Série: ABC do Capital no Século XXI de Thomas Piketty
Parte 3
24 de Março de 2021 por CADTM
A greve geral de maio de 1968 em França deu origem a um grande aumento do salário mínimo durante 15 anos
Não temos aqui espaço para resumir a evolução das desigualdades de rendimento ao longo dos dois últimos séculos. Limitemo-nos a destacar a evolução desde 1968 em França. A greve geral de maio de 1968 em França e os acordos de Grenelle daí resultantes deram origem a um grande aumento do salário mínimo durante 15 anos: «Foi assim que o poder de compra do salário mínimo entre 1968 e 1983 progrediu mais de 130 %, enquanto no mesmo período o salário médio apenas progrediu cerca de 50 %, devido a uma forte compressão das desigualdades salariais. A ruptura com o período precedente é clara e massiva: o poder de compra do salário mínimo apenas progredira 25 % entre 1950 e 1968.» [1]
Em 1982-1983 deu-se uma mudança de rumo, quando o governo do socialista François Mitterrand faz uma viragem à direita. Os rendimentos mais elevados, os do 1 %, aumentaram 30 % entre o fim dos anos 1990 e 2010, os dos 0,1 % aumentaram 50 % num contexto de estagnação dos salários. [2]
Em 1982-1983 o governo de François Mitterrand faz uma viragem à direita
Se atravessarmos para o outro lado do Atlântico, notamos que o salário mínimo legal foi introduzido em 1933, no início da presidência de F. Roosevelt, 20 anos antes da França. O máximo foi atingido em 1969 (sob o mandato de Lyndon Johnson), quando o salário mínimo atingiu o equivalente a 10 dólares de 2013. A partir daí decaiu e em 2013, com Barack Obama, mal chegava a 7,25 dólares por hora. [3] Note-se que em 2021 ainda se mantém a esse nível terrivelmente baixo. Contudo, a proposta – promovida entre outros pelo senador Bernie Sanders – de incluir na lei de relançamento da economia – discutida no Congresso dos EUA no início de março de 2021 – um aumento do salário mínimo para os 15 dólares foi chumbada.
Continuando a olhar para o conjunto dos rendimentos (salários, rendas, lucros, dividendos, etc.), verificamos que de 1977 a 2007, os 10 % mais ricos se apropriaram de três quartos do aumento do rendimento nacional; o 1 % mais rico absorveu 60 %. Para os 90 % restantes o crescimento foi de 0,5 % ao ano. [4]
O salário mínimo caiu nos EUA ao longo dos últimos 40 anos
Se tivermos em conta a distribuição do rendimento nacional em vários países chave, constatamos que em toda a parte, ao longo das últimas décadas, o 1 % e o milésimo mais ricos aumentaram os seus proveitos.
Quinhão do 1 % mais rico no rendimento nacional em 2010: EUA cerca de 20 %; Canadá e Reino Unido, 14-15 %; Alemanha, 11 %; Austrália, 9-10 %; Japão, França, Espanha, Itália, 9 %; Suécia e Dinamarca, 7 %. [5]
Quinhão do milésimo superior (0,1 %) no rendimento nacional: nos anos de 1970, EUA 2 %; França e Japão 1,5 %; em 2010, EUA 10 % (12 % se tivermos em conta as mais-valias sobre acções); França e Japão 2,5 %. [6]
Vejamos alguns países ditos emergentes, daqueles em que Thomas Picketty pôde recolher dados fiáveis [7]. Quinhão do 1 % mais rico no rendimento: China 4-5 % em 1980 e 10-11 % em 2010; Índia 4 % em 1980 e 12 % em 2010; Argentina 10 % em 1970 e 18 % em 2010; Colômbia 18 % em 2000 e 20 % em 2010.
O interesse destes dados, além de fornecerem um aspecto central na descrição das desigualdades, é o de demonstrarem que a evolução dos rendimentos está claramente ligada às lutas sociais e às políticas dos governos em exercício.
A evolução dos rendimentos está ligada às lutas sociais
Mais uma razão para afirmarmos que a acção colectiva é o elemento central que permite conquistar melhorias de salário, em particular dos mais desprovidos, e reduzir as desigualdades. A acção é decisiva para obter decisões governamentais e cedências do patronato.
Em França, em 1914 a taxa de imposto mais alta sobre os níveis superiores de rendimento era apenas de 2 %; passa a 50 % em 1920, 60 % em 1924 e chega aos 72 % em 1925. Em 1920, a decisão de aumentar súbita e pronunciadamente estes escalões de imposto foi tomada num Assembleia Nacional de composição maioritariamente direitista, que teve medo da greve geral e da radicalização que poderia resultar da recusa de fazer algumas concessões.
Em França, em 1914, a taxa mais alta de imposto sobre os níveis superiores de rendimento era apenas de 2 %. Passa para 50 % em 1920; para 60 % em 1924; e chega aos 72 % em 1925
Na Alemanha, passa de 3 % (1891-1914) para 40 % em 1919-1920, em plena crise revolucionária. Nos EUA, passa de 8 % antes da Guerra de 14-18, para 77 % depois da guerra. [8]
Nos EUA, a taxa de imposto mais elevada passa de 8 % antes da Guerra de 14-18, para 77 % depois da guerra
Assistimos à mesma evolução no que diz respeito aos impostos sobre heranças. O legislador impôs taxas muito altas, sob pressão popular. Isto inicia-se logo a seguir à Guerra de 14-18 e continua a progredir no seguimento da crise dos anos 1930. A taxa mais alta, que em França antes da guerra não chegava aos 6,5 % (na prática reduzia-se a 1 %), passa para 30 %. Na Alemanha passa de 0 % antes da guerra, para 35 % depois da guerra. Nos EUA o imposto sobre heranças chega aos 70 % em 1937-1939 [9]. Como Picketty sublinha, a taxa fiscal aplicada às heranças é muito elevada e considerada vital para os 10 % mais ricos, pois a parte das grandes fortunas herdadas é da ordem dos 60-70 %. [10]
Voltemos às taxas superiores de imposto sobre o rendimento. Em vésperas da crise de outubro de 1929, a taxa superior é levantada para 25 % pelo presidente Hoover. Em 1933, Roosevelt fá-la passar para 63 % logo no primeiro ano da sua presidência, depois para 79 % em 1937 (ultrapassando assim os 70 % aplicados a partir de 1919, depois para 88 % em 1942 e por fim 94 % em 1944. A taxa superior mantém-se nos 90 % até meados da década de 1960. Repare-se que o candidato democrata G. McGovern, em 1972, propõe na sua campanha presidencial elevar a 100 % as taxas superiores do imposto sobre os rendimentos. [11] Nixon ganha essas eleições. A taxa desce progressivamente até aos 70 % no início dos anos 1980. Ronald Reagan redu-la então para 60 %. No final da década de 1980, cai para 40 %; depois, no mandato de G. W. Bush, desce para 35 %. No período de 1932-1980, a taxa superior era em média de 81 % (aos quais se juntavam 5 a 10 % cobrados ao nível dos Estados).
A França e a Alemanha aplicam, dos anos 1940 aos de 1980, taxas superiores a 50 e 70 %. O Reinuo Unido, a taxa mais alta atinge os 98 % nos anos 1940 e novamente nos anos 1970. [12]
A França e a Alemanha aplicaram, do fim da Segunda Guerra Mundial aos anos 1980, taxas de imposto superiores a 50 e 70 % sobre os rendimentos mais elevados
Por fim, note-se que a taxa mais alta é aplicada na prática sobre os rendimentos auferidos pelo 1 % mais rico da população.
A redução radical das taxas superiores, particularmente nos EUA e no Reino Unido a partir de 1980, permitiu um aumento fortíssimo dos salários dos altos dirigentes das empresas e do 1 % mais rico no rendimento nacional e no património. [13]
Conclusão de Piketty, depois de passar em revista a evolução dos impostos sobre os rendimentos mais altos: é preciso uma taxa superior muito elevada, mais de 80 % (mais exactamente de 82 %!), aplicada acima dos 500.000 § ou do milhão [14]; 50 ou 60 % sobre os rendimentos acima dos 200.000 $ [15].
Conclusão de Piketty: é preciso aplicar uma taxa superior de imposto muito elevada, mais de 80 %, sobre os rendimentos acima dos 500.000 $ ou do milhão
Piketty reconhece que, no contexto actual, isto não será facilmente alcançável. Nos EUA o Congresso é largamente favorável a uma taxa de 1 %. Não é alheio a isto o facto de, numa estimativa séria, o património médio dos membros do Congresso dos EUA se elevar a 15 milhões de dólares em 2012. [16]
Também neste aspecto os resultados da investigação de Piketty mostram que é preciso combinar duas acções decisivas [17]:
Tradução de Rui Viana Pereira
[1] Capítulo 8 (p. 456-457 na edição francesa). Todas as referências aqui feitas dizem respeito a: Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, ed. Círculo de Leitores, 2014, 912 pp.; ed. Amazon/Intrínseca, 2014; ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014. 669 pp.
[2] Capítulo 8 (p. 458-459 na ed. francesa).
[3] Capítulo 9 (p. 489 na ed. francesa).
[4] Capítulo 8 (p. 469-470 na ed. francesa).
[5] Capítulo 9 (p. 501-503 na ed. francesa).
[6] Capítulo 9 (p. 506-507 na ed. francesa).
[7] Capítulo 9 (p. 517-519 na ed. francesa).
[8] Capítulo 14 (p. 805-806 na ed. francesa).
[9] Capítulo 14 (p. 811-815 na ed. francesa).
[10] Capítulo 12 (p. 707 na ed. francesa).
[11] Capítulo 14 (p. 820 na ed. francesa).
[12] Capítulo 14 (p. 819 na ed. francesa).
[13] Capítulo 14 (p. 824-826 na ed. francesa).
[14] Capítulo 14 (p. 831 na ed. francesa).
[15] Capítulo 14 (p. 832 na ed. francesa).
[16] Capítulo 14, nota 3 (p. 834 na ed. francesa).
[17] Esta conclusão não é expressa por Thomas Piketty.
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