3 de Dezembro de 2016 por Eric Toussaint
Uma centena de delegados municipais, movimentos sociais e diversas formações políticas reuniram-se durante 2 dias, a fim de lançar uma frente de municípios que se opõem à dívida ilegítima, se pronunciam a favor da auditoria com participação cidadã e recusam prosseguir as políticas de austeridade. Éric Toussaint, a quem Somos Oviedo, principal grupo de autarcas que promoveu a iniciativa, tinha confiado a coordenação do acontecimento, apresenta o seu testemunho.
O que levou ao encontro de Oviedo
Este encontro foi preparado desde Maio de 2016. A 24 de Maio, aquando duma conferência de imprensa convocada no final duma visita minha à capital das Astúrias, para fazer uma conferência sobre a dívida ilegítima e reunir com o Podemos, Ana Taboada, vice-presidente da Câmara, e Ruben Roson, responsável das finanças de Oviedo, deram a conhecer a sua vontade de realizar seis meses mais tarde um encontro de municípios que tencionavam pôr em causa a dívida ilegítima e realizar auditorias com participação cidadã. Durante um semestre colaborámos activamente, a fim de dar um grande passo em frente na constituição duma frente. Esta colaboração incidiu sobre a redacção do Manifesto de Oviedo (concluído a 19 de Setembro de 2016) e sobre a recolha de assinaturas de autarcas, prioritariamente, mas também de deputados das comunidades autónomas [1], de deputados ao Parlamento nacional, de deputados europeus e de movimentos sociais e activistas conhecidos pela sua acção contra as dívidas ilegítimas. O Manifesto foi tornado público a 19 de Outubro, numa conferência de imprensa realizada no Parlamento espanhol, em Madrid [2]. Em menos de três semanas conseguimos reunir as assinaturas de quase 700 mandatários públicos, em 117 municípios diferentes, entre as quais figuram 40 presidentes de câmara, nomeadamente os de Saragoça (a quarta cidade do país em volume de habitantes), de Pamplona (capital de Navarro) e duma dezena de cidades com mais de 100 000 habitantes. Carlos Sanchez Mato, responsável pelas finanças da cidade de Madrid (3,4 milhões de habitantes), também assinou e ajudou activamente a reunir numerosos apoios de representantes eleitos, nomeadamente do seu partido, Izquierda Unida (IU, Esquerda Unida, aliada do Podemos e doutras forças de esquerda em diversos municípios e no Parlamento espanhol; nas eleições gerais de 26 de Junho de 2016, o Podemos e a IU apresentaram-se juntos com o nome Unidos Podemos).
A reunião efectuada em Oviedo, de 25 a 27 de Novembro, inscreve-se numa série de iniciativas que decorreram desde o fim do Verão de 2015, participadas por um número considerável de presidentes de câmara, de eleitos e de movimentos sociais, em particular a plataforma de auditoria cidadã (PACD), que nasceu em 2012 na sequência do movimento dos Indignados de 2011. Realizaram-se encontros em Madrid, Cádis e outras cidades em 2015, após as eleições municipais de Junho de 2015 terem levado ao poder governos de mudança em mais de 100 municípios, incluindo os 4 maiores do país (Madrid, Barcelona, Valência e Saragoça). Em 2016, paralelamente ao grande encontro do plano B que teve lugar em Madrid a 20 e 21 de Fevereiro [3], fizeram-se encontros com vista a convocar uma conferência que acabou por decorrer em Oviedo. O Auditfest reunido em Barcelona de 14 a 15 de Outubro de 2016 por iniciativa da PACD, foi outro trampolim para a reunião de Oviedo [4]. Foi apresentado em diversas ocasiões um guia para a auditoria cidadã municipal, publicado em Outubro de 2016 [5], que é um instrumento precioso para a fase seguinte.
Pontos comuns entre as Astúrias e a Valónia
As Astúrias e Oviedo têm pontos comuns com a Valónia e a cidade de Liège (onde se situa o secretariado internacional do CADTM). Ao longo dos dois últimos séculos as principais actividades económicas de ambas as regiões dependeram em grande parte das minas de carvão, da siderurgia, da metalurgia e, no caso das cidades de Oviedo e Liège, do fabrico de armas. Ambas as regiões foram palco de lutas sociais e políticas muito radicais nos séculos XIX e XX. Os asturianos e os valões foram muito marcados pelo encerramento das minas de carvão e pela crise da siderurgia. A compra, pela ArcelorMittal, das fábricas siderúrgicas das Astúrias e da Valónia, ao longo dos últimos 10 anos, levou em ambos os casos à quase total destruição das instalações fabris e dos empregos, depois de extrair o máximo lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). possível. Os empregos na indústria do armamento também foram fortemente reduzidos. A taxa de desemprego é muito elevada. Tanto em Liège como em Oviedo encontramos, no meio dos elefantes brancos geradores de dívida ilegítima, duas construções do arquitecto Calatrava [6], envolvido em diversos escândalos imobiliários em Espanha.
Em ambas as regiões o Partido Socialista continua a ter um papel dominante, apesar de estar a perder influência. Em ambos os casos as forças políticas radicais ganharam terreno ao longo dos últimos três anos – o Podemos nas Astúrias; o PTB [7] na Valónia. Acrescente-se que em finais dos anos 1950 e início da década de 1960 houve imigração das Astúrias para a Valónia, em particular para a metalurgia e siderurgia, de tal forma que hoje em dia vários dirigentes sindicais valões são filhos de asturianos emigrados [8].
O contexto de Oviedo
O encontro realizado em Oviedo de 25 a 27 de Novembro foi organizado pela formação política Somos Oviedo [9]. Este movimento é constituído por militantes do Podemos que apresentaram uma lista de candidatos que constitui o pilar da nova maioria que governa a cidade de 200 000 habitantes. Esta maioria é composta por 6 vereadores de Somos Oviedo, 5 do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) e 3 da Izquierda Unida. Do lado oposto encontramos 11 vereadores do Partido Popular (PP), que governou a cidade durante 24 anos até 2015, e 2 vereadores Ciudadanos (uma nova formação política de direita, próxima do PP). A federação asturiana do PSOE, que é muito direitista, opôs-se a uma aliança com Somos Oviedo. Apesar disso, um sector do PS (maioritário na secção de Oviedo) aceitou fazer a aliança que governa actualmente a capital asturiana, na condição de que o presidente da câmara fosse membro do PS. Somos Oviedo aceitou e conseguiu, em condições muito difíceis, manter de pé a aliança de esquerda que governa a câmara desde 2015.
Ana Taboada, Ruben Roson e o Conselho Municipal tentam aplicar uma política de esquerda num contexto muito difícil: Oviedo está muito endividada, em consequência da política de empréstimos ilegítimos aplicada ao longo de 24 anos de gestão municipal do Partido Popular. Além disso, o PP privatizou a torto e a direito. A água foi privatizada, a colecta dos impostos municipais foi confiada a uma empresa privada, o serviço de parques e jardins é privado, bem como o tratamento de resíduos e o serviço funerário.
A gestão municipal pretende reduzir o peso da dívida, recorrendo a uma auditoria com participação cidadã, mas isso leva o seu tempo. Pretende também remunicipalizar a colecta de impostos e vários outros serviços, com o máximo de participação civil.
Nos dias que antecederam o encontro de 25-27 de Novembro, a imprensa de direita e o PP desdobraram-se em ataques contra Ana Taboada e Ruben Roson, acusando-os de porem em perigo as finanças da cidade, ao pretenderem municipalizar a colecta de impostos. Além disso a direita atacou a política cultural da administração municipal, que decidiu pôr fim a certos subsídios que apenas beneficiam a elite local.
A 24 de Novembro, dia em que dei uma conferência na Faculdade de Economia, sob o tema «Será preciso auditar a dívida ilegítima e desobedecer aos credores?», houve várias manifestações em diversos lugares. Um milhar de estudantes progressistas manifestou-se contra a nova reforma universitária, que visa reforçar a selecção social [10], e uma parte deles confrontou-se com uma trintena de jovens de extrema direita que procuravam criar distúrbios. Noutro lugar da cidade, frente à sede do Governo das Astúrias [11], um piquete de meia centena de funcionários públicos exigia a reposição das 35 horas semanais de trabalho.
Na fachada da Câmara foi afixada uma grande faixa permanente, apelando à luta contra a violência exercida contra as mulheres. Mesmo em frente, na fachada do posto de turismo, outra faixa apela à abolição da pena de morte. Algumas almas penadas conservadoras lamentam que a Câmara não tenha decorações natalícias.
O encontro autárquico contra as dívidas ilegítimas e a austeridade
Na noite de 25 de Novembro, numa das bibliotecas municipais, foram apresentados o guia da auditoria cidadã, redigido por Yago Alvarez da PACD, e o filme Dividocracia [12].
No dia seguinte decorreu no Palácio dos Congressos Calatrava o encontro autárquico propriamente dito. Uma centena de autarcas, movimentos sociais e partidos reuniram-se em grupos de trabalho que foram orientados por militantes da PACD e do CADTM. O funcionamento dos grupos de trabalho permitiu que um máximo de participantes se exprimisse. À noite a jornada concluiu com uma conferência pública, aberta com a palavra de Iolanda Fresnillo, da PACD, que apresentou os primeiros resultados dos trabalhos. Os conferencistas foram Ana Taboada, que recordou os grandes objectivos do encontro, Carlos Sanchez, que explicou as políticas do governo da mudança e a forma como decorre o confronto com o Governo central; pela minha parte apresentei algumas reflexões gerais sobre a luta contra as dívidas ilegítimas nas últimas três décadas, tanto na América Latina ao longo da década de 1980 [13], como na actualidade no Estado espanhol.
No dia seguinte, em grupo mais reduzido, os delegados reuniram-se para se porem de acordo sobre o seguimento das actividades na frente autárquica: acções de sensibilização serão levadas a cabo nas próximas semanas; uma delegação irá ao Parlamento europeu em Março de 2017; o próximo encontro realizar-se-á em Cádis, na Andaluzia, a 26 e 27 de Maio de 2017. O Manifesto de Oviedo foi adoptado como texto de referência da frente autárquica e fixou-se o objectivo de continuar a recolher assinaturas de representantes eleitos e de movimentos sociais. Foi constituído um grupo coordenador e em breve será lançado um novo sítio de Internet [14].
A constituição duma frente autárquica que põe em causa a dívida ilegítima é uma iniciativa inédita na Europa. Como afirmaram numerosos signatários, «comprometemo-nos a: apoiar a criação duma frente espanhola de autarcas, de comunidades autónomas e de nacionalidades que ponha em causa a dívida ilegítima e labute pela sua anulação; uma frente que rompa o isolamento e a divisão; uma frente que tome iniciativas conducentes a uma mudança positiva da relação de forças com o Governo; uma frente no seio da qual as autarquias mais fortes apoiem as mais fracas e afectadas pelas dívidas ilegítimas; uma frente com iniciativas e acções concretas para nos libertarmos do jugo da dívida ilegítima e encontrar fontes de financiamento legítimas, que garantam aos cidadãos o pleno gozo dos seus direitos económicos, sociais, culturais, cívicos e políticos» [15].
Trata-se, além da frente autárquica, de tentar também construir uma frente das comunidades autónomas e das nacionalidades, com base em objectivos comuns, e de levar o combate para dentro do Parlamento em Madrid. A mobilização cívica será um elemento determinante, tanto mais quanto as lutas não são ganhas nos parlamentos, mesmo quando estes podem desempenhar um papel útil, nomeadamente quando adoptem as reivindicações expressas nas lutas. É importante recordar que a contestação contra as dívidas ilegítimas foi adquirindo força no seio do movimento dos Indignados de 2011.
Traduçao: Rui Viana Pereira.
[1] O Estado espanhol abarca 17 comunidades autónomas, entre as quais as das Astúrias, Catalunha, País Basco, comunidade de Madrid, Andaluzia, etc.
[2] Ver a conferência de imprensa em espanhol.
[3] Ver: «Le plan B de Madrid relance le débat sur un “processus constituant” pour l’Europe» e «Madrid: Plan B - Programme complet».
[4] Ver «AuditFest, une rencontre entre mouvements sociaux et “municipalités du changement” pour l’abolition des dettes illégitimes».
[5] Este guia, redigido por Yago Alvarez da PACD, inclui dois prefácios, um de Miguel Urban (eurodeputado do Podemos), outro de Fatima Martin (PACD e CADTM) e de Éric Toussaint, assim como um posfácio de Sonia Farré (deputada de En Comun Podemos e membro da PACD). Ver guia em espanhol.
[6] Trata-se do Palácio de Oviedo e de Guillemans, a gare de Liège, cujas dimensões são completamente desproporcionadas em relação às necessidades dos habitantes dessas regiões, com custos muito elevados. Il s’agit du Palais des Congrès d’Oviedo (ver foto e artigo em espanhol, «Oviedo: Un ejemplo de deuda ilegítima, cuando no ilegal, amparada por los tribunales»).
[7] O PTB é diferente do Podemos, pois não resulta dum processo de reagrupamento. Sobre as diferenças entre o Podemos (Espanha), o PTB (Bélgica), o Syriza (Grécia) e o Bloco de Esquerda (Portugal), ver http://www.cadtm.org/La-gauche-ne-doit-pas-jouer-les
[8] Nico Cué é o secretário-geral dos metalúrgicos valões e bruxelenses da FGTB. Francis Gomez é presidente do sindicato interprofissional FGTB Liège-Huy-Waremme.
[9] Aliás foi Somos Oviedo que financiou o encontro e não a câmara municipal.
[10] No seguimento dos vastos protestos que afectam a generalidade do país, o Governo parece inclinado a abandonar esta lei neoliberal. Veremos no que isto dá.
[11] O PSOE governa a comunidade autónoma das Astúrias. Preferiu constituir um governo minoritário, embora tivesse a possibilidade de constituir um governo PSOE-Podemos-Izquierda Unida. A repartição dos lugares no parlamento das Astúrias é a seguinte: 14 deputados PSOE, 11 deputados Partido Popular, 9 deputados Podemos, 5 deputados Izquierda Unida, 3 deputados Ciudadanos e 3 deputados Foro (que é de direita, como o PP e o Ciudadanos).
[12] Ver documentário: https://youtu.be/YWwldQfbb-0
[13] Sob o impulso de Fidel Castro a partir de 1985 (ver http://www.cadtm.org/Fidel-Castro-La-dette-ne-doit-pas), no Brasil durante os anos 1990 e no início dos anos 2000: no Equador em 2007-2009 (ver «Depois das esperanças frustradas, o sucesso no Equador»), na Grécia em 2010-2015 (ver «Como Alexis Tsipras enterrou a suspensão do pagamento e a auditoria da dívida muito antes das eleições de 2015» e «Grèce : La Commission pour la vérité sur la dette, la capitulation de Tsipras et les perspectives internationales pour la lutte contre les dettes illégitimes».
[14] Este sítio irá substituir progressivamente o actual http://manifiestodeoviedo.org/.
[15] Ver texto completo do Manifesto em «Manifesto de Oviedo: mais de 600 autarcas contra a dívida ilegítima».
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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