O Manifesto ReCommonsEurope: uma iniciativa para fazer avançar a esquerda popular na Europa

8 de Abril de 2019 por Eric Toussaint


Enquanto a campanha para as eleições europeias de fins de maio de 2019 tarda em arrancar e suscita pouco interesse, a iniciativa avançada por ReCommonsEurope com o «Manifesto para Um Novo Internacionalismo dos Povos Europeus», teve um início prometedor. O texto foi redigido ao longo de um ano por 16 pessoas activas em seis países diferentes (Bélgica, Bósnia, Estado Espanhol, França, Grécia e Grã-Bretanha), militantes de diversas organizações e movimentos (sindicatos, partidos políticos, movimentos activistas) e detentoras de perícias diversas e complementares (economia, ciências políticas, filosofia, antropologia, direito, ecologia, sindicalismo, feminismo, solidariedade Norte/Sul, etc.). Três gerações encontram-se representadas. O Manifesto é sustentado por mais de 160 assinaturas provenientes de 21 países europeus. Nesses 160 signatários, as mulheres encontram-se em maioria. A recolha de assinaturas continua.




Pontos de maior destaque na iniciativa ReCommonsEurope

ReCommonsEurope emana da vontade de colaboração entre duas redes europeias, o CADTM e a EReNSEP, e um sindicato do País Basco, o ELA. As duas redes CADTM e EReNSEP estiveram directamente envolvidas na experiência grega de 2015 e daí tiraram uma série de lições convergentes. Há mais de 15 anos que o sindicato ELA e o CADTM se empenham sistematicamente em diversas iniciativas internacionalistas, do Fórum Social Mundial lançado em 2011 na Altersummit, à experiência do Fórum Social Europeu. Os militantes e as militantes do ELA, do CADTM e da EReNSEP também estiveram directamente envolvidos nos combates que se desenrolaram nos respectivos países. Além disso participaram activamente nas discussões e reuniões do Plano B, desde 2015 até aos dias de hoje.

O texto do Manifesto foi elaborado no decurso de três reuniões efectuadas em 2018 e redigido de maneira colectiva em 2019. Surge nomeadamente na sequência do apelo intitulado «Os Desafios da Esquerda na Zona Euro Zona euro Zona composta por 18 países que utilizam o euro como moeda: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Letónia (a partir da 1-01-2014), Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Portugal, Eslováquia e Eslovénia. Os 10 países membros da União Europeia que não participam na zona euro são: Bulgária, Croácia, Dinamarca, Hungria, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia, Reino Unido e Suécia. », texto colectivo apresentado por mais de 70 co-signatários em fevereiro de 2017.

O objectivo de ReCommonsEurope é simultaneamente modesto e ambicioso: demonstrar que é possível e necessário pôr em pé um conjunto de medidas radicais na Europa.

O Manifesto resulta desta conclusão: uma grande parte das organizações políticas de esquerda e dos movimentos sociais tem medo de propor medidas realmente anticapitalistas, antipatriarcais, antirracistas e ecossocialistas. Algumas organizações praticam cinicamente o «social-liberalismo», o que as coloca claramente fora do campo da esquerda.

Ao invés de uma esquerda que tem medo da própria sombra ou que se compromete totalmente com a ordem estabelecida, ReCommonsEurope propõe medidas radicalmente ecossocialistas, feministas, antirracistas, medidas claramente a favor do internacionalismo dos povos e visando uma revolução social e política.

A experiência grega de 2015 serve frequentemente de papão, quando é apresentada como demonstração da impossibilidade de pôr em marcha um programa radical. Ora os membros de ReCommonsEurope tiram da experiência grega um ensinamento completamente diferente – e felizmente não são os únicos. Para os membros de ReCommonsEurope, o governo do primeiro-ministro Alexis Tsipras renunciou desde o início a aplicar realmente os compromissos radicais que tinham sido assumidos perante o povo grego e isso conduziu ao desastre que é do conhecimento geral.

Para ReCommonsEurope, trata-se de afirmar a necessidade de aplicar um programa radical e adoptar na prática uma estratégia feita de mobilizações, desobediência, autoorganização popular.

Os redactores e redactoras do Manifesto têm pontos de vista diferentes sobre algumas questões que será preciso dissecar: deve-se abandonar a zona euro? É possível e útil criar uma moeda complementar? Será preciso expropriar a totalidade dos bancos para construir um serviço público, ou basta criar um pólo bancário público que entrará em competição com os bancos privados capitalistas? ReCommonsEurope pretende ser um lugar de confronto de ideias, um lugar de debate sobre as medidas a tomar. O Manifesto não é um documento para abraçar ou rejeitar. É um convite ao debate.

Os militantes e as militantes que se reúnem em torno de ReCommonsEurope estão perfeitamente conscientes de que não basta avançar com um programa, por melhor que ele seja. É claro que serão as lutas o factor determinante para mudar profundamente as relações de força e permitir pôr em prática uma série coerente de medidas económicas, políticas, sociais, culturais, etc. Mas aqueles e aquelas que se reúnem no quadro de ReCommonsEurope estão convencidas que para que as lutas resultem em mudanças profundas, é fundamental estabelecer o compromisso de adoptar um conjunto de medidas aplicadas por um governo popular.

A crise climática, as violentas políticas de austeridade, o perigo representado por uma extrema-direita racista e xenófoba, tornam ainda mais urgente a definição de uma estratégia que associe a autoorganização popular, os movimentos sociais e as organizações políticas, a fim de pôr a política ao serviço da maioria.

Há 10 anos que numerosas mobilizações populares puseram em causa a ordem estabelecida. O Manifesto inscreve-se no seio desses movimentos e dá prioridade à luta contra a exploração e todas as formas de opressão.

Como observa o texto introdutório do Manifesto, os movimentos de luta dos últimos 10 anos são indissociáveis das urgências social, ecológica, democrática, feminista e de solidariedade. Urgência social porque as condições de vida e de trabalho das classes populares na Europa não cessaram de degradar-se ao longo dos últimos 30 anos, nomeadamente após a crise que abalou o continente a partir de 2008-2009. Urgência ecológica porque o consumo exponencial de energias fósseis, e em geral a destruição dos ecossistemas, endémica do sistema capitalista, produziu uma mudança climática planetária que atingiu um ponto sem retorno que ameaça a própria existência da humanidade. Urgência democrática porque, face aos desafios que se colocaram às classes dominantes no decurso dos últimos 30 anos, elas não hesitaram em adoptar métodos de dominação cada vez menos ralados com as aparências democráticas e cada vez mais coercivos. Urgência feminista porque a opressão patriarcal, nas suas diversas formas, provoca crescentes reacções massivas de rejeição, gritadas alto e bom som por milhões de mulheres e homens. Urgência de solidariedade porque o encerramento de fronteiras e o levantamento de muros – que foram a resposta dada aos milhões de migrantes de todo o mundo fugidos da guerra, da miséria, dos desastres ambientais ou dos regimes autoritários – representam pura e simplesmente a negação da humanidade. Cada uma destas urgências gerou reacções – mobilizações de desobediência, autoorganização e construções alternativas – que constituem outros tantos embriões possíveis de alternativas democráticas na Europa.

A União Europeia é hoje não só uma das vanguardas mundiais do neoliberalismo e do imperialismo, mas também um conjunto irreformável de instituições ao serviço do grande capital. Por consequência, uma esquerda de transformação social não pode ser considerada credível e realista se não puser no cerne da sua estratégia a ruptura com os tratados e as instituições da União Europeia.

Estas propostas de desobediência e ruptura com as instituições europeias não visam uma saída nacionalista da crise e dos protestos sociais. Tal como no passado, é necessário adoptar uma estratégia internacionalista e apadrinhar uma federação europeia dos povos que se oponha ao prosseguimento da forma actual de integração totalmente dominada pelos interesses do grande capital. Trata-se também de procurar constantemente desenvolver campanhas e acções coordenadas ao nível continental (e mais além) nos domínios da dívida, da ecologia, do direito à habitação, do acolhimento de migrantes e refugiados, da saúde pública, da educação pública e de outros serviços públicos, do direito ao trabalho, da luta pelo encerramento das centrais nucleares, da redução radical do uso de energias fósseis, da luta contra o dumping fiscal e os paraísos fiscais, do combate pela socialização dos bancos, dos seguros e do sector da energia, da recuperação dos bens comunitários [commons], da acção contra a deriva cada vez mais autoritária dos governos e pela democracia em todos os sectores da vida social, na luta pela defesa e alargamento dos direitos das mulheres e dos LGBTI, na promoção dos bens e serviços públicos, no lançamento de processos constituintes.


Um trabalho colectivo que deve ser continuado

Os membros de ReCommonsEurope reuniram-se em Bruxelas a 21 e 22 de março de 2019. Vieram da Alemanha, da Bélgica, da Bósnia, de Chipre, da Croácia, de França, da Grã-Bretanha, do Estado Espanhol, da Dinamarca, da Grécia, da Itália e da Sérvia. Discutiram a versão definitiva actual do Manifesto e as iniciativas que a tomar para o dar a conhecer em toda a Europa. O Manifesto está actualmente disponível em francês, castelhano, inglês e catalão. Ainda é possível juntar mais assinaturas ao Manifesto.

A recente reunião de 21 e 22 de março de 2019 foi o quarto encontro dos membros de ReCommonsEurope. Os dois primeiros decorreram em Bruxelas, respectivamente em fevereiro e junho de 2018. O terceiro teve sede em Londres em setembro de 2018. Durante essas reuniões constituíram-se grupos de redacção divididos por temas e entre finais de 2018 e março de 2019 surgiu o «Manifesto por Um Novo Internacionalismo dos Povos na Europa», que foi tornado público a 21 de março de 2019, em três línguas.

Aquando da reunião de 21 e 22 de março, os membros de ReCommonsEurope concordaram que o documento podia ser aperfeiçoado e que o trabalho deve prosseguir. Por outro lado, concluiu-se também que é necessário fazer uma versão nitidamente mais acessível e bastante mais curta. Outros dois processos estão em curso: um trabalho de melhoramento do Manifesto com 100 páginas e a redacção de uma versão sintética com o limite máximo de 20 páginas.

Também é importante reconhecer que os debates sobre o programa de medidas a tomar ainda não foram suficientemente aprofundados. Várias questões merecem melhor definição: a possibilidade e o papel de uma moeda complementar, a passagem à prática de uma saída do euro numa série de países, as medidas práticas a tomar ao nível dos bancos, as medidas imediatas em matéria de participação na luta face à crise ecológica, etc.

Porque é que o trabalho de ReCommonsEurope é importante e útil
Os acontecimentos que se seguiram ao desastre grego de 2015 mostram que a esquerda popular deve debater e adoptar com urgência propostas coerentes que abram uma saída à esquerda para as crises em curso. O Brexit foi em grande parte dominado pelo combate entre várias fracções do grande capital na Grã-Bretanha e o campo popular não conseguiu definir o seu projecto e a sua resposta à questão da saída da União Europeia. No caso da luta do povo catalão pela independência, o processo foi fortemente dominado pela direita independentista. Não houve uma intervenção autónoma suficientemente forte da esquerda independentista e internacionalista catalã. A luta respeitante aos direitos sociais e à contradição Capital/Trabalho foi fortemente marginalizada. Também no caso da Itália o tom foi dado por forças reaccionárias de direita, presentes em força no Governo. De uma maneira geral, para aprofundar a crise da União Europeia é essencial que o campo popular intervenha de forma autónoma.

ReCommonsEurope tenta – ainda que com modestas forças – convencer que é preciso sair do quadro nacional, onde uma grande parte das forças do campo popular permanece acantonada. Sair do quadro nacional não significa, evidentemente, dizer que não temos de nos preocupar com os combates políticos e sociais locais, mas é preciso ligar esses combates à dimensão internacional, tanto ao nível das propostas, como das práticas. Além disso é preciso encorajar as grandes organizações sindicais a saírem do seu imobilismo. A Confederação Europeia dos Sindicatos, que agrupa dezenas de milhões de assalariados e assalariadas, mostrou-se incapaz de agir à escala europeia para defender as conquistas sociais, face à ofensiva brutal do grande capital, secundado pelas instituições da União Europeia.

As lutas em curso das mulheres (nomeadamente no 8 de março) e da juventude (nomeadamente nas mobilizações pelo clima) são exemplares. Em diversos países europeus essas mobilizações conseguiram montar formas de autoorganização, de autoformação, de iniciativas públicas e a procura de soluções concretas, com âmbito global. É urgente que todos e todas as militantes anticapitalistas, ecossocialistas, feministas, antirracistas, debatam estas soluções e interpelem as organizações sociais e políticas para lhes dizer: juntos, estejamos à altura dos desafios do tempo presente e construamos um novo internacionalismo dos povos – na Europa e mais além.


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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