O nosso futuro é público: Declaração de Santiago sobre os serviços públicos

4 de Fevereiro por Colectivo


Entre 29 de novembro e 2 de dezembro, mais de mil representantes de mais de uma centena de países, provenientes de movimentos populares, organizações de defesa dos direitos humanos e do desenvolvimento, movimentos feministas, sindicatos e outras organizações da sociedade civil reuniram-se em Santiago, no Chile, presencialmente e virtualmente, a fim de discutirem o papel crucial dos serviços públicos no nosso futuro.



Encontramo-nos num momento crítico. Numa época em que o mundo se vê confrontado com uma série de crises, desde a urgência ambiental até à fome e ao agravamento das desigualdades, com a escalada dos conflitos armados, das pandemias, do crescimento dos extremismos e da inflação, desenvolve-se uma resposta colectiva. Está em construção um vasto movimento e emergem soluções concretas para contrariar o paradigma dominante do crescimento, da privatização e da mercantilização.

Centenas de organizações dos sectores da justiça socioeconómica e dos serviços públicos, desde a educação e os serviços de saúde aos cuidados, energia, alimentação, habitação, água, transportes e protecção social, estão a juntar-se para contrariar os efeitos nocivos da comercialização dos serviços públicos, para recuperar o controlo público democrático sobre estes serviços, e para reinventar uma economia verdadeiramente igualitária e baseada nos direitos humanos que funcione para as pessoas e para o planeta. Exigimos o acesso universal a serviços públicos de qualidade, equitativos e transformativos em termos de género, como fundamento de uma sociedade justa e equitativa.

O quadro político comum da colonialidade ajuda-nos a reconhecer as estruturas e mentalidades que historicamente construíram e continuam a alimentar a desigualdade económica, a injustiça e a austeridade – que têm deixado os serviços públicos cronicamente subfinanciados durante décadas. A economia neoliberal, amplificada pelo modelo actual de hiperglobalização, é definida pela perpetuação da extracção, do controlo, da dependência, da subjugação, do patriarcado e da actual divisão global do trabalho, afectando de forma desproporcionada os países do Sul.

A comercialização e privatização dos serviços públicos e a mercantilização de todos os aspectos da vida levaram a desigualdades crescentes e a disparidades de poder enraizadas, dando prioridade ao lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). e à corrupção sobre os direitos das pessoas e o bem-estar ecológico e social. Isto afecta negativamente trabalhadores, utilizadores de serviços e comunidades, com custos e danos que recaem desproporcionadamente sobre aqueles que têm sido historicamente explorados.

A desvalorização do estatuto social dos funcionários públicos, a degradação das suas condições de trabalho e os ataques aos seus sindicatos estão entre as regressões mais preocupantes do nosso tempo e ameaçam os nossos espaços colectivos. Isto está profundamente ligado à organização patriarcal da sociedade, onde as mulheres como trabalhadoras e cuidadoras são subvalorizadas e absorvem os choques sociais e económicos. São as primeiras a sofrer os cortes orçamentais do sector público, a perder o acesso a serviços e oportunidades de trabalho decente, e a enfrentar o fardo crescente do trabalho não remunerado de assistência.

A austeridade dos cortes nos orçamentos e salários do sector público são impulsionados por uma mentalidade ideológica induzida pelo Fundo Monetário Internacional e por muitos ministérios das finanças que servem os interesses das empresas e não das pessoas, perpetuando dependências e dívidas insustentáveis. Regras fiscais iníquas, a nível nacional e internacional, promovem grandes desigualdades na acumulação e concentração de rendimento, riqueza e poder dentro e entre países. A financeirização de um vasto leque de acções e decisões públicas confere poderes aos accionistas e mina a democracia.

Esta reunião no Chile segue-se a anos de mobilização crescente em todo o mundo. Baseia-se na conferência internacional de 2019 em Amesterdão e no livro resultante, The Future is Public: Towards Democratic Ownership of Public Services, bem como numa série de eventos inovadores que reuniram milhares de pessoas em linha, e na adopção em 2021 do Manifesto Global para os Serviços Públicos e um texto relacionado, o Manifesto para a Reconstrução da Organização Social dos Cuidados.

 O nosso futuro é público

Comprometemo-nos a continuar a construir um movimento interseccional para um futuro público. Um em que os nossos direitos são garantidos, não pela nossa capacidade de pagar, ou pela capacidade de gerar lucros, mas pelo facto de nos permitir a todos viver bem juntos, em paz e igualdade: o nosso bem-estar.

Um futuro público é aquele em que nem as mulheres, nem os povos indígenas, nem as pessoas com deficiência, nem a classe trabalhadora ou os migrantes, nem as minorias étnicas, sexuais ou racializadas suportam um fardo injusto e desigual nas nossas sociedades. É um futuro onde o legado contínuo do colonialismo é quebrado através de reparações significativas, cancelamento da dívida e uma revisão completa do nosso sistema económico global, incluindo a redução da utilização de matérias-primas e energia pelas economias ricas.

Saber quem possui os nossos recursos e serviços é fundamental. Um futuro público significa assegurar que tudo o que é essencial para uma vida digna está fora do controlo privado, e sob formas descolonizadas de controlo colectivo, transparente e democrático. Em alguns contextos, isto significa intervenções locais, regionais e/ou nacionais decisivas por parte do Estado. Noutros contextos, significa reforçar as organizações populares, incluindo os sindicatos, e expandir os espaços para a autogestão, para os comuns, e para o controlo colectivo e comunitário dos recursos. Valorizamos as parcerias público-públicas ou público-comuns, mas resistimos às parcerias público-privadas que apenas servem para extrair recursos do público para interesses privados.

Um futuro público também tem a ver com a criação de condições que permitam sistemas de produção alternativos, incluindo a prioridade da agroecologia como uma componente essencial da soberania alimentar. Para tal, precisamos de recuperar o controlo dos processos e instituições de tomada de decisão, fora das actuais formas de captura corporativa, a fim de podermos decidir o quê, para quem e como fornecemos colectivamente, gerimos e possuímos recursos e serviços públicos.

O futuro público não será possível sem uma acção colectiva nacional corajosa para reformas fiscais e económicas ambiciosas, progressivas e transformadoras em termos de género, a fim de aumentar massivamente o financiamento dos serviços públicos universais. Estas reformas devem ser complementadas por grandes mudanças na arquitectura das finanças públicas internacionais, incluindo transformações na governação da fiscalidade, da dívida e do comércio. Devemos aproveitar o impulso gerado pelos recentes sucessos dos países africanos e outros países do Sul na criação de um quadro intergovernamental da ONU sobre tributação e na 4ª Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento.

A democratização da governação económica rumo a processos verdadeiramente multilaterais é essencial para derrubar o poder das organizações neoliberais dominantes e reorientar as instituições financeiras nacionais e internacionais para longe dos padrões raciais, patriarcais e coloniais do capitalismo e para a justiça socioeconómica, sustentabilidade ecológica, direitos humanos e serviços públicos. É igualmente essenciais ter em conta a dívida climática e ecológica do Norte, acelerar uma redução na utilização de energia e recursos materiais pelas economias ricas, responsabilizar os grandes poluidores pelos crimes cometidos ao longo de gerações, acelerar a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, e dar prioridade à mudança no sistema financeiro.

Um Futuro Público reconhece a necessidade urgente de solidariedade internacional e de soluções sistémicas globais mas contextualmente diferenciadas. É um elemento essencial de uma transição justa, feminista e descolonizador que coloca os utentes e trabalhadores dos serviços públicos no centro e que irá reconstruir um pacto social sustentável para o século XXI.

 Vamos agir

Vamos unir forças entre sectores, regiões e movimentos para formular e implementar estratégias comuns e novas alianças para propostas comuns para uma transição justa, feminista e descolonizadora para as crises climáticas e ambientais. Trabalharemos para transformar os nossos sistemas, valorizando os direitos humanos e a sustentabilidade ecológica sobre o crescimento do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
e os ganhos económicos estritamente definidos.

Ao trabalhar em solidariedade com grupos de base em todo o mundo, incluindo povos indígenas, jovens, idosos e pessoas com deficiência, iremos:

  • Trabalhar de maneira transversal e solidária entre sectores e movimentos, construindo uma análise colectiva e apoiando o trabalho e as reivindicações de cada um, unindo esforços para as lutas colectivas emblemáticas.
  • Desafiar-nos reciprocamente para reuniões sectoriais, partilhar as boas práticas e elaborar programas e reivindicações colectivas.
  • Dar notícia da conferência no seio das nossas organizações, redes e sectores, e continuar a reforçar e alargar o empenhamento dos nossos sectores, enquanto pilares de um movimento mais vasto.
  • Trabalhar em conjunto para reforçar os quadros institucionais e jurídicos dos direitos humanos para a protecção dos serviços públicos.
  • Mobilizar-nos para um processo de auto-rflexão, de transformação e de acção organizativa e interseccional.
  • Trabalhar para a criação de um espaço virtual colectivo sobre Our Future Is Public para partilhar experiências e tácticas políticas.
  • Continuar a formular exigências aos decisores políticos no que diz respeito ao conjunto dos serviços, políticas e investimentos públicos, que poderiam assumir a forma de um empenhamento em favor dos serviços públicos para as autoridades municipais, regionais e nacionais.
  • Insistir, perante as autoridades locais, nacionais e internacionais, no apoio a modelos de governação alternativos e mais justos.
  • Consultar sobre a forma, o alcance e a orientação que poderia assumir uma Comissão Independente para os Serviços Públicos e trabalhar conjuntamente na sua criação.
  • Organizar regularmente espaços de encontro, para reforçar os grupos e os movimentos que trabalham para o nosso futuro público e ponderar uma nova conferência mundial nos próximos três anos.
Assinar a Declaração de Santiago sobre os Serviços Públicos: fr en es

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