Biden: bem, mas não o suficiente...

Estados-Unidos 2021: Neoliberalismo maltratado e a esquerda à emboscada!

10 de Maio de 2021 por Yorgos Mitralias


Tendo sido membro do parlamento ou senador durante 39 anos e vice-presidente do país por mais oito, Joe Biden obviamente teve muito tempo para se definir como político. A Wikipedia corretamente coloca-o na “ala direita do Partido Democrata.” Então, o que acontece que justifica que, um após outro, economistas de esquerda e até de extrema esquerda se dizem “agradavelmente surpreendidos” com os resultados dos primeiros 100 dias da presidência de Biden, chegando até a observar que se afasta do neoliberalismo dominante?



Como não há milagres, o que está a acontecer é simplesmente que agora existem nos Estados Unidos não apenas movimentos populares muito importantes, mas também forças da esquerda radical desfrutando de uma influência social sem precedentes, capaz de se fazer sentir no centro da cena política, e mesmo de impor algumas das suas teses e propostas! E como prova, veremos de seguida como se expressa e manifesta esta capacidade sem precedentes da nova esquerda americana influenciar e “esquerdizar” as políticas do presidente Biden, um conservador experiente. E como a esquerda luta e se mobiliza em torno do seu próprio programa de reivindicações emancipadoras.

Assim, enquanto na Europa, onde os governantes quase não sentem qualquer pressão da esquerda, os planos de estímulo económico se resumem à receita estafada de austeridade draconiana, os planos correspondentes da Presidência de Biden distinguem-se pelas suas diferenças quantitativas e, acima de tudo, qualitativas. Não só porque representam investimentos de vários trilhões de dólares, mas sobretudo porque ignoram as vacas sagradas do neoliberalismo que são a dívida e a inflação, colocam a política à frente da economia e partem da satisfação das necessidades da população. Por outras palavras, tais planos representam uma mudança de rumo, após meio século de políticas neoliberais de todos os governos anteriores, tanto republicanos quanto democratas. E, certamente, constituem uma ruptura, ainda que apenas uma primeira ruptura, com os dogmas e as restrições do neoliberalismo!

Obviamente, a situação política doentia e a ameaça permanente representada por Trump e os seus seguidores, bem como a pressão sufocante exercida pelas cataclísmicas crises económica, de saúde, climática e social explicam, em parte, a mudança de rumo da nova administração americana. No entanto, os planos de estímulo do presidente Biden nunca se teriam concentrado no combate à catástrofe climática e à desigualdade, não fossem os desenvolvimentos de movimentos sociais de massas nos últimos 5-6 anos, nos Estados Unidos (em relação ao clima, à saúde, à educação, aos salários, à habitação, ao anti-racismo, às infraestruturas degradadas e, obviamente, aos direitos das mulheres e das minorias) que convenceram e mobilizaram dezenas de milhões de cidadãos em torno da necessidade de encontrar soluções para estes problemas o mais rapidamente possível.

Dito tudo isto, o que é que a nova esquerda americana está a fazer agora? Está a descansar sobre os louros, limitando-se ao clássico “apoio crítico” ao presidente Biden? A resposta é um enfático não. Principalmente porque a política externa da nova administração é - por enquanto - muito agressiva e reacionária, não muito diferente da das administrações anteriores [1]]]. Assim, enquanto, pelo menos dentro do país, prevalece a observação de que Biden é agradavelmente surpreendente, pois está a ir na direção certa, todos os movimentos sociais, sindicatos de classes e representantes da esquerda radical (de Alexandria Ocasio-Cortez e Bernie Sanders ao velho anarquista Noam Chomsky) declaram a uma só voz que “este é apenas um primeiro passo positivo”, mas não é suficiente porque os tempos e as necessidades das pessoas exigem muito mais!

É nas ruas, mas também no Parlamento e no Senado, que a esquerda radical americana opta por se opor e superar Biden não apenas em palavras, mas acima de tudo em atos. É assim que ao plano presidencial de US $ 2 trilhões para investir nos próximos cinco anos principalmente em infraestrutura e contra as desigualdades, se opõe o projeto de lei desta esquerda - já tramitado no Parlamento - que prevê investimentos de trilhões de dólares por ano, ou 10.000 bilhões para o próximos 10 anos, em infraestruturas, clima e emprego! Mas a diferença para o plano presidencial não é apenas quantitativa. É acima de tudo qualitativa, já que seu próprio plano denominado THRIVE (Transformar, Curar e Renovar Investindo numa Economia Vibrante), coloca as minorias oprimidas, os povos indígenas, os sindicatos e mais geralmente as vítimas das políticas neoliberais e das catástrofes climáticas na frente das suas prioridades. Como? Ao estipular que 50 % dos investimentos do plano devem ir para essas comunidades oprimidas, que aliás deveriam fornecer 50% dos cidadãos contratados para trabalhar no plano THRIVE. E também ao prever a constituição de órgãos representativos comuns desses grupos sociais oprimidos, de modo que sejam esses órgãos, e mais ninguém, quem decide onde e como serão feitos os investimentos, e quais de entre as suas necessidades devem ser atendidas com prioridade.

Não é por acaso que o plano THRIVE, que se inspira no Green New Deal, foi assinado e apresentado pelo senador Ed Markey que, juntamente com Alexandria Ocasio-Cortez, desenvolveu o plano Green New Deal há dois anos. É, portanto, interessante ver como este mesmo senador Markey apresentou, há algumas semanas, a “filosofia” do plano THRIVE e, de forma mais geral, da nova esquerda americana: “Os políticos não podem continuar a ignorar as realidades vividas por milhões de pessoas, como os Negros, os “mestiços”, os nativos, os imigrantes e famílias da classe trabalhadora em toda a América. As quatro crises da América estão literalmente a matar-nos. São as mudanças climáticas, a pandemia de saúde pública, a injustiça racial e a desigualdade económica. Não podemos superar apenas uma dessas crises. Precisamos desenvolver um plano de ação que aborde todos elas de uma vez ... “

É possível que um projeto de lei como o THRIVE seja aprovado e se torne lei? Os seus inspiradores não têm ilusões. Não será votado, embora já haja uma centena de deputados democratas que o apoiam! Porém, por enquanto, o objetivo é diferente: este projeto de lei será usado como uma arma para provocar agitação social de grandes dimensões, mobilizando as comunidades e as classes diretamente interessadas nas suas reivindicações e planos de ação concretos. De facto, o mesmo objetivo é partilhado pelos autores de outro projeto de lei ainda mais ambicioso e radical, que também se contrapõe aos planos do presidente Biden.

Trata-se do gigantesco plano do CCC (Civilian Climate Corps for Jobs and Justice Act) de Alexandria Ocasio-Cortez (conhecida como AOC) e do senador Ed Markey, que se opõe ao plano presidencial de mesmo nome. Ambos são uma versão atualizada do famoso Civilian Conservation Corps (CCC) do presidente Roosevelt que, na década de 1930, colocou 3 milhões de desempregados a trabalhar para implementar o seu New Deal. Mas as semelhanças acabam aí. Na verdade, enquanto o plano de Biden não vai além da contratação de mais de 200.000 trabalhadores, o plano da AOC-Markey propõem-se criar um «exército» de 1,5 milhão de trabalhadores para tratar algumas das maiores mazelas dos Estados Unidos: as infraestruturas envelhecidas e dilapidadas, água perigosamente poluída com chumbo (quase metade dos americanos não tem água potável), poluição do ar, incêndios cada vez mais devastadores e, acima de tudo, as alterações climáticas e o desemprego, já que se calcula que este plano pode muito bem criar 15,5 milhões de novos empregos.

Mas, cuidado: as diferenças entre este plano e os de Biden e Roosevelt são enormes. Enquanto o plano de Roosevelt, e até certo ponto o de Biden, deixou os seus trabalhadores sem segurança social e lhes pague mal, o plano de que AOC-Markey acabam de apresentar na Câmara dos Representantes garante cobertura de saúde completa e abrangente, um salário de US $ 15 por hora e bolsas para formação vocacional para os seus 1,5 milhão de trabalhadores. E ao contrário do CCC de Roosevelt, que aceitava a discriminação racial e excluía mulheres e minorias, o CCC da Nova Esquerda Americana dá prioridade às necessidades das comunidades oprimidas (a mais importante das quais é a dos povos nativos dos Estados Unidos), livres de decidir em conjunto com os sindicatos e as comunidades locais, o conteúdo e o planeamento das suas ações!

Portanto, deparamos nos com planos que vão muito além da resolução simples de problemas, por maiores que sejam, e potencialmente colocam o problema da construção de uma sociedade de transição democraticamente organizada. E tudo isso de forma clara, concreta e diretamente compreensível por grande parte da população, e também com a participação ativa desta mesma população, a que caberá o papel de protagonista!

Em última análise, muito, senão tudo, vai depender da direção que tomar a luta de classes, para que lado se inclina o equilíbrio social. E, acima de tudo, até que ponto vamos testemunhar a repetição de greves de massas e outras grandes mobilizações sociais nas quais o New Deal se baseou na década de 1930. Portanto, terminamos dando a palavra àquele que talvez seja a figura mais emblemática do novo sindicalismo de luta de classes americana, a presidente do sindicato das tripulações aéreas Sara Nelson, que declara sem rodeios que é chegado o momento da mobilização dos trabalhadores: “Cabe-nos explorar este momento e utilizar esta situação favorável para aprovar a Lei PRO (projeto de lei que protege os direitos sindicais), recuperar direitos eleitorais, organizar aos milhões, lutar contra a desigualdade, lutar pela igualdade, ganhar seguro de saúde para todos, salvar o planeta com bons sindicatos e garantir o desenvolvimento da nossa democracia ”...


Tradução: António Pedro Dores


Notas

[1[[Pouco depois da publicação da versão grega deste texto, surgiram notícias sobre a posição do governo dos Estados Unidos a favor da suspensão das patentes de vacinas anti-covid. Esta é mais uma, mas desta vez um acontecimento muito importante que confirma plenamente que os movimentos sociais e a nova esquerda americana são de fato capazes de influenciar e até mudar para melhor as políticas do presidente Biden e de seu governo. A sequência de acontecimentos promete ser emocionante.

Yorgos Mitralias

O jornalista, Yorgos Mitralias é membro fundador do Comitê contra a Dívida Grega, organização afiliada do Comitê para a Anulação da Dívida dos Países do Terceiro Mundo (CADTM) e da Campanha grega para a auditoria da dívida.

CADTM

COMITE PARA A ABOLIÇAO DAS DIVIDAS ILEGITIMAS

8 rue Jonfosse
4000 - Liège- Belgique

00324 60 97 96 80
info@cadtm.org

cadtm.org