Parte 8 da série: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas

Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras

30 de Agosto de 2017 por Eric Toussaint


Os governos ocidentais apresentaram um extenso programa de exigências visando resolver a seu contento o contencioso à volta do repúdio das dívidas e das expropriações decretadas pelo governo soviético. Estas exigências foram apresentadas em Génova a 15 de Abril de 1922, 5 dias após o início da conferência, num documento intitulado «Relatório da Comissão de Peritos de Londres sobre a Questão Russa».



As exigências ocidentais feitas a Moscovo

O artigo 1º rezava assim:

  • «Artigo 1.
  • O Governo soviético russo deverá aceitar as obrigações financeiras dos seus predecessores, ou seja do Governo imperial russo e do Governo provisório russo, em relação às potências estrangeiras e respectivos cidadãos.»

A forma e o conteúdo de todo o documento indicam claramente que se tratava duma série de imposições que as potências ocidentais pretendiam ditar ao poder soviético.

No primeiro artigo constava também uma disposição que ia directamente contra os tratados que a Rússia soviética tinha assinado em 1920-1921 com as repúblicas bálticas e a Polónia (que tinha obtido a independência após a queda do governo czarista), que previam, como já vimos, que os Estados não deviam assumir as dívidas czaristas.

  • «Trata-se igualmente de saber se e em que medida os novos Estados saídos da Rússia e actualmente reconhecidos, assim como os Estados que adquiriram uma parte do território russo, deverão suportar uma parte das obrigações visadas nas presentes disposições.»

O artigo 3º impunha ao Governo soviético a responsabilidade dos actos praticados pelo regime czarista:

  • «Artigo 3.
  • O Governo soviético russo deverá comprometer-se a assumir a responsabilidade por todos os prejuízos materiais e directos, ocasionados ou não por contrato e sofridos pelos cidadãos das outras Potências, se tiverem resultado de actos ou negligência do Governo soviético ou dos seus predecessores (...)»

Isto entrava em contradição evidente e total com a posição de Moscovo.

O artigo 4º dava quase todos os poderes a organismos estrangeiros:

  • «As responsabilidades previstas nos artigos precedentes serão fixadas por uma Comissão da Dívida Russa e por Tribunais Arbitrais Mistos a criar.»

O Anexo 1 explicitava a composição da Comissão da Dívida Russa e respectivas competências. O Governo soviético ver-se-ia claramente em minoria na Comissão:

  • «Anexo 1.
  • Comissão da Dívida Russa.
  • 1. Será constituída uma Comissão da Dívida Russa, composta por membros nomeados pelo Governo russo, membros nomeados pelas outras Potências, e um presidente independente, que será escolhido por comum acordo entre os outros membros e exterior a eles, ou que, na falta de acordo, será designado pela Sociedade das Nações, que deverá pronunciar-se, por exemplo, através do seu Conselho ou do Tribunal de Justiça Internacional.»

A Comissão teria o poder de emitir nova dívida russa, para pagar as antigas dívidas do czar e indemnizar os capitalistas estrangeiros das empresas que tinham sido nacionalizadas:

  • «A Comissão terá as seguintes atribuições: a) prover a constituição e regulamento dos Tribunais Arbitrais Mistos, que deverão ser instituídos conforme as disposições do Anexo II, e dar todas as instruções necessárias com vista a assegurar a unidade da sua jurisprudência; (…)
  • entregar novas obrigações russas, em conformidade com as disposições previstas no Anexo II, às pessoas que a elas tiverem direito em resultado das decisões dos Tribunais Arbitrais Mistos; aos portadores de títulos de Estado antigos ou outros títulos e valores, em troca dos quais as novas obrigações russas devem ser repostas; às pessoas que a elas tenham direito a título de consolidação de interesses e reembolso de capital.»

A comissão dominada pelos credores teria poderes exorbitantes, ao ponto de poder determinar que recursos da Rússia deveriam ser utilizados para reembolsar a dívida:

  • «Determinar, se for caso disso, no conjunto dos recursos da Rússia, os que deverão ser especialmente afectos ao serviço da dívida; por exemplo, uma parcela de certos impostos ou dos direitos ou taxas incidentes sobre as empresas na Rússia. Controlar, se for esse o caso e se a Comissão achar necessário, a colecta total ou parcial desses recursos afectos e gerir o seu produto.»

Para as potências convidadas, tratava-se de obrigar a Rússia soviética a aceitar a instituição de uma tutela construída a partir do modelo que tinha sido imposto na Tunísia, no Egipto, no Império Otomano e na Grécia no decurso da segunda metade do século XIX.1

O Anexo III conferia plenos poderes, no tocante à emissão de dívida russa, à Comissão da Dívida, na qual as autoridades soviéticas eram marginalizadas:

  • «1. Todas as indemnizações pecuniárias acordadas no seguimento das reclamações formuladas contra o Governo soviético serão resolvidas pelo estabelecimento de novas obrigações russas no montante fixado pelos Tribunais Arbitrais Mistos. As condições nas quais essas obrigações serão resolvidas, assim como todas as questões resultantes da conversão de antigos títulos, e das operações respeitantes às novas emissões, serão determinadas pela Comissão da Dívida Russa.
  • 2. As obrigações darão lugar a juros, cuja taxa será fixada pela Comissão da Dívida Russa.»

Embora o governo soviético tivesse dito muito claramente que recusava pagar as dívidas contraídas após 1 de Agosto de 1914 para financiar a guerra, o texto do Anexo III afirmava que «em consequência da situação económica muito grave na qual se encontra a Rússia, os mencionados Governos credores estão dispostos a reduzir o montante das dívidas de guerra que a Rússia contraiu junto deles».


Tradução: Rui Viana Pereira


Próxima parte a publicar: O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922

Parte 1: Rússia: O repúdio das dívidas no cerne das revoluções de 1905 e 1917
Parte 2: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas
Parte 3: A revolução russa, o repúdio das dívidas, a guerra e a paz
Parte 4: A revolução russa, o direito dos povos à autodeterminação e o repúdio das dívidas
Parte 5: A imprensa francesa a soldo do czar
Parte 6: Os títulos de dívida russa após o repúdio
Parte 7: O jogo diplomático à volta do repúdio das dívidas russas
Parte 8: Em 1922, nova tentativa de submissão dos sovietes às potências credoras
Parte 9: O contra-ataque soviético: o Tratado de Rapallo de 1922
Parte 10: Em Génova (1922), as contra-propostas soviéticas face às imposições das potências credoras
Parte 11: Dívida: Lloyd George versus soviéticos
Parte 12 : A reafirmação do repúdio das dívidas é bem sucedida


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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