Entrevista com Jérôme Duval, do CADTM
28 de Abril de 2016 por Jérôme Duval , Milena Rampoldi
Jérôme Duval é militante do CADTM - Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, fundado en 1990 em Liège, na Bélgica, e presente nos quatro cantos do mundo, em rede. O CADTM participou notadamente da auditoria da dívida pública no Equador, na Comissão parlamentar da verdade sobre a dívida grega e participa dos movimentos contra as dívidas odiosas em diversos países. Ele aceitou responder às nossas perguntas, às vésperas da assembleia mundial da rede, que acontecerá no fim de abril em Tunis. - Milena Rampoldi, ProMosaik/Tlaxcala
Quais os principais objetivos do CADTM ?
Tal como estipulado em nossos textos de fundação, o CADTM está engajado na emergência de um mundo mais justo, em respeito à soberania dos povos, da justiça social, da igualdade entre homens e mulheres. Seu principal trabalho, ancorado pela problemática da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. , consiste em realizar ações e elaborar alternativas radicais mirando na construção de mundo guiado pela soberania, solidariedade e cooperação entre os povos, o respeito à natureza, a igualdade, a justiça social e a paz. Trata-se de por um ponto final à espiral infernal do endividamento insustentável do Sul como do Norte e de intervir para o estabelecimento de modelos de desenvolvimento socialmente justos e ecologicamente duráveis.
A dívida faz parte de um sistema que precisa ser combatida em seu conjunto, mas, para o CADTM, a anulação das dívidas ilegítimas não constitui um fim em si mesma. Trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente, para garantir a satisfação das necessidades e dos direitos humanos. É preciso, portanto, ir além e colocar em prática outras alternativas radicais que libertem a humanidade de toda forma de opressão: social, patriarcal, neo-colonial, racial, de casta, política, cultural, sexual e religiosa.
Você poderia explicar aos nossos leitores o que é «dívida ilegítima»?
A dívida ilegítima não é uma noção técnica ou jurídica; é um conceito político. A dívida ilegítima é aquela que vai contra os interesses da população, isentando-na, portanto, de pagá-la. A comissão da verdade sobre a dívida grega, instalada pela Presidente do Parlamento helênico, Zoé Konstantopoulou, para identificar as partes odiosas, ilegais, ilegítimas e insustentáveis da dívida pública grega, define assim esse conceito:
«A dívida ilegítima é uma dívida que o devedor não pode ser obrigado a pagar pelo fato de o empréstimo, os títulos e papéis financeiros, as garantias ou as condições de pagamento previstas estejam em desacordo com o Direito (tanto nacional quanto o internacional) ou contra o interesse coletivo ; ou porque os contratos e condições são manifestadamente injustos, excessivos, abusivos ou inaceitáveis de algum maneira; ou, ainda, porque as condições de pagamento do empréstimo, a sua garantia, contém ou preveem medidas políticas que violam as leis nacionais ou os padrões internacionais em matéria de direitos humanos; ou porque o empréstimo, ou sua garantia, não é usado para beneficiar a população, ou a dívida é o produto de uma conversão de dívida privada (comercial) em dívida pública, sob pressão dos credores.»
É importante lembrar que essa definição repousa sobre os princípios gerais do Direito internacional. É sobre esse conceito que se apoiam inúmeros movimentos sociais que reivindicam o não pagamento de toda dívida considerada ilegítima, que é o caso de boa parte das dívidas públicas dos nossos Estados, em nome da qual os governos aplicam políticas anti-sociais e de austeridade.
Quais são os aspectos principais de opressão sobre o coletivo?
Nós vivemos em um mundo feito de guerras para o esgotamento dos recurso naturais e das terras, onde reina a corrida do lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). de alguns em detrimento de todos os outros. Esse mundo gera desigualdades crescentes e exclusões, guerras e a fome. Ele se baseia na superexploração sistemática da nossa força de trabalho, na manipulação do pensamento moldado por nossos sistemas educativos e midiáticos, e na repressão física contra a contestação. Essa opressão se instala sorrateiramente em nosso cotidiano até se tornar a norma, a ponto da verdadeira guerra da Algeria não aparecer mais nos livros de história francesa ou de chamarmos «plano de resgate» a um Estado o que na verdade é o resgate de bancos privados. Nós vamos culpabilizar o cidadão - visto como um simples consumidor - para que ele reduza seu consumo de energia e troque as lâmpadas de sua casa, enquanto que enormes telas, vorazes em energia, são instaladas dentro do metrô para nos inundar de propaganda. Em um mundo onde vivemos sob os ditames do super-consumo de mercadorias embalados em camadas e mais camadas de plástico, nos incentivam a reciclar nosso lixo, enquanto que os países industrializados exportam seus resíduos tóxicos para os países pobres e continuamos a promover as indústrias nuclear, armamentista e química, que estão a transformar o planeta num verdadeiro lixão.
Como os povos podem se emancipar? E como lutar contra todo tipo de opressão?
Eu não acredito em receitas milagrosas pois tudo depende o contexto social e político e, em última análise, da co-relação de forças, mas a solidariedade entre os povos e a auto-emancipação são dois fatores essenciais. Ora, no mundo capitalista no qual vivemos, os interesses privados são exacerbados por uma maior competição entre as sociedades e os seres humanos. É preciso entender o capitalismo como um sistema destrutivo e mortífero, como oposta à vida, um sistema que desumaniza e privatisa tudo. Da água que nos sacia a seda à nossa futura aposentadoria, tudo vira mercadoria. É preciso, por isso, e desde já, humanizar nossas relações cotidianas, socializarmos nossos saberes e reforçar nossas experiências e resistências que se multiplicam longe dos grandes debates midiáticos. É preciso ser você mesmo a mídia, se quisermos difundir as inúmeras vitórias de lutas locais que não são transmitidas - ou são acobertadas - pela grande mídia. Essas boas notícias (leia, por exemplo, o site Bonnes nouvelles en francês), tão pequenas que possam ser, nos provam a cada dia que alternativas são possíveis; elas trabalham rumo à demolição do dogma capitalista que sugere não haver alternativa, conhecido como TINA («There is no alternative» de Margaret Thatcher) e que deve morrer. Essa informação vital e subversiva pode nos encorajar e nos unir a fim de alargar os círculos de resistência contra a ordem capitalista opressiva. É claro que não é fácil, mas como dizia Antonio Gramsci, «é preciso aliar o pessimismo da inteligência com o otimismo da vontade». Se faz necessário recuperar as palavras apropriadas pelo sistema que nós combatemos, a fim de falar, criar, de resistir juntos para vivermos enfim o presente. A emancipação dos povos passa, necessariamente, por sua conscientização de classes, por sua unificação enquanto «povo classe» dos 99% contra o 1% que explora. Mas a tomada de consciência não é nada se não transformar em voz e em ação.
Conte-nos sobre a rede CADTM
Em 1989, o «Chamado da Bastille», lançado em Paris, afirma que «só a solidariedade dos povos pode fissurar o poder do imperialismo econômico» e convida todas as forças populares do mundo a se unirem pela anulação imediata e incondicional da dívida dos países ditos «em desenvolvimento». Em resposta a esse chamado, o Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) é fundado na Bélgica em 15 de março de 1990.
O CADTM internacional se mantém em rede e é constituído por cerca de 30 organizações ativas em mais de 25 países espalhados em 4 continentes. A cada três anos, para coordenar seu trabalho internacional e continental, o CADTM organiza sua Assembleia Mundial. A próxima Assembleia acontecerá em Tunis entre os dias 26 e 30 de abril de 2016. A RAID ATTAC Tunísia, membro da rede, propôs de acolher a Assembleia Mundial do CADTM em seu país depois que as autoridades marroquinas não autorizaram a organização da atividade internacional no país como havia sido previsto inicialmente. [1] Ao negar ter recebido os documentos nas prefeituras de Ait Melloul e Bouznika, o Marrocos se afunda na lama antidemocrática. Essa proibição, digna de um regime totalitário, se soma às restrições contínuas impostas à associação ATTAC CADTM Marrocos, impedindo que esta última exerça suas atividades em conformidade às leis daquele país.
A Assembleia Mundial da rede é um momento importante do Comitê, onde se decide coletivamente novas adesões de organizações que impedem para ingressar à rede. Nós proporemos, sem dúvida, uma mudança do nome da Organização, pois o «Terceiro Mundo» não é mais atributo de um sul longínquo, mas se espalha agora por todo o planeta, basta ver a situação da Grécia e da Ucrânia na Europa. Nós também desenvolvemos um trabalho intenso nos países do Norte, e estamos particularmente atentos à emergência de novos movimentos sociais que querem auditar a dívida para repudiar o pagamento, como na Espanha, além de continuarmos trabalhando na auditoria da dívida grega. Aliás, não existe um mundo desenvolvido e outro subdesenvolvido, mas um só mundo mal desenvolvido, como nos lembra o CETIM. [2]
O apoio aos movimentos sociais é uma prioridade para o CADTM. Ele participa, numa perspectiva internacionalista, na construção de um amplo movimento popular, consciente, crítico e mobilizado. Convencido da necessidade de fazer convergir as lutas emancipatórias, o CADTM internacional apoia todas as organizações e coalizões que agem pela defesa da igualdade e da justiça social, pela preservação do meio ambiente e pela paz.
E a dívida dos Estados Unidos, que é a maior do mundo, e passa da marca de 18 trilhões de dólares? O que vocês têm a dizer?
A dívida dos EUA engordou consideravelmente para salvar os bancos privados através de um plano - dito - de ’resgate’, de mais de 3,3 trilhões de dólares injetados entre 2008 e 2013 e esses mesmos bancos expulsaram mais de 14 milhões de famílias de suas casas desde 2005. Apesar disso, existem diferenças fundamentais com relação às dívidas de outros países. Se os EUA são os mais endividados do mundo, atingindo o patamar de 19 trilhões de dólares em março de 2016 (ou 103% do PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
), as consequências não são as mesmas que para outros países empobrecidos pelo «sistema da dívida», por diversas razões.
Façamos uma breve retrospectiva. Ao sair da segunda guerra mundial, os EUA se impuseram como o principal credor do mundo. Principal potência econômica do mundo capitalista, eles controlam as grandes instituições financeiras internacionais que endividam o planeta todo, como o FMI e o Banco Mundial, ambos com sede em Washington e nas quais os EUA gozam do poder de veto. Além disso, os Estados Unidos não precisam de grandes reservas de câmbio, uma vez o resto do mundo utiliza o dólar como moeda de pagamento internacional, o que constitue outro privilégio fundamental.
Além disso, os títulos da dívida pública de certos países desenvolvidos, como os estadunidenses, são considerados risco zero e assim encontram compradores sem dificuldades. É o caso da China, que detém 1,24 trilhões de dólares, ou do Japão. O que é menos conhecido, é que é também o caso de inúmeros países africanos e da Rússia também, que aumentou seus investimentos em 2015 e hoje é o 15º maior detentor de títulos do tesouro americano, com 92 bilhões de dólares. Se os EUA conseguem manter esse nível de endividamento que ultrapassa US$ 19 trilhões, ou cerca de 10 vezes a somatória das dívidas externas dos países em desenvolvimento (US$ 1,9 trilhões), é porque todo o resto do planeta empresta dinheiro para os Estados Unidos. Portanto, enquanto os títulos do tesouro tiverem uma nota tão elevada pelas agências de risco privadas que eles mesmos controlam (Fitch Ratings, Standard & Poor’s et Moody’s [3]), os EUA podem continuar a se endividar tranquilamente e, assim, financiar o déficit de seu orçamento.
Adicionalmente, os EUA têm a possibilidade de tomar dinheiro emprestado do FED (equivalente ao que seria o banco central
Banco central
Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE).
daquele país). Assim, do total da dívida pública (US$ 19 tri), US$ 5,3 trilhões correspondem à dívida do governo com o FED. Lembremos que essa opção é vetada na União Europeia, onde os Estados membros não podem tomar dinheiro emprestado de seus respectivos bancos centrais ou do Banco Central Europeu
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
, e não têm outra alternativa senão tomar dinheiro emprestado, com altas taxas de juros, dos bancos privados; bancos estes que recebem dinheiro barato do Banco Central Europeu. Um negócio super lucrativo pros bancos...
http://tlaxcala-int.org/upload/gal_13190.jpg
Por fim, não podemos nos silenciar diante da dívida privada dos estudantes estadunidenses, que dependem de um sistema universitário privado caríssimo. A dívida dos estudantes dos EUA ultrapassa a casa de US$ 1,2 trilhões de dólares. Esse valor ultrapassa a soma de todas as dívidas externas dos países da América Latina e da África juntas. Ao final de seus estudos, muitos estudantes desempregados se vem presos na armadilha da dívida, de US$ 35 mil em média, em 2015. Uma dívida que eles penam a quitar, às vezes arrastada até a aposentadoria. O coletivo cidadão Strike Debt organisa os estudantes endividados e os apoia no combate contra os bancos.
Fonta: Tlaxacala
[1] ATTAC/CADTM Marrocos, “The Moroccan authorities refuse to give their approval to ATTAC Morocco in order to organize the international assembly of CADTM network”, 22 de março de 2016.
[2] CETIM : http://www.cetim.ch/presentacion-del-cetim/
[3] Essas agências são encarregadas de avaliar o risco de calote da dívida de um País, Estado, Município ou empresa para assessorar os investidores. Sempre bom lembrar que, 4 dias antes da falência da Enron, em 2001, essas agências a atribuíam a nota máxima, o que se repetiu à véspera da quebra do banco Lehman Brothers...
membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.
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Écrivaine, traductrice, éditrice et militante des droits humains, Milena Rampoldi est née en 1973 à Bolzano/Bozen, dans le Haut-Adige/Tyrol du Sud italien, dans une famille bilingue et biculturelle. Elle est la fondatrice de l’association ProMosaik pour le dialogue interculturel et interreligieux, qui s’engage pour la paix et les droits humains. Elle est membre de Tlaxcala.