12 de Dezembro de 2017 por Iolanda Fresnillo
Antonio Navia / El Salto
Falar de dívida é falar de soberania. A soberania da qual temos sido despojadas – as “devedoras”– por parte dos credores através da “dividocracia” em que vivemos.
Falamos de dividocracia quando pagar dívidas é mais prioritário do que satisfazer as necessidades básicas da população, quando cumprir os requisitos e as expectativas dos mercados é mais importante do que cumprir os direitos econômicos, sociais e culturais do nosso povo. A dividocracia se converteu em uma nítida ferramenta de espoliação da soberania política, econômica, social, territorial e reprodutiva dos povos. Uma expropriação que se revela não neutra do ponto de vista de gênero.
A aplicação de medidas de austeridade impostas através dessa dividocracia não significa somente perda de direitos sociais, aumento da precarização do trabalho e do empobrecimento – com mais intensidade entre as mulheres –, e uma intensificação das desigualdades (também as de gênero), mas também uma intensificação da carga de trabalho em termos de cuidados e reprodução, assumida, fundamentalmente, pelas mulheres.
Diante dos cortes e privatizações, são as cuidadoras que assumem aquelas responsabilidades antes assumidas pelo Estado. Enquanto no início da crise se deu uma destruição de postos de trabalhos em setores masculinizados como o setor da construção civil, a austeridade provocou maior impacto em setores feminizados como o de serviços básicos (saúde, educação, serviços sociais, serviços domésticos…). A violação da Lei de Dependência, o congelamento do salário mínimo, a reforma do IRPF e o aumento do IVA, o adiamento das melhorias nas pensões das viúvas ou o congelamento de pensões não contributivas, deixam também as mulheres em uma situação de maior vulnerabilidade. Em média, as pensões contributivas recebidas pelas mulheres são cerca de 40% inferiores às dos homens.
Mas a crise da dívida não tem somente uma dimensão de gênero em termos dos seus impactos, tem uma dimensão de gênero também em relação às possíveis saídas. Se a saída que construímos for reforçar um sistema econômico baseado no lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). , produtividade, competitividade e crescimento econômico, e não na centralidade da sustentabilidade da vida, isto resultará num aprofundamento do sistema patriarcal. Se a “saída” da crise não enxerga as desigualdades de gênero, na realidade, estará aprofundando essas desigualdades e perpetuando o patriarcado.
Saídas da crise... com ou sem dívida?
Quando propomos alternativas para superar a crise, devemos fazer na direção da construção de um novo modelo econômico e social, que se baseie num sistema financeiro ao serviço das pessoas. Um modelo de produção que “não nos custe o planeta” e que leve em conta as contribuições das tarefas de cuidado e reprodução. Um modelo que se baseie em relações sociais e de trabalho justas e igualitárias, que permitam garantir uma vida digna que valha a pena ser vivida.
Não questionar a dívida pública, garantir o seu pagamento e, portanto, desenvolver políticas de crescimento econômico para poder pagá-la, nos mantém escravas do sistema e perpetua-o. É, ademais, uma proposta inviável, tanto porque supõe “sobrecarregarmos o planeta”, quanto porque não é possível sem a contribuição das mulheres na economia através do trabalho não remunerado ao nível da reprodução e dos cuidados.
Por outro lado, propostas como a necessidade de renegociar ou refinanciar a dívida, ou obter reduções, sem abordar sua ilegitimidade, permitem, em realidade, regenerar e reforçar o capitalismo financeiro. Uma “saída” que permita reduzir o peso da dívida, para colocar o “contador” em zero ou em um nível suficientemente baixo que torne-o “sustentável”, e que permita que os mercados financeiros sigam dominando as finanças e políticas públicas, é uma saída que perpetua a atual correlação de forças e, portanto, as desigualdades sociais, econômicas e de gênero.
Em lugar de seguir mantendo a roda do capitalismo financeiro, estaria a proposta de não pagamento da dívida. Não pagamento para gerar uma situação de ruptura com o sistema financeiro e com a atual correlação de forças políticas, permitindo efetivamente superar o conflito capital-vida. Um não pagamento que nos permita definir e decidir qual modelo produtivo, financeiro, monetário, energético, alimentar, fiscal, laboral ou reprodutivo necessitamos ou queremos, para assim construir um futuro desvinculadas do domínio dos mercados financeiros. Não pagar a dívida para resolver o conflito capital-vida e construir esta vida digna de ser vivida, é o que poderíamos chamar de um “não pagamento feminista da dívida”.
Não pagar a dívida para resolver o conflito capital-vida e construir esta vida digna de ser vivida, é o que poderíamos chamar de um “não pagamento feminista da dívida”
Situando-nos, pois, no plano do conflito capital-vida colocado pelo sistema capitalista, as respostas às crises podem assumir uma regeneração do sistema, reforçando os interesses do capital e, portanto, reforçando o patriarcado. Ou podemos enfrentar a necessária desconstrução do capitalismo para construir um futuro que nos permita “vencer” esse conflito a favor da sustentabilidade da vida.
A iniciativa de não pagamento da dívida, que não se coloque como ferramenta para resolver o conflito capital-vida, não pode ser feminista. Como dizíamos, o não pagamento que objetiva restabelecer a contagem a zero e retomar as dinâmicas de crescimento econômico, competitividade, exploração de recursos e de trabalho, que torne invisível o trabalho não remunerado de cuidados e reprodução, não será nunca feminista. Um futuro que não aborde a ruptura com o domínio dos credores, dos mercados financeiros, nunca poderá colocar a vida e os cuidados no centro.
Conseguir o não pagamento feminista da dívida
Em resumo, é impossível romper com o capitalismo e o patriarcado sob a dividocracia. Mas conseguir a correlação de forças necessárias para viabilizar esse não pagamento feminista da dívida não é coisa fácil.
A proposta do Movimento Auditoria Cidadã da Dívida vai nesta direção. Propõe-se um processo de aprendizagem coletiva, de empoderamento, de conhecimento compartido sobre como chegamos até aqui para poder definir e decidir, desde baixo, quais devem ser as vias de saída e as alternativas. É um processo que necessariamente temos que fazer desde uma perspectiva feminista e antipatriarcal, de análise ampla do problema: o capitalismo. Destacamos a auditoria como um processo que nos permita analisar de forma participativa os impactos de gênero do sistema da dívida. Uma análise de gênero interseccional, que enfatize também dimensões e desigualdades sociais, de classe, de origem (migrantes), ambientais, culturais, econômicas e políticas.
Esta análise coletiva e a partir de uma perspectiva feminista da problemática da dívida deve nos permitir não somente obter conhecimento e conscientização popular sobre o assunto, mas também acumular forças em torno da proposta feminista de não pagamento da dívida. Tudo isso para construir consciência coletiva de que não é possível haver soberania e nem vida digna em um sistema submetido à ditadura da dívida.
Tradução: Priscila Martins
Fonte: El Salto
Plataforma Auditoria Ciudadana de la Deuda (PACD) @ifresnillo @AuditCiudadana @AuditoriaBCN
Iolanda Fresnillo es activista, miembra de la Plataforma Auditoria Ciutadana del Deute y de Eurodad, e impulsora de la cooperativa Ekona.
31 de Janeiro de 2011, por Iolanda Fresnillo