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Rompamos com o tabu sobre as dívidas odiosas e seu repúdio
por Eric Toussaint , Nicolas Vrignaud
27 de Dezembro de 2018

Eric Toussaint é doutorado em Ciências Políticas e porta-voz do CADTM (Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas). Coordenou os trabalhos da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública da Grécia, criada a 4/04/2015 pela presidente do Parlamento grego Zoe Konstantopoulou e dissolvida a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego. O seu último livro, Le Système Dette. Histoire des dettes souveraines et de leur répudiation (O Sistema da Dívida. História das Dívidas Soberanas e do Seu Repúdio), publicado por Les Liens qui Libèrent, 2017, aborda numerosos casos de repúdio da dívida ao longo da História. É à volta deste tema que gira esta conversa.

LVSL – Acha que a dívida é um assunto pouco divulgado nos meios de comunicação tradicionais? Se sim, qual será a razão?

No CADTM tentamos em primeiro lugar perguntar donde vêm essas dívidas, saber se os fins que justificaram a acumulação de dívidas são legítimos e se as dívidas foram contraídas de maneira legítima e legal

Éric Toussaint – A dívida é invocada com frequência, mas nunca no sentido em que o CADTM e eu a abordamos. O discurso dos meios de comunicação dominantes e dos governos consiste em dizer que existe um excesso de dívida, demasiadas despesas do Estado e que por isso é preciso pagar a dívida e reduzir as despesas públicas. No CADTM tentamos em primeiro lugar perguntar donde vêm essas dívidas, saber se os fins que justificaram a acumulação de dívidas são legítimos e se elas foram contraídas de maneira legítima e legal. É esta a aproximação que tentamos fazer e de facto é verdade que ela nunca é evocada pelos meios de comunicação dominantes, que não vêem nisso qualquer interesse; segundo eles, trata-se de uma questão desligada da realidade.

LVSL – É sabido que recorre à categorização das dívidas em ilegítimas e odiosas. Pode apresentar-nos as características desses tipos de dívida?

ET – De início apareceu uma teoria sobre a dívida odiosa, elaborada por Alexander Nahum Sack – um jurista conservador russo e professor de Direito na Universidade de São Petersburgo durante o regime czarista (a cidade chamava-se nessa época Petrogrado e era a capital do império russo). Sack elaborou esta teoria em reacção ao repúdio da dívida a que recorreu o poder soviético em 1918, com a qual ele não estava de acordo. Exilou-se em França e começou a recensear todos os litígios em matéria de dívida soberana entre finais do século XVIII e a década de 1920. Estudou as arbitragens internacionais, a jurisprudência, os actos unilaterais. Partindo de tudo isso, conseguiu construir uma doutrina de direito internacional (http://www.cadtm.org/IMG/pdf/Alexander_Sack_DETTE_ODIEUSE.pdf) aplicável em parte ainda hoje. Esta doutrina estabelece um princípio geral, segundo o qual, mesmo em caso de mudança de governo ou de regime, verifica-se continuidade das obrigações internacionais.

No entanto, esta doutrina estabelece também uma excepção fundamental: a dívida odiosa, fundada em dois critérios. O primeiro critério é preenchido quando seja possível demonstrar que as dívidas reclamadas a um Estado foram contraídas contra o interesse da população desse Estado. O segundo critério cumpre-se quando os prestamistas estão conscientes desse facto ou quando não conseguem demonstrar que lhes foi impossível saber que essas dívidas foram contraídas contra o interesse da população. Se forem preenchidos os dois critérios, então essas dívidas contraídas por um governo anterior são odiosas – o novo regime e a sua população não podem ser obrigados a reembolsá-las. Para o CADTM esta doutrina tem de ser actualizada, porque a noção do que é contrário ao interesse duma dada população evoluiu desde os anos 1920, muito simplesmente porque o direito internacional evoluiu («A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»). É sobretudo o caso do pós-Segunda Guerra Mundial, época em que foram construídos instrumentos jurídicos determinantes, como o PIDESC (Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais) e o PIDCP (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), que delimitam o que é conforme e o que é contrário ao interesse de uma população.

Ainda a propósito da dívida ilegítima, esta pode ser definida em termos menos restritivos, definindo-se então como a ausência do propósito explícito de ir ao encontro do interesse da população. Esta dívida é qualificada como «apenas» ilegítima, pelo facto de ter sido acumulada para favorecer o interesse de minorias privilegiadas. É o caso, por exemplo, de uma dívida pública contraída para salvar os grandes accionistas dos bancos, com a agravante de esses bancos serem responsáveis pelo marasmo causado por uma crise bancária. Nesse contexto, as dívidas acumuladas após a crise bancária de 2007-2008 em países como a França e os EUA são dívidas ilegítimas. Aliás, o CAC (Colectivo para uma Auditoria Cidadã da dívida pública) concluiu nos seus trabalhos que 59 % dos montantes da dívida reclamada à França são ilegítimos (ver https://www.audit-citoyen.org/2014/05/27/que-faire-de-la-dette-un-audit-de-la-dette-publique-de-la-france/ e https://static.mediapart.fr/files/note-dette.pdf). Essa massa corresponde em parte ao resgate bancário mas também a uma série de benefícios fiscais em benefício das empresas muito grandes; são políticas fiscais que não respeitam os princípios da justiça fiscal e social. Por outro lado, o facto de os Estados da zona euro terem recusado financiar a dívida pública através do Banco Central e terem colocado a dívida no mercado obriga esses Estados a pagarem taxas de juro superiores às que teriam de pagar se pudessem financiar-se no Banco Central. Por isso deveríamos deduzir o montante da dívida acumulada resultante desse diferença de taxa.

LVSL – No que diz respeito ao repúdio, como são as dívidas repudiadas? No seu livro cita muitos exemplos de repúdio da dívida; encontra no contexto político constantes que favoreçam os repúdios?

ET – Em primeiro lugar, de maneira geral, há uma mudança de regime ou de governo que leva a pôr em causa a dívida acumulada até ao momento da mudança. Por exemplo, em 1837, nos EUA, houve uma rebelião civil em quatro Estados que levou à queda dos respectivos governos, acusados pela população de serem corruptos, de terem feito acordos com os banqueiros para financiarem infraestruturas que não foram realizadas. Os novos governantes repudiaram as dívidas e os banqueiros afectados por esses repúdios apelaram à justiça federal dos EUA. Mas foram derrotados! É muito interessante. O repúdio resultou de uma mobilização popular, de uma denúncia do comportamento de certas autoridades pela população ultrajada, que se insurgiu contra o pagamento das dívidas.

Em 1837, nos EUA, o repúdio resultou de uma mobilização popular, de uma denúncia do comportamento de certas autoridades pela população ultrajada e que se insurgiu contra o pagamento da dívida

Outro exemplo: no México, o governo do presidente Benito Juarez, liberal no sentido do século XIX – quer dizer, favorável à separação entre o Estado e a Igreja, ao ensino público gratuito, laico e obrigatório –, foi deposto em 1858 pelos Franceses, aliados aos conservadores locais. Estes pediram empréstimos aos banqueiros franceses, suíços e mexicanos para financiar o seu governo ilegal. Em 1861 Benito Juarez regressa ao poder com o apoio popular e repudia as dívidas contraídas pelos conservadores. Em Janeiro de 1862, o governo francês de Bonaparte declara guerra ao México, com o pretexto de obter o reembolso da dívida reclamada pelos banqueiros franceses. Um corpo expedicionário francês constituído por 35 000 soldados impõe então a rainha consorte do príncipe austríaco Maximiliano I, que é proclamado imperador do México. Mas Benito Juarez volta ao poder mais uma vez; com o apoio popular decide repudiar as dívidas contraídas pelo regime de Maximiliano da Áustria entre 1862 e 1867. Isto deu bons resultados para o país. Todas as grandes potências reconheceram o regime de Benito Juarez e assinaram acordos comerciais com ele, incluindo a França, após a queda de Bonaparte em 1870.

Finalmente podemos evocar a Revolução russa, país onde a população suportava as despesas do regime do czar e as guerras levadas a cabo por este. Quando os sovietes tomaram o poder em Outubro de 1917, um dos primeiros decretos aprovados foi a suspensão do pagamento, seguido do repúdio da dívida.

Estes exemplos exemplificam actos que podemos chamar unilaterais.

Podemos também encontrar outros exemplos caracterizados pela intervenção internacional. Em 1919, na Costa Rica, deu-se a queda de um regime antidemocrático e o regresso a um regime democrático, associado a uma decisão do Congresso da Costa Rica de repudiar as dívidas contraídas pelo regime anterior. Face à ameaça de intervenção britânica, a Costa Rica pediu uma arbitragem neutral. Os dois países concordaram em designar para árbitro o presidente do Supremo Tribunal dos EUA e o resultado foi favorável à Costa Rica! Este caso é interessante ao nível da jurisprudência e serve de referência a A. N. Sack, tanto mais que este era um admirador dos EUA. Ora o presidente-juiz do Supremo Tribunal dos EUA, William H. Taft, afirma que a dívida reclamada à Costa Rica por um banco britânico, o Royal Bank of Canada, foi uma dívida acumulada pelo presidente Federico Tinoco para seu benefício pessoal e contra o interesse da população. O banco não conseguiu demonstrar que desconhecia que o dinheiro emprestado a F. Tinoco servia para seu benefício pessoal. Sobretudo deve notar-se que em momento algum do julgamento W. H. Taft se refere ao carácter despótico do regime; daí que A. N. Sack na sua doutrina não dê importância à natureza do regime anterior; o que mais lhe importa na apreciação da dívida é a utilização dada ao dinheiro do empréstimo. Do meu ponto de vista isto é fundamental, porque durante muitos anos fez-se uma interpretação errada da doutrina de A. N. Sack, segundo a qual a aplicação do repúdio era limitada à dívida odiosa dos regimes ditatoriais. Para A. N. Sack, a sua doutrina funda-se na existência de um governo regular num determinado território, um regime que exerce poder real, seja ele legítimo ou não, pois essa não é a questão.

A. N. Sack menciona claramente os interesses da população, nomeadamente a partir de um caso preciso: o Tratado de Versalhes, de Junho de 1919. Este pacto diz que as dívidas contraídas pela Alemanha para colonizar a Polónia não podem ser sacadas à Polónia após esta ter recuperado a sua existência como Estado independente, justamente porque essa dívida foi contraída para colonizar a Polónia e portanto contra o interesse do povo polaco. No mesmo tratado diz-se que as dívidas contraídas pela Alemanha para colonizar os seus territórios de África (Namíbia, Tanganhica, Camarões, Togo, Ruanda-Urundi) não podem ser sacadas às populações desses territórios. Intervém aqui a noção de interesse das populações que ganhou sentido a partir desse período. Efectivamente, o presidente norte-americano dessa época, Woodrow Wilson, promulgou em Fevereiro de 1918 uma declaração que proclama o direito dos povos à autodeterminação (https://www.herodote.net/8_janvier_1918-evenement-19180108.php). Por consequência, uma dívida acumulada para colonizar uma população põe em causa o direito desse povo à autodeterminação. Esta evolução do direito justifica a minha posição, que é a seguinte: retomemos os critérios elaborados por A. N. Sack com base na jurisprudência, mas tenhamos em conta a evolução do direito internacional.

LVSL – Quando olhamos para o caso da Grécia em 2015, encontramos uma mudança de regime, com a chegada ao poder do Syriza e de Alexis Tsipras, e um apoio social considerável. No entanto, feitas as contas, Tsipras desprezou e ignorou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública Grega, na qual você trabalhou. Que parâmetros políticos impediram esse movimento propício de avançar no sentido de um possível repúdio de uma parte da dívida grega?

ET – Sim, é muito importante analisar esse caso. Trata-se muito simplesmente da incapacidade de Tsipras para adoptar uma estratégia adequada ao contexto real no qual se encontrava a Grécia. Se olharmos para o programa de Tessalónica apresentado em Setembro de 2014, com base no qual ele foi eleito (ver extractos do programa no meu artigo: «Logo à Partida: Varoufakis-Tsipras Adoptam Uma Orientação Votada ao Fracasso»), encontramos uma série de compromissos muito importantes que implicavam nomeadamente uma redução radical da dívida. Com efeito havia um conjunto de medidas destinadas a provocar mudanças radicais em relação à austeridade brutal que tinha sido instalada, às privatizações e à maneira como os bancos tinham sido resgatados. Tsipras adoptou uma série de procedimentos que de todo não eram coerentes com o programa e os compromissos que tinha assumido. A sua estratégia consistiu em fazer concessões rápidas à Troika – composta pelo BCE, pela Comissão Europeia e pelo Eurogrupo (sendo este último uma instância que não tem estatuto jurídico, que não existe nos tratados). Mas foi precisamente neste último que o governo de Tsipras aceitou ser encurralado. Varoufakis foi negociar e assinar acordos com o Eurogrupo, então presidido por Jeroen Dijsselbloem. Na minha opinião, foi esta estratégia que levou à primeira capitulação, em 20 de Fevereiro de 2015, quase no início [do mandato de Tsipras]. O facto de aceitar o prolongamento do memorando por mais quatro meses, de respeitar o calendário de pagamentos e de se comprometer a submeter as propostas de aprofundamento das reformas ao Eurogrupo equivale a aceitar a servidão (ver «A Primeira Capitulação de Varoufakis-Tsipras, em Finais de Fevereiro 2015»). Muitas pessoas interpretaram essa estratégia como a adopção de uma atitude inteligente e táctica da parte de Tsipras. Na realidade os termos do acordo de 20 de Fevereiro de 2015 constituíram uma renúncia. Foi isso que o deixou definitivamente num beco sem saída. Seria preciso ter feito marcha-atrás, admitindo perante o seu povo e perante a opinião internacional que tinha sido cândido ao aceitar os termos de 20 de Fevereiro. Face à recusa da Troika em respeitar os votos expressos pelo povo grego, ele devia ter declarado que, ao fazer concessões, tinha acreditado que o Eurogrupo também iria ceder. A partir desse momento ele deveria ter concluído pela necessidade de mudar de abordagem. Mas não o fez, apesar de ter legitimidade para o fazer, como comprova o referendo que ele ganhou. Mesmo após o referendo, ele não aplicou a vontade popular! Por conseguinte foi o próprio Tsipras que impediu que se avançasse, entre outras coisas, para um repúdio da dívida.

LVSL – Poderá acontecer agora uma situação semelhante na Itália? Não haverá uma vontade da parte das instituições europeias de serem muito mais firmes com os governos de esquerda, progressistas, do que com os outros?

ET – No caso da Itália, encontramo-nos num estádio em que podemos ter a impressão, baseada em elementos reais, de que o governo de Salvini, pelo qual evidentemente não tenho nenhuma simpatia, é um pouco mais firme que o governo de Tsipras face aos ditames dos dirigentes de Bruxelas. No entanto tudo isso é relativo, já que, durante a sua campanha, Salvini pediu ao povo italiano que lhe desse um mandato para sair do euro e, a partir do momento em que participou na concepção do governo com Di Maio, aceitou o quadro e o pelourinho do euro. Onde o governo italiano parece querer permanecer firme, é na recusa da estrita disciplina orçamental. Mas há que esperar pelo seguimento dos acontecimentos, pois o mais importante ainda está para vir. Se o confronto continuar e endurecer, que atitude irá o governo italiano adoptar a final de contas? Ninguém sabe. Em todo o caso é lamentável que seja um governo em parte de extrema direita quem desobedece à UE, com o argumento da recusa da austeridade a todo o custo, enquanto essa postura deveria ter sido adoptada por um governo democrático e progressista. É desanimador ver o governo polaco desobedecer à austeridade, o governo húngaro desobedecer noutros aspectos, e ver outros governos permanecerem dóceis em relação às políticas injustas ditadas pelos dirigentes de Bruxelas. Por exemplo em Espanha o governo de Pedro Sanches apresentou um orçamento conforme às regras impostas por Bruxelas.

Por outro lado, não restam dúvidas sobre a das instituições europeias de serem mais duras com governos de esquerda democrática e progressistas do que com outros. Mas ao mesmo tempo, da parte dos primeiros, sobretudo no caso da Grécia, não houve desobediência. O que é extraordinário e convém sublinhar no caso de Tsipras, é que poucos dias após a sua eleição em Janeiro de 2015 e a constituição do seu governo, quando ainda não tinha tomado qualquer medida, a 4 de Fevereiro de 2015, o BCE cortou o fornecimento normal de liquidez aos bancos gregos («Logo à Partida: Varoufakis-Tsipras Adoptam Uma Orientação Votada ao Fracasso» e «Varoufakis-Tsipras Rumo ao Acordo Funesto com o Eurogrupo de 20 fevereiro 2015»). É uma declaração de guerra. Por outro lado, os governos de direita e extrema direita desobedecem, mas onde estão as medidas fortes da UE contra eles? Não se vêem.

LVSL – Precisamente, ponhamos uma hipótese, à maneira do artigo recente de Renaud Lambert e Sylvain Leder no Le Monde Diplomatique, «Face aos Mercados, o Cenário de Um Braço-de-Ferro». Imaginemos que um país como a França elege um governo de esquerda progressista e absolutamente apostado em romper com o neoliberalismo. Suponhamos que esse governo anuncia rapidamente uma moratória sobre a dívida, a fim de encarar o repúdio da parte ilegítima dessa dívida. Como evitar o pânico financeiro e os danos colaterais económicos e sociais que se seguirão?

ET – Eu não diria tanto que se trata de evitar o pânico bancário, mas antes: como geri-lo? Essa situação irá ocorrer, sejam quais forem as circunstâncias, e por isso temos de estar preparados. Para a limitar, proponho um instrumento que não foi evocado no artigo do Monde Diplomatique – aliás troquei argumentos com Renaud Lambert a esse propósito. O Banco Central (BCE), no quadro do quantitative easing (QE) (ver caixa), comprou títulos franceses aos bancos, por pouco mais de 400 mil milhões de euros. Consta do seu balanço (sítio oficial do BCE, Breakdown of debt securities under the PSPP, https://www.ecb.europa.eu/mopo/implement/omt/html/index.en.html, consultado em 3/11/2018). Comprou-os aos privados, mas foi o Tesouro francês quem pagou ao BCE os juros e o capital amortizado. Ora se o BCE torcer o nariz a um governo de esquerda em França, como fez com o governo de Tsipras, o governo francês pode decidir não reembolsar, em resposta à vontade do BCE de o impedir de cumprir o seu mandato democrático. É um argumento bastante poderoso, que inverte a relação de forças que o BCE pensa dominar. Surpreendeu-me que nenhum dos economistas consultados pelo Le Monde Diplomatique tivesse pensado nisso. O quantitative easing não foi suficientemente analisado pelos economistas em geral, incluindo os heterodoxos de esquerda, que não vêem essa arma de que dispõem os Estados a partir do momento em que decidam desobedecer. A Troika ficaria numa situação terrível.

Quantitative Easing (QE) ou «flexibilização quantitativa» da política política monetária, como se diz nalgumas traduções portuguesas: trata-se da política aplicada pelo BCE a partir de 2015 no rasto da que foi adoptada pela Reserva Federal dos EUA entre 2008 e 2014. O BCE compra em quantidades massivas títulos de dívida privada e pública aos bancos da zona euro, assim como a grandes empresas. Este procedimento ajuda os bancos e outras grandes empresas privadas, fornecendo-lhes a liquidez de que necessitam para especular, o que aumenta o risco de novas crises. A retoma económica não está ao virar da esquina. Em princípio, o BCE deverá pôr fim a este programa de recompra a partir de finais de 2018, mas na realidade já decidiu manter constante o stock de cerca de 2200 mil milhões de euros de títulos soberanos que comprou entre 2015 e finais de 2018. Isto significa que quando os títulos soberanos atingirem o prazo de maturidade, o BCE recomprará outros títulos por um montante equivalente, continuando assim a injectar liquidez nos bancos, aos quais voltará a comprar títulos soberanos. Além disso pode usar o QE para fazer chantagem sobre os governos que não apliquem políticas de austeridade e reformas neoliberais suficientemente duras. De facto, quando os títulos franceses atingirem o prazo de maturidade, o BCE pode decidir recomprar títulos alemães ou holandeses, em vez de títulos franceses.

Por outro lado, partilho com os autores desse interessantíssimo artigo do Le Monde Diplomatique uma estratégia que visa dividir os credores. Por exemplo, retomando o caso grego, numa primeira fase Tsipras poderia ter-se concentrado sobre o FMI. De facto, os 6 mil milhões que tinham de ser reembolsados antes de 30/06/2015 apenas diziam respeito ao FMI. O governo grego deveria ter feito frente ao FMI.

O governo deveria impor às maiores empresas a aquisição de um dado montante de títulos da dívida francesa, a uma taxa de juro fixada pelas autoridades públicas e não pelos “mercados”

Além disso, quando falamos de pânico nos mercados e de ameaça de degradação da notação da França, se esta decidir financiar-se doutra forma que não nos mercados, pouco importa a notação que as agências lhe atribuam. É preciso lançar uma política alternativa de financiamento, realizando um empréstimo legítimo. O governo deveria impor às maiores empresas a aquisição de títulos da dívida francesa, a uma taxa de juro fixada pelas autoridades públicas e não pelos «mercados». Isto remete-nos para o que se chamava circuito do tesouro, que funcionou entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 1970. Para isso é importante ler a tese, editada em livro, de Bejamin Lemoine, L’ordre de la dette. Esta obra diz tudo sobre o circuito do tesouro, que caiu no esquecimento.

LVSL – Como se explica que quando se fala da história dos factos económicos, nomeadamente na universidade, a questão da dívida nunca venha à baila?

ET – Pois é, existe um vazio de pensamento, porque pura e simplesmente é um tabu. É verdadeiramente impressionante: só os autores ortodoxos escrevem a esse respeito. Por exemplo, há pessoas como Kenneth Rogoff, que foi economista do FMI, e Carmen M. Reinhart, que fornece estudos ao NBER (National Bureau of Economic Research), que co-escreveram um livro intitulado Desta Vez É Diferente: Oito Séculos de Loucura Financeira, no qual evocam profundamente a questão das dívidas soberanas. A literatura sobre a dívida escrita por economistas clássicos ou neoclássicos tem um volume considerável, mas é pouco ensinada nas universidades. No entanto começa a ser ensinada nos cursos de Direito das universidades americanas, nomeadamente por sumidades como Mitu Gulati, professor na Universidade de Duke, ou Odette Lienau, professora associada de Direito na Universidade de Cornell e autora duma tese intitulada «Repensar a Questão das Dívidas Soberanas». É nas universidades europeias que este assunto socioeconómico e jurídico vital está ausente. Mas à medida que a dívida pública vai retomando um papel central, os dinossauros e outros conservadores nas universidades não mais poderão evitar o debate sobre assuntos como a dívida, a suspensão do pagamento e o seu repúdio.

Tradução: Rui Viana Pereira


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

Nicolas Vrignaud