5 000 anos de dívida como arma de espoliação

Romper o círculo vicioso das dívidas privadas ilegítimas no Sul do planeta

Parte 3

9 de Maio de 2017 por Eric Toussaint


Marion Sellenet - www.marionsellenet.com

Na Ásia, em África e na América do Sul e Caraíbas, o «sistema da dívida» tem endurecido, tal como nos países mais industrializados.

Várias mudanças fundamentais ocorreram ao longo das últimas quatro décadas, principalmente depois do surto da crise da dívida no Terceiro Mundo no início da década de 1980.



As políticas austeritárias de ajustamento estrutural favorecem o recurso ao endividamento privado

As políticas de ajustamento estrutural generalizaram-se com o pretexto da crise da dívida pública. Esta crise foi provocada pelo efeito combinado da queda de preço dos produtos exportados pelo Terceiro Mundo no mercado mundial a partir de 1981-1982 e pelo aumento das taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. imposto pela Reserva Federal dos EUA a partir de 1979-1980. [1] A aplicação das políticas de austeridade e de ajustamento estrutural dominou nos finais do século XX na maioria dos países, em particular nos países ditos «em desenvolvimento» e nos países do ex-bloco de Leste.

Estas políticas de ajustamento estrutural foram ditadas pelas instituições internacionais; os governos de direita apoiaram-se nessas restrições para aplicar uma série de contrarreformas, todas elas favoráveis aos interesses das grandes empresas privadas, das grandes potências e das classes dominantes locais. [2] Estas políticas degradaram as condições de vida duma grande parte da população, nomeadamente nas zonas agrícolas, mas também nos meios urbanos. Que medidas em particular geraram maior necessidade de a população recorrer à dívida privada para tentar sobreviver? Podemos enumerar as seguintes:
- o fim dos subsídios a uma série de produtos de consumo de base (alimentos, combustíveis para aquecimento, etc.) e de serviços (electricidade, água, transportes), resultando no aumento do custo de vida;
- a política de recuperação de custos nos sectores da educação e saúde, levando as classes populares a endividarem-se para pagarem os custos escolares e de saúde;
- a supressão ou privatização dos bancos públicos, nomeadamente os que forneciam crédito aos camponeses, empurrando-os para os braços dos usurários ou dos organismos de microcrédito;
- a supressão das sociedades públicas que compravam aos agricultores os produtos agrícolas de base, a preço antecipadamente garantido e fixado; esta supressão teve efeitos dramáticos quando os preços caíram nos mercados locais e mundiais, aumentando o endividamento;
- o fim do armazenamento de cereais a cargo das autoridades públicas, que permitiu no passado assegurar a alimentação em caso de más colheitas e doutros acontecimentos nefastos. O fim do armazenamento público favoreceu aumentos súbitos e especulativos dos preços dos alimentos e levou as famílias a endividarem-se para comprarem alimentos a todo o custo;
- a abertura dos mercados internos à concorrência das importações e dos investimentos estrangeiros, donde resultou a falência de numerosas empresas locais e a miséria dos pequenos produtores (agricultores, artesãos, etc.);
- a promoção acelerada da revolução verde e do recurso aos produtos químicos (pesticidas, fertilizantes e outros) ou a sementes geneticamente modificadas (OGM), o que levou os camponeses a endividarem-se para comprarem sementes, pesticidas, herbicidas, fertilizantes, na esperança de conseguirem reembolsar a dívida depois da colheita e sua venda no mercado;
- a privatização das terras (veja-se as contrarreformas no México em 1993, no Egipto na mesma época e em numerosos outros países);
- a acumulação de terras nas mãos de sociedades estrangeiras;
- a redução de empregos na função pública;
- o congelamento e a baixa de salários;
- a generalização do IVA e outros impostos indirectos;
- a redução das pensões de reforma, quando já existiam.

A conjugação destas contrarreformas e medidas aumentou o recurso ao endividamento nas camadas populares, tanto para consumo corrente, como para mini-investimento no sector informal urbano e entre os pequenos e médios agricultores.


O desenvolvimento do microcrédito a partir dos anos 1980-1990

A partir dos anos 1980 surge o microcrédito. Desde o seu início, os governos e as grandes instituições internacionais – como o Banco Mundial – apoiaram a promoção do microcrédito. Assim aconteceu na Colômbia, como descreve Daniel Munevar, num estudo inédito. [3] Neste país, e com o apoio de fundações privadas, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Governo dos EUA, a microfinança desenvolveu-se no início dos anos 1980. O Governo colombiano adoptou um plano de desenvolvimento do microcrédito às pequenas empresas do sector informal, a partir de 1984. Experiências semelhantes ocorreram na Bolívia, Peru, México. A instituição de microcrédito mais conhecida a nível mundial é incontestavelmente o Graemeen Bank, fundado em finais da década de 1970 por Muhammad Yunnus no Bangladeche. O Banco Mundial promoveu sistematicamente o microcrédito. A Organização das Nações Unidas (ONU) associou-se a esta iniciativa e proclamou o ano de 2005 como «ano internacional do microcrédito». Em 2006, o Nobel da Paz foi atribuído a Muhammad Yunus e ao Graemeen Bank. Nesse mesmo ano, os chefes de Estado e de governo, encabeçados por Jacques Chirac, José Zapatero, George W. Bush, Luís Inácio Lula, não esquecendo Bill Clinton e Bill Gates, cantaram loas ao microcrédito.


A dimensão da questão

Graças a um forte apoio institucional dos governos [4] e de vários organismos internacionais, as instituições de microcrédito foram-se multiplicando nos países em desenvolvimento. À escala planetária, cerca de 2000 milhões de adultos não têm conta bancária. Isto abre uma extraordinária perspectiva às empresas de microcrédito. Em 2014, o seu número elevava-se a 1045, com 112 milhões de clientes, dos quais 81 % eram mulheres, e uma carteira de créditos na ordem dos 87 000 milhões de dólares. 57 % dos seus clientes vivem em zonas rurais (dados de 2014). [5] O documento foi publicado em francês por um consortium que reúne os três principais bancos franceses (BNP Paribas, Crédit Agricole, Société Générale), a Fundação Graemeen, Renault, Véolia (principal multinacional mundial no sector da água, saneamento e energia), Master Card, Engie (GDF Suez), Danone (agroalimentar), KPMG (uma das quatro principais empresas de auditoria a nível mundial), Vinci (infraestruturas de transporte e gestão de auto-estradas, aeroportos, energia, BTP), a Câmara de Paris, o governo do principado do Mónaco, o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros e do Desenvolvimento Internacional, etc. A esmagadora maioria dos créditos concedidos situa-se entre 100 e 1000 dólares.

Fonte: Baromètre 2016 de la microfinance

A maioria dos grandes bancos internacionais privados criou um ramo de microcrédito, encarregado de procurar oportunidades para se introduzir no sector, geralmente desenvolvendo parcerias com outras agências de microcrédito já existentes.

É certo que os montantes dos empréstimos são muito baixos, mas, conforme já referi, 2000 milhões de adultos não têm conta bancária e são clientes potenciais do microcrédito. Dois outros factores muito importantes devem ser tidos em conta. Primeiro, as taxas de juro real praticadas no sector da micro-finança (acrescem à taxa oficial as diversas comissões exigidas pelos credores) oscilam entre os 25 % e os 50 %. Segundo, de acordo com as próprias agências de microcrédito, as taxas de recuperação dos créditos são superiores a 90 %, pois os pobres têm tendência a fazer o impossível para reembolsar as suas dívidas.


Uma questão estratégica para o capitalismo

O sistema capitalista procura continuamente penetrar e dominar esferas e espaços que não domina por completo. No final do século XX alcançou uma enorme vitória com a restauração das relações capitalistas em sociedades como a URSS e noutros países pertencentes ao mesmo bloco, assim como na China e no Vietname. Encara a crise ambiental como uma oportunidade para desenvolver o mercado das licenças de poluição e o capitalismo verde. [6] A partir da década de 1960, com o desenvolvimento da revolução verde, conseguiu acorrentar às relações capitalistas centenas de milhões de camponeses, tornando-os dependentes de sementes, pesticidas, herbicidas e fertilizantes que o Capital patenteia e produz. A partir da década de 1990, desenvolveu-se uma nova vaga de espoliações, com uma política de açambarcamento de terras em grande escala, a nível internacional. [7]

Desde os anos 1980, com o desenvolvimento do microcrédito, o capitalismo visa progressivamente fazer entrar os 2000 milhões de adultos sem conta bancária no circuito financeiro que domina. Estes 2000 milhões, na sua maioria mulheres, já estão inseridos nas relações monetárias de forma mais ou menos profunda, mas uma parte do que é realizado como trabalho e uma parte do que é produzido pertence ainda à esfera doméstica ou comunitária não monetária (produção alimentar de autossubsistência, trabalho doméstico). É uma questão estratégica para os capitalistas, fazer toda essa gente entrar de forma sistemática no sistema capitalista, via endividamento formalizado através de relações contratuais de empréstimo. Trata-se por exemplo de pôr fim ao sistema tradicional de mutualização das poupanças entre mulheres, nos casos em que esse sistema ainda existe, como sucede no caso das tontinas da África subsariana, em que as mulheres metem num fundo comum as suas poupanças e emprestam umas às outras as quantias necessárias para certas despesas extraordinárias ou para projectos/investimentos. Captar a parte da humanidade que até agora não estava plenamente inserida nas relações formais (contratuais) capitalistas é uma grande questão estratégica.

Por isso, os governos, os organismos internacionais como o Banco Mundial e todos os bancos multilaterais que operam nos países do Sul (Banco Africano de Desenvolvimento, Banco Asiático de Desenvolvimento, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Europeu de Investimento, etc.), as grandes empresas financeiras (quase todos os bancos privados e fundos de investimento), as grandes sociedades comerciais (as grandes cadeias de distribuição), as sociedades de comunicação (principalmente na áreas dos telemóveis) desenvolvem intensa actividade nesse terreno.

A par do microcrédito propriamente dito, sobre o qual se debruça este texto, é preciso acrescentar o desenvolvimento do crédito ao consumo, concedido pelas cadeias de distribuição comercial num grande número de países emergentes. É preciso destacar também o desenvolvimento da utilização dos telemóveis para efectuar pagamentos e transferências de dinheiro, nomeadamente no caso das pessoas que não têm conta bancária. [8] O desenvolvimento dos pagamentos por telefone mereceria um estudo específico.


A fábula do microcrédito

A questão principal para Muhammad Yunnus é a seguinte: «como autorizar a metade mais frágil da população mundial a juntar-se à corrente principal da economia mundial e adquirir a capacidade de participar nos mercados livres?». [9] Yunnus parte do postulado de que a economia mundial funciona bem por via do mercado livre Mercado livre É um mercado fora da bolsa (over-the-counter, OTC), não regulamentado, onde as transacções são efectuadas directamente entre o vendedor e o comprador, ao contrário do que se passa num mercado dito organizado ou regulamentado sob uma autoridade de controlo, por exemplo a Bolsa. : o único problema dos pobres é estarem presos no lodaçal. Aceder a um primeiro empréstimo abrir-lhes-á o caminho. Os bancos acham que os pobres são insolventes? Recusam-se a conceder-lhes empréstimos? Yunnus vai testar o empréstimo aos pobres. Com as suas equipas, lança uma grande vaga: «quando um potencial devedor tenta esquivar-se a uma oferta de empréstimo com o pretexto de não ter experiência de negócios e recusa o dinheiro, procuramos convencê-lo de que pode ter uma ideia da actividade económica a criar» (p. 40). Endividem-se primeiro, logo se verá o que conseguem fazer … Para Yunnus, «o social-business é a peça que faltava ao sistema capitalista. A sua introdução pode permitir salvar o sistema» (p. 171). A questão está em saber se vale a pena salvar um sistema mortífero.

Muhammad Yunus

Numerosos estudos empíricos consagrados ao microcrédito e numerosos autores mostram que esta forma de crédito não permite realmente aos clientes sair estruturalmente da pobreza. [10] O microcrédito afoga uma grande parte dos seus utilizadores no endividamento, quando não no sobreendividamento. Não permite o desenvolvimento de empresas no sector formal. As microempresas endividadas às agências de microcrédito permanecem no sector informal. O microcrédito não permite o reforço das colectividades locais nem se substitui aos serviços públicos, que se degradam ou desaparecem em resultado do atrofiamento do Estado levado a cabo pelas políticas neoliberais. De facto, o microcrédito reproduz os mecanismos que geram a pobreza. Uma vez endividadas, as pessoas, na sua maioria mulheres, podem ser mais facilmente desapossadas, subjugadas e obrigadas a incorporarem-se no mercado de trabalho assalariado, à procura duma fonte de rendimento. Assim, contribuem para reforçar a massa de subempregados e ajudam a puxar para baixo os salários. Em muitas situações os clientes das instituições de microcrédito que se encontram em dificuldades de pagamento acabam por recorrer aos usurários tradicionais, que impõem menos condições mas exigem taxas de juro ainda mais elevadas.


Exemplos concretos ligados ao microcrédito

Bangladeche: país emblemático do microcrédito

No Bangladeche, um dos países onde o microcrédito mais se desenvolveu, numa população de 160 milhões de habitantes, em 2015, foram concedidos microcréditos a 29 milhões de pessoas, num montante médio de 200 euros (17 000 takas, a moeda do Bangladeche). [11] Mais de 80 % destes clientes são mulheres. Abdul Kalam Azad, membro do CADTM, que trabalha para a Action Aid em Dacca, no Bangladeche, dá-nos o seu testemunho: «O microcrédito, no seu funcionamento “clássico”, consiste em conceder pequenos empréstimos a vários devedores reunidos num só grupo. Um grupo que beneficie de um empréstimo é composto por cerca de 25 a 30 pessoas que têm de aceitar 16 princípios (que visam garantir que os devedores actuem de forma colectiva e como um grupo único de devedores). Os membros de um grupo começam por constituir um fundo de poupança comum, antes de se dirigirem a uma agência de microcrédito a fim de pedirem um empréstimo. Mais recentemente, as agências de microcrédito começaram a conceder créditos individuais. No caso de um empréstimo individual, o devedor tem de oferecer uma garantia à agência, no valor de 30 % do montante acordado.» [12]

A taxa de juro real varia entre 30 % e 50 % (levando em conta as comissões oficiais cobradas). Por consequência, dadas as dificuldades em cumprir tais taxas, uma cliente da microfinança (empregamos o feminino porque a maioria dos clientes são mulheres), em média, fica endividada a 3 organismos de microcrédito. Tomemos um exemplo fictício mas plausível. Ela começa por pedir um empréstimo ao Graemeen Bank (actualmente o terceiro banco de microcrédito em termos de volume no Bangladeche). Se não conseguir pagar a tempo, pede novo empréstimo ao BRAC (principal organismo de microcrédito) para reembolsar o Graemeen. A seguir, não podendo pagar ao BRAC e ao Graemeen, recorre ao ASA (segundo banco de microcrédito). Se não conseguir reembolsar, decide desaparecer, levando consigo os familiares. Se a família vive numa aldeia, ela vai-se embora sem deixar endereço de contacto e marcha para a cidade, para se fundir na massa de gente, com um sentimento de culpa. Dacca, a capital, alberga 14,5 milhões de habitantes e não faltam outras grandes cidades.

A dificuldade em fazer face ao reembolso dos microcréditos é um importante factor de stress e de humilhação para as pessoas endividadas. Segundo Abul Kalam Azad: «As dificuldades ligadas ao microcrédito induziram imenso stress no seio das famílias que contraíram empréstimos.»

Como a maioria das pessoas que pediram empréstimos não possui propriedades imobiliárias, o esbulho não incide sobre terras ou domicílios, mas sim sobre a garantia de 30 % que o devedor teve de depositar junto da agência de microcrédito. Para compreender como é que os organismos de microcrédito conseguem chegar a taxa de reembolso de mais de 98 %, é preciso ter em conta este factor. Uma pessoa que deseja pedir um empréstimo tem de depositar uma garantia de 30 % do montante emprestado. Se nunca chegar a reembolsar o empréstimo, o organismo de microcrédito fica com a garantia. E assim as agências de microcrédito conseguem alcançar uma taxa de recuperação de 98 %. Este número esconde na realidade um fenómeno de esbulho de uma enorme quantidade de pessoas que, incapazes de fazerem face às obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. de reembolso, perdem a garantia que tinham depositado e abandonam a aldeia para escapar ao opróbrio.

Pormenor suplementar: no Bangladeche, os três principais bancos de microcrédito controlam 61 % do mercado. Quem se desloque à capital, Dacca, pode ver que a maioria das caixas multibanco pertencem a esses três bancos principais.


Colômbia: o apoio sistemático do Governo ao microcrédito

Como disse mais acima, o Governo colombiano e o dos EUA, bem como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, tiveram uma intervenção activa no lançamento, apoio e expansão da microfinança. Neste país, as microempresas, que representam a maioria dos empregos, foram o alvo principal dos microcréditos. Cinco instituições dominam o sector, controlando 72 % dos créditos em 2014. O principal banco de microcrédito é o Bancamia, com ligações ao segundo maior banco espanhol, o BBVA. O Estado apoia-os de forma estrutural. Em 1996, o Corposol/Finansol, que controlava 40 % do mercado de novos créditos às microempresas, teve de ser resgatado com a ajuda das finanças públicas, pois tinha dado prioridade máxima à expansão a todo o custo. [13] Os quadros superiores dos bancos de microcrédito provêm dos grandes bancos privados, nomeadamente dos EUA, por exemplo do Citibank. Todas as avaliações realizadas pelo Governo colombiano gabam o sucesso do que chama a «indústria do microcrédito». A razão é simples: essas avaliações apenas têm em conta o crescimento do sector da microfinança, sem se preocuparem com os seus efeitos na actividade económica, sem prestar atenção à capacidade das microempresas para saírem do sector informal e passarem ao sector formal. Na realidade, a microfinança colombiana manteve as microempresas na informalidade e empurrou-as para o superendividamento, o que levou ao aumento da percentagem de não pagamentos. A partir dos anos 2000, o Governo convenceu os grandes bancos privados colombianos a investir na microfinança, que, entre 2002 e 2006, investiram anualmente 130 milhões de dólares, em grande parte com garantia pública em caso de incumprimento dos reembolsos ou de falência. [14] A quantidade de créditos que beneficiaram de garantias do Estado viu-se multiplicada por 5 entre 2001 e 2005. A seguir, o Governo decidiu aumentar ainda mais o número de microcréditos concedidos, fixando a meta de concessão de 5 milhões de microcréditos entre 2006 e 2010. Este objectivo foi ultrapassado: foram concedidos 6,1 milhões de créditos. No período de 2010-2014, a mesma coisa: o Governo pretendia atingir os 7,7 milhões de microcréditos, mas o total foi de 10,2 milhões. Mas o programa, no auge da sua expansão, não tinha conseguido melhorar a qualidade do emprego. Em 2006, pressionado pelos bancos de microcrédito, o Governo autorizou um aumento das taxas de juro. [15]]] As taxas autorizadas podiam variar entre 22,6 % e 33,9 %.

A partir de 2010, as taxas voltaram a ser aumentadas, passando a oscilar entre os 30 e os 50 %. Além disso, o Governo autorizou a introdução de taxas variáveis, indexadas trimestralmente. Na Colômbia, a expansão do microcrédito é exponencial. Passou-se de um volume total de 136 milhões de dólares em 2002, para 3800 milhões em 2016, ou seja um crescimento anual de 28,1 %. A dimensão individual de 72 % dos créditos, em 2015, variava entre 1 e 25 vezes o salário mínimo legal, enquanto os 28 % restantes oscilavam entre 25 e 120 vezes o salário mínimo legal. Em 2015, o rendimento sobre fundos próprios (ROE) era fenomenal [16] : o Bancamia chegou a 11,7 %, o Banco Mundial das Mulheres (sic! – WWB) teve 9,1 % e o banco Mundo Mujer, 21 %. O Goldman Sachs, um dos bancos mais rentáveis a nível mundial, obtém resultados nitidamente inferiores!

Embora a saúde dos bancos colombianos especializados pareça ser excelente, o mesmo não acontece com as pessoas e as microempresas que lhes solicitam crédito. 32 % dos clientes encontram-se sobreendividados e tiveram de pedir uma reestruturação das suas dívidas – a qual passa essencialmente pela extensão do período de reembolso. Com a degradação da conjuntura económica na Colômbia em 2016-2017, o número de incumprimentos aumentou fortemente. [17]


África do Sul: é frequente os patrões, a coberto de ordens judiciais, descontarem directamente do salário dos trabalhadores o montante a reembolsar

A 16 de Agosto de 2012, na região de Marikana, na África do Sul, a polícia abriu fogo contra os mineiros em greve e matou 34. Este episódio trágico é considerado por muitos como o ponto de viragem na história da democracia daquele país, apelidado «nação arco-íris». Revela não só o apoio quase incondicional oferecido às forças do Capital pelo ANC (que tinha dirigido a luta anti-apartheid) e à nova classe dirigente negra, mas também a importância e o nível de endividamento dos mineiros. A maior parte da sua dívida resulta de microempréstimos; de facto, o crescimento do microcrédito na África do Sul é simplesmente fenomenal. Os sul-africanos que ganham entre 3500 e 10 000 rands (salário de um operário) gastam até 40 % do seu rendimento a reembolsar os empréstimos. É frequente os patrões, por ordem judicial, deduzirem directamente do salário os montantes a reembolsar. Se os mineiros estavam em greve em 2012 para obterem um aumento salarial, era porque o ordenando que sobrava depois dos descontos mal lhes permitia sobreviver; e porque os empréstimos estavam sujeitos a taxas de juro usurárias, impostas por credores selvagens que se multiplicaram na zona das minas e em localidades como Marikana. [18]


Marrocos: quando as vítimas se organizam

A partir de meados dos anos 1990, o Estado marroquino promoveu o microcrédito por via de financiamentos públicos nacionais e internacionais (Fundos Hassan II para o Desenvolvimento, PNUD, US Aid, etc.).

Existem hoje 13 instituições coordenadas no quadro da Federação Nacional das Associações de Microcrédito, das quais quatro representam 95 % dos empréstimos (sendo duas delas filiais de bancos) que estruturam o sector. Este sofreu, de 2008 a 2011, uma crise devida aos incumprimentos, que, entre outras coisas, se concretizou na falência da Fundação Zakoura, levando a uma intervenção estatal para reorganizar e consolidar essas estruturas.

Entre 1990 e finais de 2015, foram distribuídos cerca de 50 000 milhões de dirhams de empréstimos. Estes empréstimos vão de 500 a 50 000 dirhams [50 a 5000 euros] no máximo, a uma taxa média real de 35 %, embora possa ir muito além.

Tirando partido da situação de urgência em que se encontravam muito devedores, do seu nível escolar e da sua ignorância sobre os procedimentos financeiros, os organismos de microcrédito escondem a taxa de juro efectiva anual real, fornecendo apenas informação sobre a taxa mensal.

As dificuldades de reembolso de empréstimos excessivos e a aplicação de taxas usurárias explicam o nascimento de um movimento de vítimas do microcrédito na região de Ouarzazate (no sueste de Marrocos) em 2011. [19] Este movimento agrupou cerca de 4500 vítimas, na sua maioria mulheres. A ATTAC CADTM de Marrocos apoiou essa luta e considerou-a justa, contra a ganância das instituições bancárias e dos investidores que as controlam, demonstrando o carácter ilegítimo e ilegal desses empréstimos.

Nas palavras da ATTAC CADTM Marrocos: «Através da sua luta, este movimento revelou a falsidade do objectivo declarado pelas instituições da microfinança, expresso na própria lei que as rege, e os meios ilegais a que recorrem no caso das dívidas por pagar. Os devedores foram sujeitos a diversas formas de ameaça e espoliados dos seus bens. As mulheres em particular tiveram de enfrentar enormes pressões: algumas abandonaram as suas famílias, outras emigraram, outras viram-se forçadas a recorrer à prostituição.» [20]

Os organizadores do movimento foram perseguidos pela Justiça e condenados a pesadas penas numa primeira fase. Face a uma forte mobilização das vítimas e à solidariedade que receberam, o tribunal pronunciou-se finalmente pela absolvição. [21]

<span lang='fr'> Caravane internationale de solidarité avec les femmes victimes des micro-crédits au Maroc </span>

Como sublinha ATTAC CADTM Marrocos: «A questão dos microcréditos ultrapassa o problema da avidez e da ganância das instituições financeiras internacionais e locais, colocando o problema mais geral do tipo de políticas aplicadas na luta contra a pobreza e, num âmbito ainda mais vasto, do modelo de desenvolvimento subjacente a essas políticas. Por um lado, os meios de subsistência duma parte da população são suprimidos, por meio do açambarcamento de terras, da proliferação do agronegócio, do encerramento ou da privatização dos serviços públicos; por outro lado, empresta-se dinheiro a essas pessoas, de forma a dar-lhes capacidade para acederem aos serviços pagos: escolas privadas, clínicas, etc., ao mesmo tempo que se lhes pede que continuem a criar as suas próprias actividades geradoras de rendimento, num mundo em crise e retirando-lhes de caminho uma parte considerável dos benefícios dessa operação.» [22]


Outros mecanismos de dívida privada

Outros mecanismos de dívida privada desempenham um papel fundamental nos países ditos em desenvolvimento, sejam eles emergentes ou não.

<span lang='fr'> Les Autres Voix de la Planète (AVP), magazine du CADTM, thématique des dettes privées illégitimes, Avril 2017 </span>Na China, mais de uma centena de milhão de pessoas é vítima duma enorme bolha imobiliária em desenvolvimento há mais de 10 anos. As habitações atingiram preços astronómicos. Dezenas de milhões de camponeses são vítimas da especulação Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
imobiliária, que inflaciona o valor das terras agrícolas nas proximidades das aglomerações urbanas. Os bancos chineses lançaram uma vaga de créditos hipotecários cada vez mais massiva e multiplicam-se os casos de abuso por parte dos banqueiros. Aumenta a taxa de incumprimento. Quando os preços do imobiliário se afundarem, as famílias ameaçadas de despejo ascenderão a dezenas de milhões.

Na Índia, contam-se ao longo dos últimos 20 anos mais de 300 000 suicídios de camponeses endividados e o número de vítimas não pára de crescer. [23]

Em resumo, neste início do século XXI, tanto no Norte como no Sul do globo, os oprimidos vêem-se confrontados com uma utilização recrudescente da dívida privada como mecanismo de servidão, de espoliação e de esbulho. Por isso, o CADTM decidiu integrar nas suas actividades a luta pela abolição das dívidas privadas ilegítimas.


Agradecimentos: O Autor agradece a leitura crítica e as sugestões de: Damien Millet e Claude Quémar. Agradece igualmente a Daniel Munevar a sua ajuda ao nível da investigação.
O Autor é inteiramente responsável pelos eventuais erros contidos neste trabalho.


Tradução: Rui Viana Pereira; Revisão: Maria da Liberdade

Fim da parte 3.
- Parte 1
- Parte 2
- A Parte 4 versará sobre as alternativas


Notas

[1Ver Éric Toussaint e Damien Millet, 65 questions 65 réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale, 2012, capítulo 3: «La crise de la dette», http://www.cadtm.org/65-questions-65-reponses-sur-la,8331

[2Ver Éric Toussaint, «Comment appliquer des politiques antipopulaires d’austérité. L’OCDE fournit un vade-mecum pour les gouvernants», http://www.cadtm.org/Comment-appliquer-des-politiques

[3Daniel Munevar, «Colombia: A critical look», 2017, 21 pp, no prelo como publicação da CNUCED.

[4Mais uma vez, o que é apresentado como uma iniciativa da sociedade civil e da iniciativa privada deve o seu sucesso a um apoio vital por parte do Estado e de organismos internacionais como o Banco Mundial, que amplia a acção dos Estados.

[5Estes dados, respeitantes a 2014, foram extraídos de Baromètre 2016 de la microfinance, http://www.convergences.org/wp-content/uploads/2016/07/Barom%C3%A8tre-2016-de-la-microfinance.pdf

[6Ver «L’impossible capitalisme vert». Um livro indispensável para a construção de um projecto ecossocialista: http://www.lcr-lagauche.be/cm/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=53&id=1754. Ver também Daniel Tanuro, «L’impossible capitalisme vert?, Pourquoi?», http://www.lcr-lagauche.org/limpossible-capitalisme-vert-pourquoi/

[7Nicolas Sersiron, «Terres préemptées, néo-colonialisme renforcé», http://www.cadtm.org/Terres-preemptees-neo-colonialisme.

[8Ver «Le Kenya, leader mondial du paiement mobile», http://www.lemonde.fr/economie/article/2014/04/20/le-kenya-leader-mondial-du-paiement-mobile_4404486_3234.html. Ver também «ONU, Transferts d’argent: le téléphone portable au secours des banques», Afrique Renouveau. Consultar online:
http://www.un.org/africarenewal/fr/magazine/december-2011/transferts-d%E2%80%99argent-le-t%C3%A9l%C3%A9phone-portable-au-secours-des-banques ; CNUCED, «Les services monétaires par téléphonie mobile», http://unctad.org/fr/PublicationsLibrary/dtlstict2012d2_fr.pdf

[9Muhammad Yunus, Vers un nouveau capitalisme, J-C Lattès, 2007, 280 pp, p. 31. Esta passagem foi extraída de um excelente artigo de Denise Comanne, «Muhammad Yunus: prix Nobel de l’ambiguïté ou du cynisme?», http://www.cadtm.org/Muhammad-Yunus-Prix-Nobel-de-l

[11Fonte: Monower Mustafa, comunicação no seminário internacional organizado pelo CADTM em Dacca, a 3 e 4 de Março de 2017. Ver o relato: «La lutte contre la dette et le microcrédit s’organise en Asie du Sud», http://www.cadtm.org/La-lutte-contre-la-dette-et-le.

[12«Microcrédit au Bangladesh: hold-up de la Graemeen Bank et consorts sur les villages ruraux», http://www.cadtm.org/Microcredit-au-Bangladesh-hold-up.

[13Ver «Grandeur et décadence de Corposol: enseignements sur la gestion de la croissance», https://www.microfinancegateway.org/sites/default/files/mfg-fr-etudes-de-cas-corposol-colombie-08-1998.pdf . Em inglês: «Corposol/Finansol: Preliminary Analysis of an Institutional Crisis in Microfinance», https://www.gdrc.org/icm/corp-finansol.html

[14Trigo, J., Patricia, L., Devaney, L., & Rhyne, E. (2004). Supervising & Regulating Microfinance in the Context of Financial Sector Liberalization: Lessons from Bolivia, Colombia and Mexico, https://centerforfinancialinclusionblog.files.wordpress.com/2011/10/supervising-regulating-microfinance-in-the-context-of-financial-sector-liberalization-english.pdf

[15[[Gutiérrez, M. L. (2009). Microfinanzas dentro del contexto del sistema financiero colombiano. https://www.microfinancegateway.org/sites/default/files/mfg-es-documento-microfinanzas-dentro-del-contexto-del-sistema-financiero-colombiano-8-2009.pdf.

[16O Return On Equity mede em percentageme a relação entre o resultado líquido e os capitais próprios investidos pelos accionistas. A equação é a seguinte: ROE = resultados líquidos / capitais próprios.

[17El Nuevo Siglo Bogotá, «Cae desembolso de microcrédito», http://www.elnuevosiglo.com.co/articulos/02-2017-cae-desembolso-de-microcredito-en-el-pais

[18Fonte: Samantha Ashman, «Financiarisation et luttes des mineurs en Afrique du Sud (Financialisation and Mine Workers’ Struggles in South Africa)», comunicação apresentada na jornada de estudos: «Finance et mouvements sociaux», Paris, 13 Abril 2017. http://www.cadtm.org/Journee-d-etudes-Finance-et

[19Lucile Daumas, «Micro-crédit, macro-arnaque», http://www.cadtm.org/spip.php?page=imprimer&id_article=9654

[20ATTAC CADTM Maroc, Le microcrédit au Maroc: quand les pauvres financent les riches, no prelo para 2017. Ver também Omar Aziki, «Maroc: les couches populaires sous le double joug du microcrédit et du despotisme», http://www.cadtm.org/Maroc-les-couches-populaires-sous

[21Souad Guennoun, «Acquittement pour les deux inculpé.e.s du procès microcrédit à Ouarzazate», http://www.cadtm.org/Acquittement-pour-les-deux-inculpe

[22ATTAC CADTM Maroc, Le microcrédit au Maroc : quand les pauvres financent les riches, no prelo para 2017.

[23Para um caso concreto, ver Al Jazeera, «India’s sugarcane farmers: A cycle of debt and suicide», http://www.aljazeera.com/indepth/features/2017/01/india-sugarcane-farmers-cycle-debt-suicide-170115102045731.html.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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