Respigo do livro de Frédéric Gros, Pourquoi la guerre? [O Porquê da Guerra] (Albin Michel, 2023), cuja leitura recomendo, as fórmulas que ele apresenta após ter feito sua a trilogia de Hobbes, explicando por que razão a humanidade se guerreira entre si: «ganância, medo e busca da glória» (p. 120) ou «vaidade», ou seja, segundo Hobbes, «tudo o que tem a ver com a exibição da sua superioridade, com a afirmação orgulhosa de si próprio» (p. 131).
A paz é apenas um interlúdio, «o momento de preparação para futuras guerras, durante o qual os guerreiros recuperam a coragem e os exércitos se reformam, cada vez mais poderosos e mortíferos, um interstício entre dois massacres, um intervalo, uma respiração. Todas estas fórmulas permanecem no entanto gerais, pois assumem um significado unívoco de paz, embora ela seja em grande parte tão ambígua e diversa como a guerra. Ao longo da história, existem inúmeros modelos de paz, todos eles com estilos irredutíveis. Iremos apresentar alguns deles. (p. 137-138) […]
«[A paz armada] pode ser entendida em pelo menos três sentidos. Em primeiro lugar, a paz é verdadeiramente “alimentada” pela guerra, uma vez que a guerra é um laboratório, uma matriz de formas de produção material ou de organização social inventada em tempo de guerra e que se desenvolverá, florescerá e se ramificará em tempo de paz. Marx seguiu esta inspiração ao escrever: “As novas formas de produção material desenvolvem-se através da guerra antes de se desenvolverem em tempo de paz”. O autor de O Capital pensa aqui sobretudo em modos de produção industrial, em invenções científicas (cadências de trabalho na fábrica, tratamentos farmacêuticos, etc.) que a urgência da guerra aumenta, estimula. Mas podemos alargar a sua intuição argumentando que não são apenas as inovações técnicas que, precipitadas pela emergência militar, são testadas, experimentadas em tempo de guerra, mas também as formas de organização social, de vigilância dos indivíduos, de doutrinação das consciências. […]
Podemos também falar de “paz armada” em um segundo sentido, já explorado no primeiro capítulo. A questão era que no quadro da “guerra global” (2001-2021), que sucedeu à guerra fria (1947-1989), as operações de “securitização” – de territórios nos quais as potências ocidentais tinham “intervindo” para expulsar os seus dirigentes (autoritários, corruptos, opressivos, presumíveis cúmplices de grupos terroristas) – perpetuaram a muito custo uma paz frágil e revelaram-se de facto mais mortíferas que a própria guerra (atentados, emboscadas, ataques surpresa. A paz neste caso é o que se mantém pelas armas e as intimidações recorrentes.
Em um terceiro sentido, mais vasto, pode dizer-se que a paz é armada, por medo que seja aceite a inversão da fórmula de Clausewitz: é a política que é a continuação da da guerra por outros meios. A paz interna, a ordem pública, não passa de um frágil verniz, e a guerra externa é uma horrível diversão. De facto, a verdadeira guerra levada a cabo dentro dos Estados, insidiosa e mascarada, é aquela em que uma minoria, em tempos de paz, persegue o seu próprio povo. A paz armada das verdadeiras tiranias e das falsas democracias é imposta por uma minoria, a golpes de polícia e de impostos, de trabalho e de leis sobre a propriedade, sobre a maioria. O horrível segredo dos aparelhos de estado, como também revelou Ibn Caldune [Ibn Khaldun] no seu Livro dos Exemplos, que Rousseau cita no final do seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade, é que uma minoria guerreira – ou seja, que tem nas mãos as armas da finança e da justiça, da indústria e da autoridade pública – leva a cabo um combate surdo e permanente contra a sua própria população. E as guerras externas não são outra coisa senão o meio de o Estado reforçar a paz armada, organizando os lucros de uma minoria, e mascarar a divisão fundamental mascarada por essa paz – à qual Marx chamou “luta de classes”.» (p. 138-141).
De Hobbes e Marx a Huxley e Orwell, o pressentimento é comum…
Traduçao : Rui Viana Pereira
ancien Professeur agrégé de sciences économiques et sociales et Maître de conférences d’économie à l’Université Bordeaux IV.
Jean-Marie Harribey est chroniqueur à Politis. Il anime le Conseil scientifique d’Attac France, association qu’il a co-présidée de 2006 à 2009, il a co-présidé les Économistes atterrés de 2011 à 2014 et il est membre de la Fondation Copernic.