bancos não podem ser explicadas por factores objectivos. Este estudo – realizado com base na contas apresentadas a público por 89 bancos provenientes de 16 países membros da UE – mostra que as diferenças de ponderação para um mesmo tipo de risco variam até 70% de um banco para outro. [19]
Apesar das evidências, o Comité de Basileia mantém o sistema de ponderação actual. No entanto, certas organizações oficiais, como a OCDE, começaram a tornar públicos documentos que advogam o abandono da ponderação de activos pelo risco. Num estudo recente, publicado pela OCDE, os autores propõem que se leve em conta os activos sem os ponderar pelo risco, a fim de obter um rácio fiável de fundos próprios / activos [20].
Aliás, vários reguladores são os primeiros a reconhecê-lo. Andrew Haldane, director do departamento de Estabilidade Financeira do Banco de Inglaterra, afirma que o aumento de rácio dos fundos próprios em relação ao balanço dos bancos que sucederá de forma generalizada a partir de 2018-2019 é insuficiente e não permite diminuir os riscos e efeitos duma falência. Thomas Hoenig, da US Federal Deposit Insurance Corporation, a instituição criada durante a presidência de Roosevelt para regulamentar o sistema bancário, estima igualmente que o nível de fundos próprios que será exigido a partir de 2018-2019 deveria ser multiplicado pelo menos por três [21]. Tal como o autor do relatório da OCDE citado acima, Andrew Haldane e Thomas Hoenig são partidários do abandono da ponderação de riscos no cálculo dos activos e gostariam de ver instaurada uma relação absoluta (ou seja, sem ponderação) entre capital e activos. Dan Tarullo, um dos governadores da Reserva Federal, declara que um rácio fundos próprios / activos não ponderados pelo risco fixado em 3% (como decidiu o Comité de Basileia) é insuficiente. As autoridades norte-americanas estão a ponderar a necessidade de impor um rácio de 5% aos maiores bancos, o que demonstra a que ponto a decisão do Comité de Basileia de fixar, no quadro de Basileia III, o rácio nos 3% [22] é minimalista. Recordemos que a comissão Vickers, encarregada pelo governo britânico de fazer recomendações em resposta à crise bancária, propôs em 2011 um rácio de 4%, o que foi considerado pelo primeiro-ministro britânico um espartilho exagerado. Last but not least, o Financial Times não se coibiu de fazer um editorial sobre o assunto, onde defende a passagem para um rácio de 6% [23] .

Conclusões

A partir de inícios dos anos oitenta, o sector bancário privado conseguiu libertar-se das restrições que os poderes públicos tinham estabelecido e mantido durante várias décadas a fim de evitar uma repetição da crise bancária de 1930. Os reguladores e os governos, ao tornarem-se adeptos do neoliberalismo, deixaram a rédea solta aos capitalistas, que se aproveitaram ao máximo disso. Tudo isto se desenrolou num contexto em que o grande capital se vingava duma série de conquistas sociais obtidas pela luta dos trabalhadores. A crise actual, iniciada em 2007-2008, não levou os poderes públicos (e portanto os reguladores) a instaurar uma verdadeira disciplina do capital privado. Os mecanismos destinados a repor um pouco de ordem no sector financeiro privado são totalmente incapazes de refrear a procura desenfreada do lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). máximo.

É preciso romper de maneira radical com esta lógica e este sistema que faz pagar às suas vítimas a factura dos resgates bancários. É preciso acabar com esta lógica e este sistema que garantem impunidade e paraquedas dourados aos responsáveis pelas derrocadas. Os governantes estão directamente envolvidos com os grandes bancos e põem os poderes públicos ao seu serviço. Existe um corrupio permanente entre os grandes bancos e os governantes. O número de ministros das finanças e da economia, ou de primeiros-ministros, que provêm directamente dos grandes bancos ou que para lá marcham quando abandonam o governo não para de aumentar desde 2008.

As medidas anunciadas para disciplinar os bancos são cosméticas, fazem lembrar um emplastro de gesso aplicado numa perna de pau. É claro que é preciso impor uma série de regras estritas e incontornáveis que vão muito além das medidas anunciadas no quadro do Basileia III, designadamente. Mas, digamo-lo frontalmente, esta crise deveria ser ultrapassada graças à realização de medidas que ataquem a própria estrutura do mundo da finança e do sistema capitalista.

O papel da banca é demasiado sério para ser deixado nas mãos do sector privado, é necessário socializar o sector bancário (o que implica a sua expropriação) e colocá-lo sob controlo da população (dos assalariados bancários, dos clientes, das associações e dos representantes dos actores públicos locais), sujeitando-o a regras de serviço público [24] e que os lucros gerados pela sua actividade sejam utilizados para o bem comum Bem comum Em economia, os bens comuns caracterizam-se pelo modo de propriedade colectiva, distinguindo-se da propriedade privada e da propriedade pública. Em filosofia, designam o que é partilhado pelos membros duma comunidade, do ponto de vista jurídico, político ou moral. .

A dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. contraída para salvar os bancos é definitivamente ilegítima e deve ser repudiada. Uma auditoria cidadã deve determinar as outras dívidas ilegítimas ou ilegais e permitir uma mobilização tal que permita que uma alternativa anticapitalista ganhe forma.
Estas duas medidas deveriam fazer parte de um programa mais vasto [25].

Tradução: Rui Viana Pereira. Revisão: Maria da Liberdade.

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Eric Toussaint, doutorado em ciência política pelas universidades de Liège e de Paris VIII, é presidentedo CADTM Bélgica (Comité para a Anulação do TerceiroMundo, www.cadtm.org) e membro do conselho científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet, Auditar, Anular, Alternativa Política, ed. Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2012.

Notas

[1Alan Greenspan foi presidente da Fed de 11/8/1987 a 31/1/2006.

[2BRI, « Basileia III : dispositif réglementaire mondial visant à renforcer la résilience des établissements et systèmes bancaires», dezembro/2010 (documento revisto em junho/2011) http://www.bis.org/publ/bcbs189_fr.pdf

[3Em geral, o termo «ativo» refere-se a um bem que tem um valor realizável, ou que pode gerar rendimento. Caso contrário, é designado por «passivo», que significa a parte do balanço constituída pelos recursos que uma empresa dispõe (capitais próprios fornecidos pelos associados, as provisões para risco e encargos e as dívidas).Ver: http://www.banque-info.com/lexique-...

[4Eric Toussaint, «Os Bancos fazem “bluff” legalmente», http://cadtm.org/Os-Bancos-fazem-bluff-legalmente, publicado, 19/Junho/2013 (data da versão original em francês).

[5Dívida subordinada é uma dívida sem garantia – em caso de falência os titulares da dívida subordinada apenas podem reclamar os seus direitos após a integral satisfação dos direitos dos credores da dívida principal. Daí ser muito mais arriscada e ter juros mais altos que os de uma dívida principal. É um recurso fácil mas arriscado de obter capital. (N. do T.)

[6Ver versão Basileia II revista em 2006: http://www.bis.org/publ/bcbs128fre.pdf p. 12 à 19.

[9Ver versão Basileia II de 2004: http://www.bis.org/publ/bcbs107fre.pdf#page=1&zoom=auto,0,849 ; ver versão Basileia II revista em 2006 : http://www.bis.org/publ/bcbs128fre.pdf Quanto à ponderação de riscos, ler a partir da página 20.

[10Estes 90 bancos representavam 65% dos activos bancários europeus. Ver: http://www.lesechos.fr/entreprises-secteurs/finance-marches/dossier/0201290575344-stress-tests-bancaires-un-nouveau-round-en-pleine-crise-de-la-dette-131527.php Note-se que os dois bancos cipriotas que estiveram no centro da crise de 2013 também tinham passado o teste sem problemas. Dos 90 bancos, 59 (os maiores) utilizavam o seu próprio modelo de ponderação de risco dos activos (modelo IN).

[12Ver: Dexia, Relatório Anual 2010, http://www.dexia.com/FR/actionnaires_investisseurs/actionnaires_ individuels/publications/Documents/rapport_annuel_2010_fr.pdf, p.102.

[14Este parágrafo apresenta os fundos próprios em relação aos activos. Ver, para os casos Barclays e Deutsche Bank, o Relatório Liikanen, gráficos 3.4.18 et 3.4.19.

[15Em «Solvabilité réelle des banques systémiques mondiales», Olivier Berruyer estabeleceu um quadro útil sobre o efeito de alavancagem dos 28 bancos considerados sistémicos pelo G20, ver: http://www.les-crises.fr/solvabilite-banques-systemiques/

[16Para uma apresentação mais favorável ao Basileia III, ver Finance Watch: «Bâle 3 en 5 questions», Maio/2012 http://pechesbancaires.eu/pdf/Finance_Watch_Bale_3_en_5_question.pdf Ao nível da UE, alguns elementos do Basileia III deveriam entrar em vigor durante 2014. O acordo está por concluir, apesar de o parlamento europeu ter aprovado a 16/Abril/2013 a reforma das regras prudenciais bancárias CDR IV-CRR. Ver: http://www.europarl.europa.eu/news/fr/pressroom/content/20130416IPR07333/html/Les-d%C3%A9put%C3%A9s-adoptent-un-ensemble-de-r%C3%A9formes-pour-renforcer-les-banques-de-l%27UE. Sublinhe-se que o banco Natixis publicou uma síntese de Basileia III e da reforma das regras prudenciais bancárias CRD IV-CRR: http://cib.natixis.com/flushdoc.aspx?id=70138. O Finance Watch também publicou um position paper sobre o assunto: http://www.finance-watch.org/press/press-releases/505.

[17Ver: Brooke Masters e Patrick Jenkins, «Risk models fuel fears for bank safety», Financial Times, 1/2/2013. Ver também um documento do Finance Watch publicado no quadro duma audição no Bundestag: ver o gráfico da p. 5 http://www.finance-watch.org/ifile/Publications/Hearings,%20speeches,%20presentations/20130507_Bundestag_StatementCRDIV.pdf.

[18Ver: Financial Times, 1/2/2013.

[19Brooke Masters, « Bank risk weightings in spotlight aFTer EBA uncovers discrepancies », Financial Times, 27 fevereiro 2013.

[20OECD, “Business models of banks, leverage and the distance-to-default”, January 2013, http://www.oecd.org/finance/BanksBusinessModels.pdf

[21O resumo de Andrew Haldane e de Thomas Hoenig baseia-se em : Financial Times, “Warnings over steps to reform biggest banks”, 28-29 outubro 2012, p. 3.

[22De acordo com o Financial Times, no início de julho, o Comité de Basileia teria dado aos bancos um prazo até 2015 para chegarem ao rácio de 3%.Ver Financial Times, “Basel fuels bank safety metric fears », 5-6 julho 2013.

[23FT, «In praise of bank leverage ratios», 11/7/2013, p. 8. «… there is a strong case for complementing the risk weighted metric with a blunter tool/ a leverage ratio, limiting how many assets can accumulate on given equity, regardless of the perceived risk. (…) the leverage ratio should be tough enough to bite. A threshold that is twice as high as the one agreed in Basel would not be a scandal».

[24O sector bancário deveria ser inteiramente público, à excepção de um sector cooperativo de pequena dimensão com o qual pudesse coabitar e colaborar.

[25Ver Damien Millet e Eric Toussaint, “Europa: qual o programa de urgência para enfrentar a crise?”, http://cadtm.org/Europa-qual-o-programa-de-urgencia publicado a 24/6/2012.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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