Em Julho de 1979 triunfou uma autêntica revolução, combinando o levantamento popular, a autoorganização das cidades e dos bairros revoltosos, assim como a acção da FSLN, organização político-militar de inspiração marxista-guevarista-castrista.
A FSNL não só acedeu ao poder, mas também substituiu o exército somozista por um novo exército ao serviço do povo
No decurso dos primeiros anos após o triunfo da revolução, tiveram lugar grandes transformações que diferem de outras experiências em que a esquerda chegou ao governo por via eleitoral – como sucedeu no Chile em 1970, na Venezuela em 1998-1999, ou no Brasil em 2002-2003, na Bolívia em 2005-2006, no Equador em 2006-2007. De facto, em resultado da destruição do exército somozista e da fuga do ditador, a FSLN não só acedeu ao poder (o que nos outros casos referidos aconteceu por via eleitoral), mas também substituiu o exército somozista por um novo exército ao serviço do povo, tomou o controlo total dos bancos e decretou o monopólio público do comércio externo. Foram distribuídas armas à população, para que esta pudesse autodefender-se, face aos riscos de agressão externa e da tentativa de um golpe da direita. Trata-se de mudanças fundamentais que não ocorreram nos países mencionados acima e que também tinham ocorrido em Cuba entre 1959 e 1961, tendo sido aprofundadas no decurso dos anos 1960.
Nos anos 1980 realizaram-se enormes progressos sociais ao nível da saúde, da educação, da melhoria das condições de habitação (apesar de continuar a ser rudimentar), do alargamento dos direitos de organização e protesto, do acesso ao crédito por parte dos pequenos produtores, graças à nacionalização do sistema bancário, etc. Estes progressos foram inegáveis.
Várias questões se colocam. Será que a FSLN não foi suficientemente longe nas transformações operadas na sociedade? Terá adoptado uma orientação errada? Ou será que a orientação decepcionante que se seguiu foi devida à agressão imperialista norte-americana e dos seus aliados na Nicarágua e na região?
A direcção da FSLN não foi suficientemente longe na radicalização a favor do povo
A direcção da FSLN não foi suficientemente longe na radicalização das medidas a favor dos sectores mais explorados
Eis as minhas respostas em breves linhas:
1. A direcção da FSLN não foi suficientemente longe na radicalização das medidas a favor dos sectores mais explorados e oprimidos da população (a começar pela população rural pobre, mas também os trabalhadores das fábricas, os da saúde e os da educação, que de maneira geral eram muito mal pagos). Fez demasiadas concessões aos capitalistas agrários e urbanos.
2. A direcção da FSLN, com a palavra de ordem «Direcção: Ordena», não apoiou suficientemente a autoorganização e o controlo operários. Fixou limites que prejudicaram muito o processo revolucionário.
Mudar a sociedade sem tomar o poder?
Na década de 1990, partindo de esperanças frustradas, algumas pessoas disseram que era preciso tentar mudar a sociedade sem tomar o poder. Um dos aspectos desta abordagem era de facto pertinente: é absolutamente vital favorecer os processos de mudança que se realizam na base da sociedade (sem pôr nenhuma noção pejorativa do termo «base») e que assentam na autoorganização dos cidadãos e das cidadãs, na sua liberdade de expressão, manifestação e organização. Mas a ideia de que não é necessário tomar o poder não tem justificação, pois não é possível mudar realmente a sociedade se o povo não tomar o poder ao nível do Estado. A questão é outra: como construir uma autêntica democracia no sentido original da palavra – o poder exercido directamente pelo povo, em benefício da sua emancipação. Por outras palavras, o poder do povo, pelo povo e para o povo.
A vitória de Julho de 1979 continua a ser um triunfo popular notável
Penso, à semelhança de muitas outras pessoas, que era necessário derrubar a ditadura somozista por meio da acção conjunta de um levantamento popular e da intervenção de uma organização político-militar. Neste aspecto, a vitória de Julho de 1979 continua a ser um triunfo popular notável. É preciso sublinhar que, sem o espírito inventivo e a tenacidade do povo na luta, a FSLN não teria conseguido dar o golpe decisivo na ditadura de Somoza.
Os erros
Quais foram os erros? Este assunto mereceria longos desenvolvimentos, mas eu vou restringir-me a uma apresentação sintética.
A questão agrária não foi devidamente tida em conta
A questão agrária não foi devidamente tida em conta. A reforma agrária foi gravemente insuficiente e os contra aproveitaram-se disso a fundo. Teria sido necessário distribuir às famílias rurais muito mais terras (com títulos de propriedade), pois havia uma enorme expectativa de grande parte da população que necessitava dessas terras e lutava para que as terras aráveis dos grandes proprietários privados, incluindo as do clã Somoza (mas não só), fossem repartidas em benefício de quem nelas queria trabalhar. A orientação que prevaleceu na direcção sandinista consistiu em atacar as grandes propriedades de Somoza, deixando a salvo os interesses dos grandes capitalistas e das grandes famílias que certos dirigentes sandinistas queriam transformar em aliados ou em companheiros de trajecto.
Outro erro cometido: a FSLN quis criar rapidamente um sector agrário estatal e cooperativas em lugar dos grandes proprietários somozistas, o que não correspondia ao estado de espírito das populações rurais. Teria sido preferível dar prioridade às pequenas (e médias) explorações campesinas privadas, distribuindo títulos de propriedade e levando ajuda material e técnica às famílias de camponeses tornadas proprietárias. Seria igualmente preferível dar prioridade à produção para o mercado interno (que já era avultado mas poderia ser melhorado e aumentado) ou regional, fazendo apelo intenso aos métodos de agricultura biológica.
Em resumo, a direcção da FSLN acumulou dois erros graves: por um lado, fez demasiadas concessões aos burgueses, considerando-os aliados na mudança em curso, e por outro lado recorreu a demasiada estatização e cooperativismo artificial.
O resultado não se fez esperar: uma parte da população, desiludida com as decisões do governo sandinista, foi atraída pelos contras. Estes tiveram a inteligência de adoptar um discurso dirigido aos camponeses desiludidos, dizendo-lhes que se os ajudassem a derrubar a FSLN, seria feita uma verdadeira distribuição das terras e uma verdadeira reforma agrária. Era propaganda enganadora, mas teve eco.
Tudo isto é corroborado por uma série de estudos no terreno, aos quais tive acesso a partir de 1986-1987, durante várias estadias na Nicarágua, nomeadamente nas regiões rurais onde os contras tinham ganho o apoio popular (a região de Juiglapa, no centro do país – ver mapa) [1]. Foram as próprias organizações sandinistas que realizaram inquéritos muito sérios no terreno e alertaram a direcção sandinista para o que se estava a passar. Trata-se nomeadamente de trabalhos coordenados por Orlando Nuñez [2]. Outras organizações independentes do governo, ligadas aos sectores da teologia da libertação, realizaram estudos que chegaram às mesmas conclusões. Também uma série de organizações rurais ligadas ao sandinismo (UNAG, ATC, etc.) puseram o dedo nestes problemas, ainda que se autocensurassem. Houve também peritos internacionais especialistas no mundo rural que tocaram a sineta de alarme.
No que diz respeito à autoorganização e ao controlo operário, a FSLN herdou a tradição cubana, que promove a organização popular, mas num quadro muito controlado e limitado. Cuba, que viveu no início dos anos 1960 um grande movimento de autoorganização, evoluiu progressivamente para um modelo mais controlado a partir de cima, sobretudo após o aumento da influência soviética no fim dos anos 1960-1970 [3]. Ora, uma parte dos dirigentes da FSLN, entre os quais Daniel Ortega, foi formada em Cuba nessa época. A década de 1970 foi definida como o «período cinzento» por uma geração inteira de marxistas cubanos. Dito isto, mesmo Che, quando era ministro da Indústria em Cuba, tinha reticências quanto ao desenvolvimento do controlo operário (encontramos uma confirmação muito clara numa das suas obras póstumas, que contém as conversas havidas no Ministério da Indústria entre Che e a sua equipa de conselheiros). Em suma, a direcção sandinista herdou uma tradição fortemente influenciada pela degenerescência burocrática da União Soviética e pelo seu impacto nefasto sobre uma grande parte da esquerda a nível internacional, nomeadamente em Cuba.
Em artigo anterior também já mencionei, a propósito dos problemas maiores da política do governo sandinista, outras falhas graves, tais como a forma de conduzir a guerra contra os contras e a agressão externa, que deu prioridade ao armamento pesado clássico. É preciso acrescentar que o recurso ao recrutamento militar obrigatório reduziu o entusiasmo a favor da revolução e reforçou a atracção exercida pelos contras sobre um sector camponês.
A responsabilidade da eclosão da guerra cabe exclusivamente aos inimigos do governo sandinista
É claro que a responsabilidade da eclosão da guerra cabe exclusivamente aos inimigos do governo sandinista e este tinha de defrontar a agressão, mas isso não impede que os erros na condução da guerra, combinados com os erros cometidos na reforma agrária, tenham tido consequências nefastas.
Numa entrevista recente, Henry Ruiz, um dos nove membros da direcção nacional dos anos 1980, sublinha este facto nos seguintes termos:
«Por exemplo, uma coisa que não fizemos foi a reforma agrária. (…) Esse foi um dos vícios, e essa foi uma das minhas críticas à Frente e aos que estivemos nesse processo. Os camponeses não foram favorecidos e em contrapartida foram afectados pela guerra. A guerra feita dos contra e a nossa guerra.» [4]
Também a aplicação, a partir de 1988, de um programa de ajustamento estrutural muito semelhante aos programas ditados a outros países pelo FMI e pelo Banco Mundial constituiu um erro de orientação do governo sandinista. Sobre esta matéria os militantes sandinistas apresentaram uma crítica muito clara à orientação seguida pela direcção [5]. Exprimiram interna e publicamente o seu ponto de vista mas isto desgraçadamente não deu origem a uma correcção dos erros. O Governo aprofundou uma política que levou o processo em direcção ao impasse e provocou um voto popular de rejeição e a vitória da direita nas eleições de Fevereiro de 1990.
Em suma, o governo manteve uma orientação económica compatível com os interesses da grande burguesia nicaraguense e das grandes empresas privadas estrangeiras, ou seja, uma economia virada para a exportação e assente em baixos salários, a fim de se manter competitiva no mercado mundial.
Primeira conclusão
O que enfraqueceu a revolução sandinista não foi um excesso de radicalização
A conclusão é muito importante: o que enfraqueceu a revolução sandinista não foi um excesso de radicalização. O que não permitiu um avanço apoiado na maioria da população foi uma orientação que não pôs o povo no âmago do processo para encetar a transição após o derrube da ditadura de Somoza. O Governo deveria, na prática, ter levado em melhor conta as necessidades e aspirações do povo, tanto no campo como na cidade. Deveria ter redistribuído as terras em benefício dos camponeses e reforçado/desenvolvido a pequena propriedade privada e, na medida do possível, das formas de cooperação voluntária. Deveria ter favorecido o aumento dos salários dos trabalhadores, tanto no sector privado, como no público.
Dever-se-ia ter instalado progressivamente e de forma mais acentuada as políticas favoráveis ao mercado interno e aos seus produtores.
Dever-se-ia, a todos os níveis, ter favorecido a autoorganização dos cidadãos e das cidadãs, permitindo-lhes controlar a administração pública e as contas das empresas.
Dever-se-ia ter recusado a aliança com um sector do grande capital local, erradamente entendido como patriótico e aliado do povo.
A cada etapa importante, fizeram-se ouvir no interior da FSLN vozes críticas, mas de facto não foram tidas em conta pela direcção, cada vez mais dominada por Daniel Ortega, pelo seu irmão Humberto e por Victor Tirado Lopez, todos eles da chamada tendência «tercerista», ligada a Tomas Borge e Bayardo Arce, proveniente da tendência «guerra prolongada», e sem que os outros quatro membros da direcção nacional constituíssem um bloco capaz de fazer frente ao aprofundamento dos erros.
É muito importante sublinhar que foram formuladas propostas políticas alternativas, tanto no interior da FSLN, como no exterior por forças políticas que desejavam aprofundar o processo revolucionário em curso.
As vozes críticas construtivas não esperaram pelo fracasso eleitoral de Fevereiro de 1990 para propor um novo rumo, mas pouca atenção receberam e mantiveram-se relativamente isoladas.
A dívida ilegítima e odiosa
A direcção da FSLN também devia ter posto em causa o pagamento da dívida pública herdada do regime de Somoza e rompido com o Banco Mundial e o FMI. Devia ter realizado uma auditoria da dívida com larga participação cidadã. É um ponto fundamental. O facto de o Governo sandinista ter aceitado continuar a pagar a dívida foi a par com o respeito dos interesses duma parte da burguesia nicaraguense que tinha investido na dívida emitida por Somoza. Para o Governo sandinista, tratava-se de evitar o confronto com o Banco Mundial e com o FMI, que, note-se, tinham financiado a ditadura. Apesar desta vontade do Governo de manter a colaboração com o Banco Mundial e o FMI, estas duas instituições decidiram suspender as relações financeiras com as novas autoridades nicaraguenses [6]. Isto demonstra que as concessões foram vãs.
Quando não se denunciam as grilhetas da dívida ilegítima, condena-se o povo a pagá-la
Sem dúvida não é fácil ao governo de um país como a Nicarágua afrontar sozinho os credores, mas poderia ter começado por pôr em causa a legitimidade das dívidas reclamadas pelo Banco Mundial, o FMI, os Estados e os bancos privados que financiaram a ditadura. O Governo podia ter lançado a auditoria destas dívidas, apelando à participação cidadã, e assim teria conseguido que o vasto movimento internacional de apoio ao povo nicaraguense avançasse com a reivindicação da anulação da dívida.
Nunca será de mais repetir que a recusa de enfrentar os credores quando estes exigem o pagamento de uma dívida ilegítima constitui geralmente o início do abandono do programa de mudança. Quando não se denunciam as grilhetas da dívida ilegítima, condena-se o povo a pagá-la.
Em 1979, dois meses depois do derrube de Somoza, Fidel Castro declarou perante a assembleia geral da Nações Unidas:
«A dívida dos países em vias de desenvolvimento já ascende a 335 mil milhões de dólares. Calcula-se que o montante total do serviço da dívida exterior destes países represente mais de 20 % das suas exportações anuais. Por outro lado, o rendimento médio por habitante dos países desenvolvidos já é quatorze vezes superior ao dos países subdesenvolvidos. Esta situação é insustentável.»
Afirmou ainda:
«As dívidas dos países menos desenvolvidos relativamente e numa situação desvantajosa são insuportáveis e não têm saída. Têm de ser anuladas!» [7]
Seis anos mais tarde, depois de lançar uma grande campanha internacional pela abolição das dívidas ilegítimas, Fidel Castro avançou com uma série de argumentos inteiramente aplicáveis ao caso da Nicarágua
Fidel Castro declarou que a todas as razões morais, políticas e económicas que justificam a recusa de pagar a dívida, «é preciso ainda acrescentar uma série de razões jurídicas: quem assinou o contrato? Quem aproveitava da soberania? Em nome de que princípio pode alguém afirmar que o povo se comprometeu a pagar, que recebeu ou montou esses créditos? A maioria desses créditos foram engendrados com as ditaduras militares, com regimes repressivos, sem nunca consultar as camadas populares. Porque é que as dívidas contraídas pelos opressores dos povos, os compromissos que eles tomam, deveriam ser honrados pelos oprimidos? Qual é o fundamento filosófico, o fundamento moral dessa concepção, dessa ideia? Os parlamentos não foram consultados, o princípio da soberania foi violado, que parlamentos foram consultados no momento de contrair a dívida, ou foram simplesmente informados?» [8]
Sublinho com ênfase a questão da dívida ilegítima porque, em caso de derrube do regime opressor de Daniel Ortega e Rosario Murillo, seria fundamental para um governo popular pôr em causa o pagamento da dívida exigida à Nicarágua. Se for a direita a tomar a liderança do derrube do regime, podemos estar certos de que ela não porá em causa a dívida exigida à Nicarágua.
Após a derrota eleitoral de Fevereiro de 1990, Daniel Ortega aprofundou uma orientação de colaboração de classes
Expliquei em artigo anterior que após a derrota eleitoral de Fevereiro de 1990, Daniel Ortega adoptou uma atitude que oscilou entre o co-governo de facto e o confronto. Globalmente, apesar de uma tendência para a radicalização, que durou cerca de dois anos, sob pressão das organizações populares sandinistas, que sofriam directa e brutalmente os efeitos das medidas tomadas pelo governo de direita, Daniel Ortega desenvolveu uma orientação que na verdade não propunha um rumo alternativo ao governo de Violetta Chamorro. Disso fui claramente testemunha em 1992, à margem do 3º Fórum de São Paulo.
Em 1992, os descaminhos políticos de Daniel Ortega e de Victor Tirado Lopez
Em 1992 acompanhei, em Manágua, Ernest Mandel, dirigente da Quarta Internacional, que foi convidado a fazer um conferência inaugural na 3ª reunião do Fórum de São Paulo. Este fórum, lançado em 1990 pelo PT presidido por Lula, reunia um largo espectro da esquerda latino-americana, desde o PC de Cuba até ao Frente Amplio d’Uruguay, passando por organizações de guerrilha como a FMLN de El Salvador.
Ernest Mandel intitulou a sua conferência: «Fazer Renascer a Esperança». Partindo da constatação das condições muito difíceis nas quais se encontravam as forças da esquerda radical ao nível mundial, afirmou que era preciso dar prioridade a reivindicações que visassem satisfazer os direitos humanos fundamentais, sempre apontando ao socialismo. Concluindo sublinhou que «Este socialismo deve ser autogestionário, feminista, ecologista, radical-pacifista e pluralista; deve alargar a democracia directa de forma qualitativa, e ser internacionalista e multipartidário, (…) a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Não pode ser obra dos Estados, dos governos, dos partidos ou de dirigentes supostamente infalíveis, nem de peritos de qualquer espécie» [9].
À margem deste fórum, Victor Tirado Lopez, um dos comandantes mais ligados a Daniel Ortega nessa época, quis ter uma reunião cara-a-cara com Ernest Mandel, que me pediu para o acompanhar. Victor Tirado Lopez começou por dizer que tinha grande admiração pelo trabalho de Ernest Mandel, nomeadamente o seu tratado de economia marxista1. A seguir, este comandante expôs a sua análise da situação internacional: segundo ele, o sistema capitalista tinha chegado à maturidade e não teria mais crises, levaria ao socialismo sem necessidade de novas revoluções. Era perfeitamente absurdo e Enest Mandel disse-lho com toda a clareza e a ferver. Quando Mandel replicou que as crises iriam continuar e que nalgumas partes da América Latina, como o Nordeste brasileiro, as condições de vida dos mais explorados se agravavam muito nitidamente, Tirado Lopez respondeu que essas regiões ainda não tinham sido atingidas pela civilização levada cinco séculos antes por Cristóvão Colombo. Mandel e eu pusemos fim abrupto a esta conversa delirante.
A evolução de Daniel Ortega já era bastante perceptível no início dos anos 1990
No dia seguinte, Daniel Ortega quis apresentar em privado a Mandel o projecto de programa alternativo que pretendia defender publicamente, em nome da FSLN, contra o governo de direita de Violetta Chamorro. Após a leitura, vimos que aquele programa não preenchia as condições mínimas para constituir uma alternativa. Em palavras breves: era compatível com as reformas levadas a cabo pelo governo de direita e não permitia retomar a ofensiva face à direita. Mandel disse-o muito claramente a Daniel Ortega, que não apreciou nada.
Menciono estas duas discussões porque elas mostram até que ponto a deriva política de certos dirigentes da FSLN era profunda.
Segunda conclusão: A evolução de Daniel Ortega, daqueles e daquelas que o acompanharam nos caminhos do regresso ao poder, já era bastante perceptível no início dos anos 1990.
A consolidação do poder de Daniel Ortega dentro da FSLN
Uma parte considerável dos militantes e das militantes sandinistas do período revolucionário recusou esta orientação nos anos seguintes. Isto levou o seu tempo e este atraso na tomada de consciência do perigo foi aproveitado por Daniel Ortega para consolidar a sua influência no seio da FSLN e marginalizar ou excluir aqueles e aquelas que defendiam uma orientação diferente. Simultaneamente Daniel Ortega conseguiu manter uma relação privilegiada com uma série de dirigentes das organizações populares sandinistas que o consideravam, à falta de melhor, o dirigente mais apto a defender uma série de conquistas dos anos 1980. Isto permite compreender em parte por que razão, em 2018, o regime de Daniel Ortega continua a ter o apoio de uma parte da população e do movimento popular, apesar do recurso a métodos repressivos extremamente brutais.
No próximo artigo serão analisados os acontecimentos de Abril a Agosto de 2018.
Consultar as outras partes:
1- Nicarágua: donde vem o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo
2- A evolução do regime do presidente Daniel Ortega a partir de 2007
3- Nicarágua : Reflexões sobre a experiência sandinista dos anos 1980-1990, para compreender o regime de Daniel Ortega e de Rosario Murillo
4- Breve história das relações entre o Banco Mundial, o FMI e o Governo da Nicarágua
Tradução: Rui Viana Pereira
[1] Fui membro activo dos «FGTBistes pour le Nicaragua». Era uma organização belga, composta por sindicalistas de base que, sem consultar a direcção sindical, se reuniram para ir apoiar o povo nicaraguense, que tinha realizado a revolução sandinista, em particular no sector rural, nomeadamente no sector dos assalariados agrícolas. Esta associação, muito activa na segunda metade da década de 1980, agrupava operários de grandes empresas industriais presentes na Bélgica (Caterpillar, Cockerill Mechanical Industries, Volkswagen, Renault, Ford, etc.) e trabalhadores dos serviços públicos (ensino, saúde, autarquias, ministérios, etc.). Esta associação realizava conferências na Bélgica, organizava autoformações e todos os anos enviava brigadas de trabalho voluntário para as zonas rurais. Geralmente tratava-se de duas a três semanas de trabalho na zona rural e de uma semana de reuniões em Manágua, com dois ou três dias de descontracção numa praia do Pacífico. Entre os sindicalistas encontravam-se militantes dos partidos políticos (trotskistas, maoístas, comunistas, socialistas) e «apartidários».
Pessoalmente, eu era membro da secção belga da Quarta Internacional, a Liga Revolucionária dos Trabalhadores (LTR), que era muito activa na solidariedade com a revolução sandinista. A par dos FGTBistes, outros activistas membros de outro grande sindicato belga, o ACV-CSC, constituíram os «ACV pela Nicarágua», principalmente implantados na parte flamenga do país. Entre os ACV pela Nicarágua havia numerosos membros da Quarta Internacional. Além disso na Nicarágua residiam em apoio permanente à revolução sandinista alguns membros da Quarta Internacional vindos da Bélgica, França, Holanda, Espanha, México, Itália, Suíça e outros países; trabalhavam nos domínios da saúde, da agronomia, da ajuda técnica, da solidariedade internacional, etc.
[2] Orlando Nuñez, que eu conheci bem entre 1986 e 1992, participou no Maio de 1968 em Paris. Afirmava-se do movimento situacionista-libertário e sandinista.
Durante a década de 1990 e de 2000 continuou a apoiar a orientação de Daniel Ortega, em contradição com as suas posições iniciais. A sua terrível evolução foi criticada nomeadamente por um dos seus amigos próximos e camarada, o norte-americano Roger Burbach. Ver Roger Burbach, «Et Tu, Daniel? The Sandinista Revolution Betrayed» – Burbach escreveu:
«Espantosamente, Orlando Nuñez, com o qual escrevi um livro sobre o impulso democrático da revolução (Roger Burbach, Orlando Nuñez, Fire in the Americas. Forging a Revolutionary Agenda, Verso, 1987), permaneceu leal a Ortega quando a maioria dos quadros intermédios e dos membros da direcção nacional abandonaram o partido […]. Quando inquiri Nuñez sobre a sua atitude, deu-me como argumento que só o partido sandinista dispunha de uma base nas massas. Disse ele: “Os sandinistas dissidentes e as suas organizações não podem recrutar os pobres, os camponeses, os trabalhadores, nem concorrer a eleições de maneira credível.” Nuñez, que trabalha como conselheiro para os assuntos sociais no gabinete do presidente [este texto foi publicado no primeiro quadrimestre de 2009 – ET], defendeu a seguir que Ortega se tinha aliado com Alemán não por cinismo político, mas com o propósito de construir uma frente anti-oligárquica. Segundo esta teoria, Alemán e os somozistas representam uma classe capitalista emergente que substituiu a velha oligarquia dominante na política e na economia da Nicarágua desde o século 19» [traduzido da versão inglesa].
[3] Ver a este propósito Fernando Martinez Heredia entrevistado por Éric Toussaint, «Du 19e au 21e siècle: une mise en perspective historique de la Révolution cubaine».
[4] «Por ejemplo, una cosa que no hicimos fue reforma agraria. (…) Ese fue uno de los vicios, y esa fue una de mis críticas al Frente y a los que estuvimos en este proceso. Los campesinos no fueron favorecidos, en cambio fueron afectados por la guerra. La guerra contra y la guerra nuestra.» https://www.diariolajuventud.com/single-post/2018/07/21/Henry-Ruiz-desde-Nicaragua-%E2%80%9Cno-se-dejen-embaucar-por-un-falso-credo-de-izquierda%E2%80%9D?_amp
[5] Trata-se nomeadamente do economista nicaraguano Adolfo Acevedo Vogl, que trabalha como conselheiro no Ministério da Planificação dirigido por Henry Ruiz. Ver também a revista nicaraguense Envio, Agosto/1988, de que foram publicados trechos na revista Inprecor, n°273 Outubro/1988, com o título «Nicaragua: Traitement de choc».
[6] Ver Éric Toussaint, Banque mondiale, le coup d’Etat permanent, 2006.
[7] Fidel Castro: «A Dívida Não Deve Ser Paga», ver em francês ou em castelhano ou em inglês.
[8] Fidel Castro, ibid.
[9] Ver http://www.ernestmandel.org/new/ecrits/article/faire-renaitre-l-espoir. O final da conferência de Ernest Mandel merece ser reproduzida nesta nota:
«Este socialismo deve ser autogestionário, feminista, ecologista, radical-pacifista e pluralista; deve alargar a democracia directa de forma qualitativa e ser internacionalista e multipartidário. Deve também ser emancipador para os produtores directos. Isto não pode ser alcançado sem o desaparecimento progressivo do trabalho assalariado e da divisão social do trabalho entre aqueles que produzem e aqueles que administram e acumulam. Os produtores devem ter o poder real de decidir como se produz, o que se produz e como é utilizada uma grande parte do produto social. Este poder deve ser conduzido de maneira plenamente democrática, ou seja, deve exprimir as convicções reais das massas. Para isso, é necessária a pluralidade dos partidos e deve ser dada às massas a possibilidade de escolher entre diferentes variantes dos objectivos centrais do plano económico – isto não é realizável sem a redução drástica da jornada de trabalho e da semana de trabalho. Existe quase um consenso sobre o peso cada vez maior da corrupção e da criminalização na sociedade burguesa e nas sociedades pós-capitalistas em desagregação. Mas é preciso compreender que isto está estruturalmente ligado ao peso do dinheiro na sociedade. É utópico e irrealizável esperar uma moralização da sociedade civil e do Estado, sem uma redução radical do peso do dinheiro e da economia de mercado. Não é possível defender uma visão coerente do socialismo sem nos opormos de maneira sistemática ao egoísmo e à busca do lucro individual, dadas as consequências que ambos têm no conjunto da sociedade. É preciso dar prioridade à solidariedade e à educação. E isto pressupõe precisamente uma redução decisiva do peso do dinheiro na sociedade. Por fim, os socialistas e os comunistas devem recusar todas as práticas de substituição paternalista ou verticalista. Devemos transmitir a principal contribuição de Karl Marx para a política: a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Não pode ser obra dos Estados, dos governos, dos partidos ou de dirigentes supostamente infalíveis, nem de peritos de qualquer espécie. Todos estes organismos são úteis e até indispensáveis na via da emancipação. Mas apenas servem para ajudar as massas a libertarem-se, e não para as substituir. É imoral e mesmo impraticável tentar assegurar a felicidade das pessoas indo contra as suas convicções. Esta é uma das principais lições que podemos extrair da derrocada das ditaduras burocráticas na Europa de Leste e na antiga URSS. A prática dos socialistas e dos comunistas tem de obedecer a estes princípios. Não devemos justificar qualquer prática alienante ou opressiva. Devemos realizar o que Marx chamava o imperativo categórico de lutar para esmagar todas as condições sob as quais os seres humanos são alienados e humilhados. Se a nossa prática corresponder a este imperativo, o socialismo readquirirá uma força enorme e uma legitimidade moral que o tornará invencível.»
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.