Uma perspectiva sobre as relações Norte/Sul – Os fundamentos da solidariedade entre cidadãos/cidadãs
26 de Julho de 2022 por Ernest Mandel
Da direita para a esquerda: Ernest Mandel, Hugo Blanco (dirigente indígena camponês peruano) e Eric Toussaint durante a segunda grande conferência do CADTM em 1991 (1000 participantes)
Publicamos aqui uma entrevista de Ernest Mandel (1923-1995), militante marxista, conhecido em particular pelos seus trabalhos econômicos e análises políticas. Ernest Mandel apoiou a criação do CADTM desde o início e participou nas mesas dos primeiros grandes encontros internacionais organizados pelo CADTM em Bruxelas em 1991 (ao lado de Hugo Blanco, Susan George, René Dumont e Gilles Perrault) e em 1993 (ao lado de Abraham Serfaty, Susan George, Nawaal El Saadawi e Michel Chossudovsky). Esta entrevista, de 1991, enfatiza no final a necessidade de agir para a anulação da dívida do Terceiro Mundo e para a emancipação dos povos do Sul. Nesta contribuição, Ernest Mandel coloca as relações Norte-Sul numa perspetiva histórica; utilizando a grelha de análise marxista, chega à questão dos mecanismos de drenagem da riqueza do Sul para o Norte (o pagamento da dívida do Terceiro Mundo como troca desigual) e defende a solidariedade entre os trabalhadores do Sul e do Norte. O enorme interesse da contribuição de Ernest Mandel neste texto é o destaque do quadro histórico global em que se realizam lutas como a da anulação da dívida do Terceiro Mundo.
Quais foram os efeitos da dominação imperialista sobre os países do Terceiro Mundo?
Ernest Mandel: A diferença no desenvolvimento e bem-estar entre os chamados países do Terceiro Mundo e as metrópoles imperialistas alargou-se consideravelmente durante a era imperialista. Esta era começou aproximadamente na década de 1890. Caracteriza-se em particular pelo fato de, nas metrópoles, a exportação de capitais ter substituído a exportação de bens como objetivo principal das grandes empresas industriais e financeiras que, gradualmente, são transformadas em trustes monopolistas.
Como resultado, é imposto o domínio político dos países para os quais este capital é exportado. Quando os bens são exportados, os problemas terminam assim que são pagos, geralmente após três meses. Quando o capital é exportado, fica imobilizado e leva anos para ser recuperado e amortizado. Um controle político permanente deve assegurar esta rentabilidade e recuperação no longo prazo.
Assim, as potências imperialistas transformam a maioria dos países subdesenvolvidos em colónias. Na Ásia e África, apenas a Etiópia, o Irã, o Afeganistão e a China escapam a este destino (o Império Otomano é um império em crise de decadência, mas sobrevive de alguma forma até à Primeira Guerra Mundial).
Mas embora mantendo a sua independência política formal, vão se tornando cada vez mais países semicoloniais, ou seja, países controlados financeira e economicamente pelas potências imperialistas. Este é também o destino dos países da América Latina e dos países dos Balcãs (após a Primeira Guerra Mundial, os países da Europa de Leste).
Sob o domínio imperialista, a modernização dos países coloniais e semicoloniais enfrenta um duplo bloqueio. Por um lado, as metrópoles impõem-lhes uma economia complementar à dos países imperialistas. Ficam limitados à produção e exportação de matérias-primas e produtos agrícolas, muitas vezes até marcados pela monocultura e monoprodução. Os preços destes produtos estão totalmente sob o controle do mercado mundial controlado pelos grandes trustes e bancos, sujeitos a variações violentas. Isto leva gradualmente à ruína dos pequenos produtores, à miséria e ao desemprego crónico. Daí a estreiteza do mercado interno nestes países, o que configura mais um obstáculo à industrialização.
Por outro lado, o poder colonial mantém geralmente as velhas classes dirigentes nestes países que praticam a exploração semifeudal dos camponeses. A renda agrícola é muito elevada. Os camponeses estão cada vez mais endividados. São expostos à usura que os estrangula. Existe assim uma combinação de exploração capitalista e pré-capitalista. A manutenção de sistemas bárbaros de opressão, como o sistema de castas na Índia, agrava ainda mais esta sobre-exploração. O resumo cabe numa fórmula: a modernização está bloqueada. Em países como a Índia e a China, o início de modernização aparecido anteriormente passa a ser revertido.
Mas após a segunda guerra mundial, globalmente, o colonialismo não existe mais?
E. M.: É verdade que a ascensão do movimento de libertação nas colônias, a partir da grande mobilização de libertação nacional lançada pelo Partido do Congresso de Gandhi e por outras forças políticas em 1942-1943 na Índia [1], fortemente estimulado no pós-guerra pelas revoluções na Indonésia e no Vietname, e depois sobretudo pela vitória da revolução chinesa, levou as potências coloniais a abandonarem progressivamente o domínio político direto sobre suas colônias. O fato de o poder imperialista hegemônico da época, o imperialismo norte-americano, ter tido poucas colônias foi importante neste processo. O abandono das estruturas coloniais abriu o caminho para que o domínio americano substituísse o das antigas potências coloniais. O Egito, por exemplo, deixou de ser dominado pela Grã-Bretanha e passou a estar sob o domínio dos Estados Unidos. As antigas colônias tornaram-se politicamente independentes, mas isto não significava que ganhassem uma verdadeira independência do imperialismo (com excepção da Indochina e da Coreia do Norte).
A dominação direta transformou-se em dominação indireta. O colonialismo transformou-se em neocolonialismo. A dependência econômica, financeira, e muito frequentemente militar, continuou a ser predominante, como nos países semicoloniais. Consequentemente, os obstáculos para o desenvolvimento econômico e a modernização social global continuaram a ser predominantes.
Este bloqueio foi e continua total?
E. M.: Não. A este respeito muitos ideólogos – tanto os não marxistas como os que se reivindicam do marxismo – cometeram graves erros de análise e de previsão, especialmente durante a década de 1960. De fato, vários países do Terceiro Mundo viveram o início da industrialização e modernização em duas vagas: a primeira entre 1935 e 1955, especialmente na América Latina; a segunda mais tarde, especialmente a partir dos anos 70, em vários países asiáticos, no Brasil, na África do Sul e no Iraque (na Índia e Egito o processo tinha começado mais cedo).
Aqueles que operaram este início de industrialização representam uma coligação de forças no poder que é bastante diferente das antigas estruturas dominantes. Estas baseavam-se numa aliança entre o capital imperialista estrangeiro, a chamada burguesia compradora (mercante e usurária) estreitamente associada ao capital estrangeiro, e os proprietários de terras tradicionais e outras classes dominantes.
A nova coligação reúne uma ala modernista dos militares, uma emergente burguesia monopolista local e algumas multinacionais imperialistas apostando na semi-industrialização do Terceiro Mundo.
Podemos concluir então que a industrialização e a modernização do Terceiro Mundo ainda são possíveis sob o capitalismo, mesmo que isso leve muito tempo?
E. M.: De jeito nenhum. Em primeiro lugar, os países que vivenciaram uma semi-industrialização são apenas uma pequena minoria de países do Terceiro Mundo. A grande maioria destes países continua a estagnar no subdesenvolvimento profundo. Em segundo lugar, trata-se de uma semi-industrialização e não de uma industrialização progressivamente cumulativa. O sector capitalista moderno é geralmente combinado com um sector arcaico (Taiwan e a Coreia do Sul são as duas excepções a esta regra). Este é claramente o caso na Índia, Brasil, África do Sul e México.
Por isso mesmo, a dependência do imperialismo continua a ser poderosa: dependência tecnológica e financeira acima de tudo, mas também dependência comercial e militar. Inversões repentinas na situação econômica internacional provocam paralisação do desenvolvimento ou até retrocesso. Confirmam a vulnerabilidade destes países.
Finalmente, um novo «desenvolvimento desigual e combinado» está se configurando nestes países. A dependência tecnológica e financeira leva a uma drenagem de recursos para as metrópoles imperialistas através de trocas desiguais baseadas na diferença do nível médio de produtividade laboral com as metrópoles. Esta drenagem dificulta obviamente o desenvolvimento econômico a longo prazo. O novo «bloco governante» tenta contrariar esta desvantagem, exercendo pressão sobre os salários (sobre os «custos de mão-de-obra»). Mas uma vez que a industrialização estimula o desenvolvimento da classe trabalhadora e assim o nascimento de um movimento operário combativo, recorre frequentemente a regimes ditatoriais ou a uma severa repressão para impedir este desenvolvimento.
Isto limita a dimensão do mercado interno, torna a industrialização dependente do sucesso de uma política de exportação desenfreada e aumenta assim a dependência das multinacionais imperialistas que dominam o mercado mundial.
Mas a drenagem de recursos do Sul para o Norte não é um fenómeno geral que diz respeito a todo o Terceiro Mundo, e não apenas aos países dependentes semi-industrializados?
A deterioração dos termos de troca (relação entre os preços de exportação e os preços de importação) fez perder ao conjunto de todos os países do Terceiro Mundo mais recursos nos últimos dez anos do que o serviço da dívida
E. M.: De fato. É verdade que os países relativamente mais desenvolvidos do Terceiro Mundo têm mais recursos e podem, portanto, ser mais facilmente saqueados do que os países mais pobres, dos quais pouco se pode extorquir. Assim, a maioria da chamada «dívida do Terceiro Mundo» está concentrada em alguns países relativamente menos subdesenvolvidos: México, Brasil, Coreia do Sul, Argentina, etc. Mas, dito isto, trata-se de um fenômeno geral de pilhagem. A deterioração dos termos de troca (relação entre os preços de exportação e os preços de importação) fez perder ao conjunto de todos os países do Terceiro Mundo mais recursos nos últimos dez anos do que o serviço da dívida. O efeito combinado desta deterioração, do endividamento crescente e da redução do crescimento como resultado da má situação econômica internacional tem sido um terrível aumento da miséria do Terceiro Mundo. A opinião ocidental, incluindo a da esquerda, não está suficientemente consciente disto. Ainda não reage com a indignação e a sabedoria política necessárias para responder a este verdadeiro aumento da barbárie.
Pode explicitar?
E. M.: Um bilhão de seres humanos que vivem na parte mais pobre do Terceiro Mundo viu o seu nível de vida médio deteriorar-se em 30 a 40 %. Quando se considera como este nível de vida já era baixo no início, percebe-se a gravidade do fenômeno. O seu nível de vida é o de um campo de concentração nazista antes de 1941. Todos os anos, 16 milhões de crianças morrem de fome e de doenças perfeitamente curáveis nos países do Terceiro Mundo. As epidemias típicas da miséria tais como a cólera, que em 1991 se propagou do Peru para o resto da América Latina, estão aumentando. As chamadas catástrofes naturais, tais como as que atingem regularmente o Bangladesh, são na realidade catástrofes causadas pela falta de recursos dedicados ao trabalho de infraestrutura, ou seja, pelo subdesenvolvimento.
Mesmo do ponto de vista das potências imperialistas esta é uma política estúpida. As consequências da emergência de uma miséria terrível no Terceiro Mundo têm impacto no Ocidente e no Japão. O Terceiro Mundo é um cliente das potências imperialistas que tem sua importância. A sua miséria estrangula a expansão do comércio mundial.
É por isso que os sectores «esclarecidos», mais liberais, da burguesia imperialista, representando principalmente exportadores e tendo as vezes por porta-voz social-democratas como o socialista alemão Willy Brandt, têm uma atitude mais «razoável» em relação à dívida do Terceiro Mundo e à «ajuda ao Terceiro Mundo» do que os sectores mais avarentos dos círculos bancários, que estão desesperados para tirar sangue de pedras.
Não é a pilhagem do Terceiro Mundo a principal fonte da riqueza relativa dos países imperialistas e, portanto, também do nível de vida mais elevado dos trabalhadores do Ocidente e do Japão?
Mais do que nunca, os antagonismos fundamentais são antagonismos entre classes sociais e grandes frações de classes sociais
E. M.: Não é tão simples. Não há dúvida de que a exploração excessiva dos produtores do Terceiro Mundo é uma fonte de sobrelucros para os monopólios e para a grande burguesia metropolitana em geral. A existência destes sobrelucros facilita as concessões materiais aos assalariado(a)s dos países ocidentais. Mas a maior parte destes sobrelucros nos lucros totais desta burguesia é ainda pequena. A maior parte da mais-valia que os monopólios imperialistas capturam é produzida pelos próprios assalariado(a)s dos países imperialistas: diríamos aproximadamente 80 % ou mais. Quando os lucros caem no Norte, a principal resposta do grande capital é atacar os seus próprios trabalhadores, é a política de austeridade, são os ataques aos salários diretos e indiretos dos seus trabalhadores. Estes ataques resultam numa redução mais limitada do nível de vida do que a que ocorre no Terceiro Mundo. Mas, em quantidades absolutas, os recursos globais adicionais que fluem para os grandes capitais desta forma são muito mais consideráveis do que os que provêm do Terceiro Mundo.
De maneira geral, a realidade mundial deve ser entendida como baseada numa pirâmide de poderes, riquezas, recursos e miséria.
Os grandes monopólios imperialistas estão no topo da pirâmide. Depois vêm os «novos» e «velhos» super-ricos dos próprios países do Terceiro Mundo, que se tornaram e continuam a tornar-se ricos de maneira particularmente escandalosa. Depois vêm as classes médias dos chamados países ricos. Depois as classes médias dos chamados países pobres. Depois o proletariado ocidental. Depois o proletariado e os camponeses pobres dos países pobres. Depois, os marginalizados dos países ricos. Finalmente, os marginalizados do Terceiro Mundo.
Uma visão realista desta hierarquia refuta aqueles que afirmam que a luta predominante hoje em dia é entre nações e nações, ou até mesmo entre raças e raças. Mais do que nunca, os antagonismos fundamentais são antagonismos entre classes sociais e grandes frações de classes sociais.
Então existe uma base real para a solidariedade internacional entre assalariado(a)s de países «ricos» e assalariado(a)s de países «pobres»?
E. M.: Claro. As multinacionais, o grande capital monopolista, estão aplicando cada vez mais uma estratégia global. Deslocam locais de produção, capital, mão-de-obra e resíduos de produção nocivos de um país para outro, de um continente para outro, de um oceano para outro. Utilizam a chantagem da deslocação de centros de produção para países de baixos salários (aliás, não apenas os do Terceiro Mundo) como meio permanente de pressão sobre o movimento dos trabalhadores e a classe trabalhadora das metrópoles: «aceitem cortes salariais, caso contrário faremos com que produzam noutros lugares onde os salários sejam mais baixos». Mas como as multinacionais encontrarão sempre países onde os salários são ainda mais baixos, aceitar esta chantagem significaria entrar num círculo vicioso de redução permanente do bem-estar em todos os países.
O dever de solidariedade implica lutar pela anulação total da dívida do Terceiro Mundo, implica uma luta impiedosa contra todas as formas de racismo e xenofobia
A única resposta eficaz a esta ofensiva global do grande capital é a ação conjunta dos assalariado(a)s do mundo inteiro. Ou seja: «Todos nós juntos não aceitaremos qualquer redução salarial em qualquer lugar. Lutaremos contra as demissões em todo o lado, notadamente através de uma redução do horário de trabalho». Os sindicatos do Terceiro Mundo devem ser apoiados a aumentar os salários nos seus países e não a deixar baixar os salários ocidentais para os níveis do Terceiro Mundo. Isto não significa um obstáculo ao desenvolvimento do Terceiro Mundo. Implica outro modelo de desenvolvimento, mais centrado no desenvolvimento do consumidor, no mercado interno, na eliminação progressiva da pobreza.
O pontapé inicial deve vir dos assalariado(a)s dos países imperialistas. É um dever de solidariedade que se combina com o próprio interesse material. Este dever de solidariedade implica lutar para sensibilizar os povos do Ocidente com a miséria do Terceiro Mundo, implica lutar pela anulação total da dívida do Terceiro Mundo, implica uma luta impiedosa contra todas as formas de racismo e xenofobia.
[1] O Quit India Movement (literalmente «Saiam da Índia»), também conhecido pelo nome de August Movement, foi um movimento lançado na sessão de Bombaim do All India Congress Committee, a 8 de agosto de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, para exigir o fim da dominação britânica na Índia. O partido comunista indiano opôs-se ao movimento, porque a União Soviética se tinha aliado aos Britânicos após a invasão da Rússia por Hitler em 1941. No entanto os anti-estalinistas e a esquerda independente na Índia aderiram ao movimento.
(5 avril 1923, Francfort-sur-le-Main - 20 juillet 1995, Bruxelles), économiste, est l’un des dirigeants trotskistes les plus importants de la seconde moitié du XXe siècle. Il est aussi un économiste et un des théoriciens marxistes les plus importants.
http://www.ernestmandel.org/fr/