Chipre: A troika cria o primeiro «corralito» europeu

29 de Maio de 2013 por Jérôme Duval


Chipre junta-se ao clube dos países sob a administração da troika. A população cipriota é submetida ao «apertar do cinto» para salvar os bancos privados, imprudentes e irresponsáveis, que perderam milhares de milhões especulando com a dívida grega.



O termo corralito refere-se à decisão tomada pelo governo argentino, no início de dezembro de 2001, destinada a pôr fim ao levantamento em massa de depósitos bancários (22 mil milhões de dólares em três meses), à fuga de capitais, ao congelamento de contas bancárias, à proibição de enviar dinheiro para o estrangeiro e a limitar os levantamentos de fundos a 250 pesos por semana.

Em Chipre, como no Estado espanhol, o modelo de desenvolvimento, com uma taxa de crescimento elevada na década de 2000, em grande medida devido aos setores da construção e do turismo, parece atingir os seus limites. Chipre está a ser abalado pelas políticas de austeridade da Grécia, pelos ataques especulativos e pelas pressões dos credores. Porém, a dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. cipriota só ultrapassa o nível exigido por Bruxelas (60 % do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
) após estalar a crise na Europa, passando de 48,9% em 2008 para 71,1 % em 2011. No terceiro trimestre de 2012, segundo o Eurostat [1], seria de 84 % do PIB e poderia ultrapassar os 109 % do PIB este ano.

Por último, o Governo cipriota já não precisa, como previsto, de 18 mil milhões de euros para o período 2012-2016, mas de pelo menos 23 mil milhões de euros. Apesar de ainda continuarem as negociações entre as autoridades cipriotas e russas sobre a reestruturação do empréstimo de 2,5 mil milhões de euros concedido em 2011 a Chipre pela Federação Russa, a troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. deu o seu veredito antes da aprovação dos Parlamentos nacionais [2]: a austeridade em Chipre, como seria de esperar, será brutal, fatal e devastadora. Em troca de um empréstimo de 10 mil milhões de euros (9 mil milhões de euros da zona euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. , através do Mecanismo Europeu de Estabilidade MES
Mecanismo Europeu de Estabilidade
O Mecanismo Europeu de Estabilidade é um dispositivo europeu de gestão das crises financeiras da zona euro que substitui desde 2012 o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira e o Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira, que tinham sido criados em resposta à crise da dívida pública na zona euro. O seu âmbito apenas diz respeito aos Estados-membro da zona euro. Esta instituição financeira tem a tarefa, em caso de ameaça à estabilidade da zona euro, de conceder «ajuda» financeira (empréstimos) a um ou mais países em dificuldade, a troco de condicionamentos estritos.
(MEE), e mil milhões do FMI), a troika impõe as suas recomendações habituais:

- aumento do tempo de trabalho, fazendo avançar a idade da reforma dois anos;
- redução de 4.500 funcionários até 2016;
- congelamento das pensões e dos salários até 2016;
- aumento do IVA de 17 para 19 %, à razão de um ponto por ano em 2013 e 2014 (a taxa reduzida do IVA aumentará de 8 para 9 %);
- aumento dos impostos/taxas sobre o tabaco, álcool, energia, transportes e combustíveis;
- cortes significativos na educação e na saúde...

Chipre junta-se ao clube dos países sob administração da troika. A população cipriota é submetida ao «apertar do cinto» para salvar os bancos privados, imprudentes e irresponsáveis, que perderam milhares de milhões especulando com a dívida grega.

Com efeito, dos 10 mil milhões de «ajuda», apenas 3,4 mil devem servir para satisfazer as necessidades de financiamento do governo. 2,5 mil milhões destinam-se a recapitalizar o setor bancário (a soma total necessária estima-se em 10,4 mil milhões de euros) e os 4,1 mil milhões que restam servirão de imediato para pagar a dívida quando o prazo vencer. Há que assinalar que o montante emprestado pela troika é mais ou menos equivalente à fortuna de 11,5 mil milhões de dólares do multimilionário cipriota John Fredriksen. De acordo com a Forbes, as fortunas dos três maiores multimilionários de Chipre perfazem a quantia de 13,6 mil milhões de dólares. [3]

Mas há mais. Para satisfazer os credores, o país deve pagar 13 mil milhões de euros, em vez dos 7 mil milhões previstos em finais de março. Esses 13 mil milhões suplementares (atualmente 75% do PIB anual da ilha) serão responsabilidade dos cipriotas que sofrem uma queda do poder de compra e veem a taxa de desemprego subir brutalmente de 3,7 % em 2008 para 14 % em fevereiro de 2013. [4]

Chipre, esse paraíso fiscal Paraíso fiscal Território caracterizado por cinco critérios (não cumulativos): (a) opacidade (via segredo bancário ou outro mecanismo como os trusts); (b) fiscalidade muito baixa ou nula para os não residentes; (c) facilidades legislativas que permitem criar sociedades de fachada, sem qualquer obrigação para os não residentes de terem uma actividade real no território; (d) ausência de cooperação com as administrações fiscais, aduaneiras ou judiciais de outros países; (e) fraqueza ou ausência de regulamentação financeira. A Suíça, a City of London e o Luxemburgo acolhem a maioria dos capitais colocados nos paraísos fiscais. Além disso existem as ilhas Caimão, as ilhas do Canal, Hong-Kong e outros lugares exóticos. com menos de 1,5 milhões de habitantes e onde as empresas não pagam oficialmente mais de 10 % de impostos sobre os seus rendimentos, deveria comprometer-se a fazer subir esse imposto para os níveis da Irlanda, 12,5 %. Uma escassa compensação devido à forte queda do imposto em dezenove pontos, já que era de 29 % em 2000. Por outro lado, o programa de privatizações aumentou para 1,4 mil milhões de euros e o banco central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). deve vender parte do ouro que possui em reserva por 400 milhões de euros.

A particularidade desta crise é que põe em causa a segurança dos depósitos bancários da população, uma vez que afeta a carteira dos cidadãos. O projeto inicial elaborado em março punha a hipótese de introduzir um imposto excecional de 6,75 % sobre os depósitos bancários inferiores a 100 mil euros e de 9,9 % sobre os depósitos superiores a esse patamar. Foi rejeitado pelo Parlamento em 19 de março de 2013. Após os deputados cipriotas impedirem a violação da sua própria lei, protegendo os ativos bancários inferiores a 100 mil euros, a UE propõe agora uma taxa de 60 % sobre os depósitos superiores a 100 mil euros, segundo o FMI. Apesar do alegado controlo sobre capitais e do encerramento dos bancos durante 12 dias em março, houve uma enorme fuga sob o olhar do BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
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A situação lembra muito a crise argentina de 2001, quando foi decretado o corralito, em 1 de Dezembro de 2001 (manteve-se até 1 de Dezembro de 2002), motivando a queda do governo de Fernando de la Rúa três semanas depois. O que aconteceu em Chipre, ainda que não represente mais do que 0,2 % da economia da Zona Euro (o seu PIB anual ronda os 17,8 mil milhões de euros) significa um salto qualitativo na Europa e representa a imensa possibilidade de estender mais além a crise da Zona Euro. Apesar de os recentes discursos do FMI apelarem para uma redução da austeridade, a instituição persiste e assina. O objetivo é controlar a aplicação das políticas de austeridade, mantendo os mesmos mecanismos de ajuste. A austeridade deve continuar custe o que custar, apesar do chumbo do Tribunal Constitucional, como aconteceu em Portugal, ou do «impasse» no Parlamento, como na Grécia. [5]

O problema dos bancos cipriotas é a dívida grega, que os bancos do Centro lhes impuseram

Os ativos do sistema financeiro cipriota, extremamente exposto à dívida grega, representam oito vezes o PIB do país. Em 2009 e 2010, os bancos cipriotas privados – entre os quais, os dois mais importantes, o Banco Laiki e o Banco do Chipre – investiram massivamente em títulos da dívida grega de alto risco, em busca de rendibilidade no mercado secundário (onde se negoceiam os títulos de dívida «de ocasião»), ao mesmo tempo que os bancos europeus tentavam, por todos os meios, livrar-se desses mesmos títulos.

O Deutsche Bank pode também desfazer-se desses títulos «de vez» (de dívida grega de alto risco) para os voltar a vender a bom preço aos bancos de Chipre. Com a desvalorização dos títulos da dívida grega, negociada entre a troika e a Grécia, em dezembro de 2012, como condição para a libertação de um nova tranche de endividamento, aliviou-se a situação dos detentores de dívida grega e todo o sistema bancário cipriota sofreu enormes perdas. O Banco Laiki e o Banco de Chipre afundaram-se. Mais uma vez a população foi chamada a salvar o setor bancário privado, que perdeu milhares de milhões, especulando de forma totalmente aberrante.

Tradução: Maria da Liberdade, Revisão: Rui Viana Pereira


Notas

[2A 18 de abril de 2013, os deputados alemães do Bundestag aprovaram o plano. Dos 600 deputados presentes, 486 votaram a favor, 103 contra e 11 abstiveram-se.

[3The World’s Billionaires, Forbes 2013,
http://www.forbes.com/billionaires

[5Os dois primeiros Memorandos da troika não foram aprovados pelo Parlamento grego, violando assim a Constituição do país.

Jérôme Duval

membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.

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