12 de Outubro de 2015 por Eric Toussaint
Numa conferência de imprensa efectuada a 25-setembro-2015 no Parlamento grego pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega, Eric Toussaint, coordenador científico da Comissão, respondeu com precisão à pergunta de um jornalista. A pergunta era a seguinte, em resumo: o que teria acontecido se o Governo grego tivesse seguido as recomendações da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega e tivesse suspendido o pagamento da dívida? Eric Toussaint explica que longe de provocar uma catástrofe, a suspensão do pagamento, combinada com outras medidas, teria permitido à Grécia encontrar uma saída melhor para a crise do que a aplicação do 3.º memorando.
Eric Toussaint: Muito obrigado por colocar essa questão, que constitui obviamente a objecção central apresentada por todos e todas que afirmam não existir outra solução. A questão consiste em dizer: se o Governo tivesse levado em conta as conclusões do relatório, teria suspendido o pagamento da dívida, produzindo assim uma situação catastrófica, caótica e desfavorável ao país. É exactamente essa a questão.
Para responder, temos de passar em revista, de maneira muito séria, os acontecimentos. A Grécia prosseguiu, após as eleições de 25 de janeiro, os reembolsos, até ao referendo de 5/julho/2015, no montante de 7 mil milhões de euros. Em contrapartida, até ao referendo, a Grécia não recebeu absolutamente nenhum encaixe. No entanto, restavam pelo menos 7,2 mil milhões de euros no quadro do programa que tinha sido prolongado até 30/julho [1]. E havia ainda outros montantes disponíveis, nomeadamente ao nível do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) e também do lado do BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
, que recebe elevados juros sobre os títulos gregos que detém.
Coloquemos a seguinte questão: se o Governo grego, em 20/fevereiro, em vez de persistir no reembolso da dívida, tivesse dito «Vou aplicar o parágrafo 9.º do artigo 7.º do regulamento 472 aprovado pelo Parlamento Europeu em 21/05/2013, o qual recomenda aos estados-membros da UE sujeitos a um plano de ajustamento estrutural que realizem uma auditoria integral à sua dívida, a fim de descobrirem por que razão a dívida atingiu um nível insustentável e desvendarem as eventuais irregularidades» [2]; se o Governo grego tivesse dito «vou aplicar este regulamento e durante a sua aplicação suspendo o pagamento porque, se audito a dívida para verificar se existem irregularidades, suspendo provisoriamente o pagamento e não presumo o seguimento. Aceito negociar nessa base»; e se, de forma complementar, o Governo grego tivesse tomado medidas para resolver a crise bancária, protegendo os depósitos de poupança (pois face ao estado de insolvabilidade dos bancos gregos, era preciso resolver o problema de maneira ordenada) – se assim tivesse acontecido, a situação não seria melhor do que o que aconteceu em fevereiro e junho?
Prolonguemos este raciocínio: se o Governo se tivesse realmente apoiado nos trabalhos da Comissão, o que se teria passado? Recordemos que a nossa comissão foi criada depois de 20 de fevereiro, foi instituída a 4 de abril [[Ver http://cadtm.org/4-avril-2015-Journee-historique]. E, recordemos ainda, ao ser instituída a 4 de abril, teve em conta o regulamento 472 mencionado. Faz parte das actas de criação da Comissão. Com base nas conclusões preliminares que tornámos públicas a 17 e 18 de junho e com base no resultado do referendo de 5 de julho, o governo grego poderia ter dito: «Durante seis meses reembolsámos as nossas dívidas. Custaram ao país 7 mil milhões de euros. Agora os cofres do Estado estão vazios. Fizemos imensas concessões aos nossos credores e estes em contrapartida não fizeram qualquer concessão. Pelo contrário, aumentaram as exigências.»
Ora bem, se, com base no referendo e nos nossos trabalhos, o Governo tivesse suspendido o pagamento da dívida a partir de 5 de julho, isso teria permitido evitar o reembolso ao BCE do elevado montante de quase 7 mil milhões de euros suplementares. É preciso sublinhar que de facto, entre 5 de julho e setembro de 2015, foram reembolsados ao BCE cerca de 7 mil milhões de euros.
Insisto que teria sido possível o Governo grego apoiar-se ao mesmo tempo no resultado do referendo de 5 de julho (= recusa das propostas dos credores, nomeadamente em matéria de dívida) e no nosso trabalho (que foi apresentado a 17 e 18 de junho), para suspender o pagamento da dívida, e tomar medidas obviamente fortes em relação aos bancos, uma vez que eles foram fechados pelo BCE e pelo Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). grego. Seria necessário aplicar medidas duras para proteger os depósitos de poupança gregos, e ao mesmo tempo resolver o problema dos bancos gregos; seria necessário instituir uma moeda complementar e tomar medidas igualmente fortes em matéria de fiscalidade, para aumentar as receitas. Se este plano B tivesse sido aplicado, estou convencido, caro jornalista, que não teria acontecido uma catástrofe. Estou convencido que os credores teriam sido forçados a sentar-se verdadeiramente à mesa das negociações.
Ora o que se passou foi que, ao assinar um memorando, nas condições que sabemos, ou seja sem um verdadeiro debate [no Parlamento grego] que permitisse introduzir emendas [no memorando] e sem respeitar os resultados do referendo, as autoridades gregas embarcaram num novo programa – o terceiro – que implica empréstimos suplementares no montante de 86 mil milhões de euros, que vão servir na sua maior parte para reembolsar as antigas dívidas que identificámos como ilegítimas, ilegais e insustentáveis e que inclui um montante de 25 mil milhões de euros destinados a recapitalizar os bancos gregos, que já receberam 48 mil milhões de euros desde 2010.
E sabemos perfeitamente que os 25 mil milhões não chegarão para sanear a situação dos bancos gregos. Não chegam porque o que se chama «non performing loans», ou seja empréstimos bancários que se encontram em incumprimento de pagamento, são superiores ao capital dos bancos gregos. Os bancos gregos estão falidos. Esta é a situação real. E os 25 mil milhões de euros não vão chegar. É preciso dizer a verdade: é possível que dentro de seis a nove meses os depósitos dos gregos superiores a 100 000 euros sejam afectados por medidas duras para salvar os bancos gregos.
E as medidas de austeridade, como explicou o meu colega Michel Husson, fazem com que a Grécia seja incapaz de atingir os objectivos fixados pela UE. Não será possível atingir os objectivos fixados para 2016, 2017 e 2018. Por conseguinte, os credores europeus vão exigir esforços suplementares aos que já exigiram no terceiro referendo.
Termino dizendo que é falsa a afirmação de que se a Grécia tivesse suspendido o pagamento e tivesse seguido as conclusões preliminares da Comissão, a situação teria sido catastrófica. Não, nós consideramos: 1. que não é normal continuar a contrair empréstimos em condições de ilegitimidade e de ilegalidade – porque o terceiro memorando está pejado de ilegalidades e ilegitimidades; 2. que, como disse o meu colega Michel Husson, a situação económica do país não vai realmente endireitar-se.
Publicaremos em breve um documento que aprovámos e que estamos a preparar sobre a situação dos bancos gregos. Nesse documento mostramos até que ponto, desgraçadamente para o país, a situação dos bancos gregos continua a ser absolutamente preocupante. Sublinhamos que os 25 mil milhões de euros de dívidas suplementares contraídas para recapitalizar esses bancos estão nas mãos de accionistas privados minoritários. Embora o Fundo Helénico de Estabilidade Financeira e o Estado grego sejam accionistas maioritários dos bancos, não exercem as suas responsabilidades de accionistas porque aceitaram acções chamadas preferenciais, que não lhes conferem o direito de voto e portanto deixam nas mãos de accionistas minoritários privados o destino dos bancos gregos.
Esse Fundo de Estabilidade Financeira é dirigido por Pierre Mariani, que foi co-responsável pelo falhanço do banco Dexia, que eu conheço bem, porque é um banco belga-francês que teve de ser salvo por três vezes pelas autoridades belgas, francesas e luxemburguesas. O senhor Mariani é co-responsável pelo falhanço e pelo desastre do Dexia. E é ele o responsável pelo Fundo de Estabilidade Financeira encarregue de recapitalizar os bancos gregos.
Acham normal que se confie a direcção do organismo encarregue de gerir a capitalização dos bancos gregos a uma pessoa responsável pelo desastre bancário de um grande banco como o Dexia, que teve efeitos desastrosos nas finanças públicas da Bélgica, da França e do Luxemburgo, e que vendeu quantidades massivas de empréstimos tóxicos aos municípios franceses? Acham normal que se continue a confiar no sr. Pierre Mariani? Quando o banco Dexia foi salvo pelo Estado belga, o sr. Mariani foi posto na rua por causa da sua gestão ruinosa, mas teve direito a um pára-quedas dourado de um milhão de euros. A seguir aterrou aqui na Grécia para gerir os bancos gregos. Façam esta pergunta a vocês mesmos. Isto é normal? É normal que os interesses dos cidadãos gregos e do país sejam confiados a personagens deste calibre? Não haverá aqui um conflito de interesses, não estará em contradição com os interesses de defesa da nação?
Se as recomendações da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega tivessem sido seguidas, já se teria começado a encontrar uma solução para a Grécia. Uma vez que as nossas conclusões não foram tidas em conta, uma vez que foi prosseguida a via do terceiro referendo, lastimo informar-vos que os problemas da Grécia não foram resolvidos, a dívida vai continuar a pesar insuportavelmente nos ombros do povo grego, já fragilizados por cinco anos de austeridade imposta pelos credores. Além disso, o problema dos bancos gregos não ficou resolvido.
Mas, dirão vocês, talvez fosse concedida à Grécia, em troca da sua capitulação, um alívio da dívida sob a forma de alongamento dos prazos de maturidade e, portanto, do calendário de pagamentos. Mas vocês sabem tão bem como eu que em julho, no acordo assinado com a Grécia, não existe qualquer empenho em reduzir a dívida grega. Há eventualmente a perspectiva de qualquer coisa em matéria de dívida se o Governo grego cumprir as exigências dos credores.
Sabem tão bem como eu que o FMI disse que a dívida grega atingiria os 200 % do PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
mas que o mesmo FMI disse «não vou reduzir porque a Grécia me deve». O FMI é a favor de uma redução da dívida grega, excepto no que lhe diz respeito. Acham que o FMI vai convencer os Europeus a concederem uma redução da dívida quando ele próprio diz: «A dívida é insustentável mas eu recuso-me a participar numa redução da dívida grega. Cabe-vos a vós fazê-lo.»
Acham que ao aceitar a lógica do terceiro memorando vão salvar realmente a situação do país? Nós pensamos que infelizmente nada disso vai acontecer, que o problema da dívida grega vai continuar a ser central nos anos vindouros. O trabalho de auditoria da dívida grega começou a ser feito em 2011, quando a comissão cidadã de auditoria da dívida grega (ELE) foi criada por uma série de pessoas que depois viriam a fazer parte da actual Comissão constituída em abril de 2015. A ELE teve um segundo fôlego graças à iniciativa da presidente do Parlamento grego, que, nessa ocasião, teve o apoio do primeiro-ministro e do presidente da República. Lembrem-se que a 4 de abril eles estavam lá [na apresentação pública oficial da Comissão].
Desgraçadamente, mais tarde, o governo não seguiu as nossas recomendações. Não sabemos qual será o nosso estatuto daqui a 10 dias, quando o novo presidente do Parlamento for eleito. Mas pouco importa o estatuto, como disse a presidente actual do Parlamento, havemos de continuar o nosso trabalho. Como nós não éramos remunerados, para nós nada muda. A nossa disposição de ajudar a Grécia permanece intacta. E como a nossa acção Acção Valor mobiliário emitido por uma sociedade em parcelas. Este título representa uma fracção do capital social. Dá ao titular (o accionista) o direito, designadamente, de receber uma parte dos lucros distribuídos (os dividendos) e participar nas assembleias gerais. não dependia de remunerações, nós continuamos. Se, para virmos cá, tivermos de suportar o encargo dos nossos bilhetes de avião e se tivermos de pedir a gregos que nos alberguem para reduzir as despesas da Comissão, iremos ter com famílias gregas, que nos receberão e que actualmente já nos recebem. Vamos continuar o nosso trabalho. Havemos de encontrar meio de pagar os bilhetes de avião para virmos e vos prestarmos serviço.
E espero que um dia haverá um governo grego que leve em conta, no interesse do povo, os resultados do nosso trabalho, porque o fizemos, isso posso garantir-vos, com o único objectivo de defender os interesses do povo grego, de todos os povos da Europa e do planeta, por uma solução justa para a dívida ilegítima.
Tradução: Rui Viana Pereira ; Revisão: Maria da Liberdade
[1] O programa do segundo memorando que em princípio deveria ter terminado a 28-02-2015 tinha sido prolongado 4 meses aquando do acordo de 20 de fevereiro entre o governo de Tsipras e o Eurogrupo.
[2] Regulamento (UE) n.º 472/2013 do Parlamento europeu e do Conselho, 21-05-2013, relativo ao reforço da vigilância económica e orçamental dos estados-membros da zona euro que estejam ou corram o risco de vir a estar em sérias dificuldades do ponto de vista da sua estabilidade financeira. http://eur-lex.europa.eu/legal-content/FR/TXT/?uri=uriserv:OJ.L_.2013.140.01.0001.01.FRA
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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