27 de Outubro de 2019 por Jérôme Duval
Forças Especiais da Polícia disparam sobre os manifestantes, Plaza de los Héroes de Rancagua, 20 outubro 2019. Cc Wikipedia
O poderoso levantamento do povo chileno contra o custo de vida e as desigualdades sociais não esmorece, apesar de sofrer uma repressão sem precedentes desde o fim da ditadura.
Enquanto no Equador uma insurreição popular levada a cabo pelo movimento indígena pôs termo a uma medida económica, imposta pelo FMI, que implicava uma subida espectacular do preço dos combustíveis, e por consequência do preço dos alimentos, o presidente do Chile, por vezes denominado «Berlusconi Chileno», viu-se obrigado a renunciar a uma subida do preço dos transportes, face à contestação. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, o Governo recorreu ao estado de emergência, pondo o exército em campo em todo o país, determinado a sufocar a revolta em curso contra o modelo neoliberal dos Chicago boys.
O Chile entrou em período insurreccional desde 18 de outubro. Nesse dia multiplicaram-se as acções de «borla massiva» [acto de protesto dos estudantes que consiste em passar em massa por cima das cancelas do metro, sem pagar] [1], acabando por impor a interrupção total do serviço. A cólera da população estudantil intensificou-se a seguir contra o aumento, de 800 para 830 pesos, do preço dos bilhetes de metro em Santiago, no seguimento de um aumento de 20 pesos em janeiro passado. O metro da capital chilena, que tem a rede mais extensa da América do Sul (140 km), transporta diariamente cerca de 3 milhões de passageiros, numa área urbana com 7 milhões de habitantes.
Extensão do domínio da luta
O presidente Sebastián Piñera – uma das cinco pessoas mais ricas do Chile, com fortuna feita durante a ditadura e actualmente estimada em 2,8 mil milhões de dólares, segundo a revista Forbes, [2] acabou por ceder. A 19 de outubro anunciou a anulação da subida de preço dos bilhetes do metro e dos autocarros Transantiago, medida que, desde o seu anúncio a 6 de outubro, provocou um vasto movimento de protestos em todo o país. Mas esta concessão de Piñera chegou tarde: o aumento de 30 pesos foi a gota de água que fez transbordar a cólera popular, expressa no slogan «Não é por 30 pesos, é por 30 anos» («No es por 30 pesos, es por 30 años»), que mostra a exasperação do povo chileno em resultado das contra-reformas neoliberais anti-sociais levadas a cabo desde o fim da ditadura. Ultrapassado pelos acontecimentos, o presidente decide nesse mesmo dia colocar os militares nas ruas; foi o mesmo que soprar as brasas de um conflito em plena propagação. De facto, o envio do exército para as ruas da capital, onde foi declarado o estado de emergência – alargado, durante a noite, a duas outras regiões, Valparaíso (centro) e Conceptción (sul) –, agitou profundamente os ânimos num país traumatizado pela ditadura militar de Augusto Pinochet (de 1973 a 1990) – falecido em 2006 sem ter sido julgado pelos seus crimes, que fizeram mais de 3200 mortos e desaparecidos e 38 000 torturados. [3]
O exército viria a intervir noutras 11 regiões, onde o estado de emergência foi declarado na segunda-feira, enquanto a revolta alastrava como rastilho de pólvora. O slogan «Piñera cagón, me paso por la raja tu estado de excepción» («Piñera, sacana, caguei no teu estado de emergência») ressoa em todo o país. Os cacerolazos (batucada de panelas) trazem à rua bairros inteiros, levantam-se barricadas por toda a parte e as concentrações multiplicam-se nas principais cidades, para exigirem a retirada das tropas e a abolição imediata do estado de emergência. Entretanto, as reivindicações dos manifestantes alargaram-se contra um modelo económico de privatizações que asfixia a vida quotidiana e reduz o cidadão a um simples consumidor: o acesso à saúde, à educação, à água ou à energia (o preço da electricidade aumentou 10 % em setembro) resulta quase exclusivamente do sector privado e o sistema de reformas por capitalização, criado em 1982 por Pinochet, propõe na maior parte dos casos uma reforma inferior ao salário mínimo de 301.000 pesos (371 euros).
O modelo económico chileno, laboratório do neoliberalismo sob a égide dos Chicago boys, foi imposto durante a ditadura e poucas alterações sofreu durante o regime democrático, que de resto nem sequer alterou a Constituição. Muito elogiado pela sua estabilidade económica, o Chile é hoje um dos países com maiores desigualdades em todo o mundo, segundo a OCDE. Segundo as Nações Unidas, 1 % dos Chilenos detém mais de 25 % das riquezas do país.
Mais de 13 mortos e 88 feridos por armas de fogo
Apesar da presença de mais de 9500 militares rodeados de carros de patrulha nas ruas da região metropolitana e na cidade de Santiago, onde o comando da capital foi entregue ao general Javier Iturriaga, a população desarmada esvaziou os supermercados e durante a noite várias pessoas morreram nos incêndios, como foi o caso no Lider, da cadeia norte-americana Walmart, em San Bernardo, nos arredores da capital. As instalações do maior quotidiano chileno, El Mercurio – conhecido por ter apoiado o regime militar de Pinochet à época – foram atacados pelos manifestantes em Valparaíso; a sede da sociedade Enel Chile – gigante da electricidade – foi destruída pelas chamas no centro de Santiago. O balanço oficial, no sábado 19 e domingo 20 de outubro, é pesado: 8 mortos, mais de 65 feridos, quase mil prisões e umas 40 instalações comerciais assaltadas.
As atitudes do ministro do Interior, Andrés Chadwick, membro da Juventude Militar durante o regime de Pinochet, são inquietantes, enquanto o balanço dos confrontos se foi tornando mais pesado a cada hora, chegando aos 13 mortos e 88 feridos por armas de fogo, segundo o Instituto dos Direitos Humanos (Instituto Nacional de Derechos Humanos, INDH). A ex-chefe de Estado do Chile e presidente da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, pediu a abertura de investigações independentes sobre a repressão em curso.
Jogadores de futebol de renome, como Arturo Vidal (FC Barcelona), Claudio Bravo (capitão da equipa nacional chilena e guarda-redes suplente do Manchester-City) ou Gary Medel (vencedor da Copa América 2014 e 2015), apelam aos dirigentes para que escutem o povo; numerosos artistas apoiam a cólera popular, como é o caso da cantora chilena Anita Tijoux, que encoraja as batucadas de panelas com um novo videoclip que se tornou viral, Cacerolazo [4]. Enquanto para as Pussy Riot os manifestantes do Chile representam uma bela inspiração e uma lição para todos os povos do mundo, na luta contra a injustiça dos ricos, o presidente milionário Piñera, rodeado de militares, declara: «Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém». A isto responde Gary Medel: «Uma guerra precisa de dois campos, mas nós somos um só povo que quer a igualdade». [5]
Várias organizações estudantis convocaram com carácter de urgência assembleias de estudantes nas universidades, apelando à greve geral. No seguimento, uma centena de organizações agrupadas sob o nome de Unidade Social do Povo Chileno (Unidad Social del Pueblo Chileno) convocaram uma greve geral a nível nacional para 23 e 24 de outubro [6]. Enquanto o Chile desperta ao som das botas, surge um novo slogan: «Roubaram-nos tanto, que até nos levaram o medo».
Tradução: Rui Viana Pereira
[1] Ver por exemplo um vídeo de borla massiva: «Nueva evasión masiva: Estudiantes derriban reja del metro Santa Lucia», La Cuarta, 17 outubro 2019 : https://www.lacuarta.com/cronica/noticia/nueva-evasion-masiva-estudiantes-derriban-reja-del-metro-santa-lucia/417323/
[2] Sebastián Piñera ocupa o 804º lugar na classificação mundial dos milionários estabelecida pela revista Forbes: https://www.forbes.com/profile/sebastian-pinera/?list=billionaires#5270c5aa7a75
[3] «Suman 10.000 víctimas más al régimen de Pinochet», Vladimir Hernández, BBC Mundo, 18 agosto 2011.
[4] «Cacerolazo: La canción de Ana Tijoux dedicada a las protestas sociales», El Observador, 21 octobre 2019. http://web.observador.cl/video-cacerolazo-la-cancion-de-ana-tijoux-dedicada-a-las-protestas-sociales/. O videoclip também está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tVaTuVNN7Zs
[5] Gary Medel: «Una guerra necesita dos bandos y acá somos un solo pueblo que quiere igualdad», 21 outubro 2019, Tele13. https://www.t13.cl/noticia/deportes13/gary-medel-protestas-chile-21-10-2019
[6] Entre outras organizações da Unidad Social del Pueblo Chileno: Central Unitaria de Trabajadores (CUT), Coordinadora No Más AFP, Asociación Nacional Empleados Fiscales (ANEF), Confusam, Fenpruss, Confederación Coordinadora de Sindicatos del Comercio y Servicios Financieros, Confederación Bancaria, Sindicato Interempresa Líder, Colegio de Profesores, trabalhadores portuários e Federación de Trabajadores del Cobre y FENATS Nacional. Organizações que aderem ao apelo à greve: Cones, Confech, Chile Mejor Sin TLC, Cumbre de los Pueblos, FECh y Fenapo.
membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.
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