Parte 2 da conversa «Genealogia das políticas antidívida e do CADTM»
19 de Agosto de 2016 por Eric Toussaint , Benjamin Lemoine
Uma parte da delegação do CADTM aquando da manifestação de 17 de Outubro de 2010 em Bukavu (RDC). Da esquerda para a direita: Emilie Atchaca (Benim), Rachida (Togo), Luc Mukendi (Lubumbashi), Renaud Vivien (Bélgica)
Entrevista com Éric Toussaint, porta-voz e um dos fundadores da rede internacional do Comité para a Abolição das Dívidas ilegíTiMas (CADTM). Recolha de Benjamin Lemoine [1]
Este diálogo versa sobre a genealogia da luta contra a dívida, os apelos à sua anulação e a criação empírica, ao serviço de combates políticos, dos conceitos de «ilegitimidade», de «ilegalidade» e do carácter «odioso» das dívidas públicas. Fala-se também da necessidade de o Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM) – anteriormente conhecido por Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo – se aliar às forças de oposição e aos movimentos sociais, cujas ideias e pessoas, uma vez chegadas ao poder, poderão contestar e derrubar a dívida e o seu «sistema». No entanto para o CADTM a prioridade absoluta vai para o reforço da acção dos de baixo, e não tanto para o lobbying.
Nesta segunda parte da entrevista é abordada a experiência adquirida pelo CADTM no Ruanda e na República Democrática do Congo (RDC) nos anos 1990 e início dos anos 2000.
Publicamos esta entrevista em 6 partes :
Quais foram os primeiros territórios de experimentação do método CADTM para combater as dívidas ilegítimas?
É preciso re-situarmos o tema na convergência entre o CADTM e os diversos movimentos activos em França e noutras partes do mundo. O CADTM, por exemplo, investiu muito na solidariedade com o movimento neozapatista, que apareceu publicamente em 1 de Janeiro de 1994 em Chiapas (México), e deslocou-se por diversas vezes ao México. Participou também na organização da grande mobilização de Outubro de 1994 em Espanha contra a reunião do Banco Mundial e do FMI, que celebravam meio século de existência. Esta acção fazia parte da campanha mundial «Fifty years, it’s enough». No que diz respeito aos contactos em França, já mencionei a LCR, a campanha «Ça suffat comme ci» de 1989, o colectivo «Les Autres Voix de la Planète» criado em 1996 para organizar o contra-G7; há que acrescentar AITEC [2] e CEDETIM [3], animados por Gus Massiah [4]. Houve ainda o movimento Survie, animado à época por François-Xavier Verschave [5], que lutava contra a Françafrique e se apercebeu da importância da temática da dívida. Survie mantinha relações estreitas com o CADTM, até porque, tal como o CADTM, teve um papel muito activo na denúncia do genocídio do Ruanda em 1994, bem como contra a «operação Turquoise» organizada por Mitterrand. Em 1995, uma delegação do CADTM deslocou-se ao Ruanda e foi organizado um encontro internacional CADTM em Bruxelas, tendo como ponto forte do seu programa a questão do genocídio e as responsabilidades dos credores. E a partir de 1996 o CADTM lançou-se na auditoria da dívida ruandesa com, nessa ocasião, o novo regime sediado em Kigali, dirigido por Paul Kagamé, que continua no poder. Kagamé queria lançar luz sobre a dívida e por isso foi criada uma equipa com duas pessoas que trabalhavam estreitamente com o CADTM: Michel Chossudovsky, um canadiano, professor universitário em Otava, que escrevia frequentemente no Monde Diplomatique, e Pierre Galand, então secretário da Oxfam na Bélgica, foram para Kigali e fizeram a investigação em contacto estreito com o CADTM. Eu conversava muito com eles e escrevi um artigo intitulado «Os Credores do Genocídio» que teve algum eco [6].
Essa iniciativa viria a inspirar a metodologia CADTM para a auditoria da dívida?
Assim foi, apesar de o desfecho ter sido frustrante. Poucas pessoas sabem que uma das missões da Operação Turquoise consistia em deitar a mão a toda a documentação do Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). do Ruanda em Kigali e transferir tudo para um contentor em Goma, na República Democrática do Congo, a fim de impedir que as novas autoridades tivessem acesso às pistas escritas reveladoras do ponto a que a França tinha chegado para apoiar o regime genocida de Juvénal Habyarimana. Quando Laurent-Désiré Kabila lançou a sua ofensiva contra Mobutu em 1996, a partir do Leste do Congo, Kagamé consegui apoderar-se do contentor, repatriá-lo para Kigali e abrir os arquivos, sobre os quais trabalharam Michel Chossudovsky e Pierre Galand [7].
Em suma, foi descoberta a caixa negra …
Sem dúvida, e pôs-se a nu a implicação dos bancos franceses no financiamento da compra de armas pelo general Habyarimana. O Egipto e a China também estavam implicados, por terem fornecido muitas catanas, enquanto os franceses forneciam material mais sofisticado ao exército genocida ruandês. Logo à partida, e este é um ponto comum às nossas experiências seguintes, os movimentos internacionalistas entraram em contacto com um chefe de Estado, Paul Kagamé, que pretendia esclarecer o assunto e que pôs à disposição dos peritos documentação que habitualmente é secreta. Kagamé, na posse desse recurso, ameaçou os EUA, a França, o Banco Mundial e o FMI de tornar público o financiamento do genocídio. Washington e Paris, bem como o Banco Mundial e o FMI, disseram, em suma: «Não publiques isso! Em troca do teu silêncio, propomos uma redução da dívida ruandesa e abrimos uma linha de crédito máximo no Banco Mundial e no FMI. Reduzimos o reembolso exigido e pré-financiamos novos empréstimos.» Kagamé aceitou este jogo. Foi uma experiência muito frustrante, não só pela energia e pela ética, mas também em relação ao facto de se ter perdido a oportunidade de abrir um precedente. Porque de facto, antes do regime de Habyarimana, o nível da dívida do Ruanda era muito baixo; toda a dívida reclamada ao Ruanda era uma dívida contraída por um regime despótico e portanto encaixava plenamente na doutrina da dívida odiosa
Dívida odiosa
Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:
1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.
É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)
O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.
E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»
Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
, um pouco como a dívida reclamada à RDC.
Na República Democrática do Congo, após a queda do ditador Mobutu em 1996-1997, Pierre Galand e eu colaborámos com as novas autoridades de Kinshasa (era Pierre Galand quem detinha os verdadeiros contactos) e sobretudo com os movimentos sociais. Vários membros e simpatizantes congoleses do CADTM que tinham passado 20 anos exilados na Bélgica regressaram ao seu país após a queda de Mobutu e ocuparam cargos oficiais em Kinshasa [8]. Tínhamos também contactos de longa data com Jean-Baptiste Sondji, ex-militante maoista congolês, que foi ministro da Saúde no governo de Kabila.
Nesses casos, quais são os apoios ou alianças que procuram?
Pessoalmente eu dava prioridade absoluta às relações com os movimentos sociais (sindicatos, organizações camponesas, estudantis, etc.). Não tinha grande confiança no novo governo da RDC, salvo em parte na pessoa de Jean Baptiste Sondji. Tratava-se de pôr em causa o pagamento da dívida reclamada à RDC por regimes e instituições que tinham apoiado Mobutu e lhe tinham permitido permanecer no poder durante mais de 30 anos. Laurent Désiré Kabila tinha constituído um «Gabinete dos bens mal-adquiridos» e havia um elo evidente entre o enriquecimento ligado à corrupção e o endividamento do país. Neste caso, aliás, também sofremos uma desfeita, porque Kabila negociou com os banqueiros suíços uma transacção, quando havia a possibilidade de a RDC obter da justiça helvética uma decisão que forçasse os banqueiros suíços cúmplices dos desvios efectuados por Mobutu a restituírem o que ele tinha depositado nos seus cofres. Escandalosamente, Kabila aceitou uma transacção secreta com os banqueiros suíços e desistiu dos processos legais em curso.
Fui a Kinshasa durante o Verão de 2000 para trabalhar com os movimentos sociais e as ONG congolesas sobre a questão da dívida odiosa reclamada à RDC. O meu livro La Bourse ou la Vie [A Bolsa ou a Vida] tinha muito sucesso nos meios universitários e na esquerda congolesa [9]. Na Bélgica, ex-metrópole colonial, o CADTM tinha desenvolvido uma forte campanha pela anulação da dívida odiosa da RDC e pelo congelamento dos bens do clã Mobutu na Bélgica [10]. Tínhamos colaborado na redacção duma brochura com as ONG e as organizações de solidariedade Norte/Sul activas na Bélgica, a fim de reclamar a anulação das dívidas congolesas [11]. Graças às actividades levadas a cabo pelo CADTM, as organizações da RDC aderiram à rede internacional do CADTM (em Kinshasa, no Bakongo, em Lubumbashi e em Mbuji-Mayi). A lição a tirar das tentativas de denúncia da dívida odiosa no Ruanda e na RDC é que não se pode confiar nos governos. É preciso dar prioridade absoluta ao trabalho com as organizações cidadãs de base, com os movimentos sociais e com pessoas decididas a ir até ao fim para que seja feita luz e para que os governos tomem decisões.
Tradução: Rui Viana Pereira
[1] Benjamin Lemoine é investigador em Sociologia no CNRS, especializado na questão da dívida pública e dos laços entre os Estados e a ordem financeira. Foi publicada uma versão abreviada desta conversa no número especial «Capital et dettes publiques», da revista Savoir / Agir n.° 35, Março de 2016.
[2] Association Internationale de Techniciens, Experts et Chercheurs, http://aitec.reseau-ipam.org/spip.php?rubrique3
[3] Centre d’études et d’initiatives de solidarité internationale, http://www.reseau-ipam.org/spip.php?page=rubrique&id_rubrique=47/
[6] « Le Rwanda : les créanciers du génocide », artigo publicado em 1997, de Eric Toussaint, 5 p., in Politique, La Revue, Paris, Abril de 1997.
[7] Ver Chossudovsky Michel e Galand Pierre, «L’usage de la dette extérieure du Rwanda (1990/1994). La responsabilité des bailleurs de fonds. La responsabilité des bailleurs de fond, Analyse et recommandations. Rapport préliminaire. Bruxelles - Ottawa», Novembro de 1996. http://www.cadtm.org/L-usage-de-la-dette-exterieure-du. Ver também: Chossudovsky, Michel et al. 1995 : «Rwanda, Somalie, ex Yougoslavie : conflits armés, génocide économique et responsabilités des institutions de Bretton Woods», 12 p., in Banque, FMI, OMC: ça suffit !, CADTM, Bruxelles, 1995, 182 p.
[8] Foi nomeadamente o caso de Genero Ollela, da FLNC lumumbista, que no seu regresso a Kinshasa foi integrado no Office des biens mal acquis (OBMA, departamento dos bens mal-adquiridos). Passado um ano voltou a ser metido na prisão por razões perfeitamente injustas e o CADTM fez pressão para a sua libertação.
[9] Ver https://www.monde-diplomatique.fr/1998/09/CASSEN/4039 e http://cadtm.org/La-Bourse-ou-la-vie-La-finance
[10] Ver nomeadamente http://cadtm.org/La-Republique-democratique-du
[11] CNCD-OPERATION 11.11.11, Pour une annulation des créances belges sur le République Démocratique du Congo, Bruxelas, 2002, 34 p.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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é investigador em Sociologia no CNRS, especializado na questão da dívida pública e dos laços entre os Estados e a ordem financeira. Foi publicada uma versão abreviada desta conversa no número especial «Capital et dettes publiques», da revista Savoir / Agir n.° 35, Março de 2016.
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