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Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 22)
A Comissão Meltzer sobre as Instituições Financeiras Internacionais no Congresso dos Estados Unidos em 2000
Os debates em Washington no início dos anos 2000
por Eric Toussaint
18 de Outubro de 2020

Em 2020, o Banco Mundial (BM) e o FMI fazem 76 anos. Estas instituições financeiras internacionais (IFI), criadas em 1944 e dominadas pelos EUA e seus aliados, agem sistematicamente contra os interesses dos povos, concedendo empréstimos aos estados com o fim de influir nas suas políticas. O endividamento externo foi e continua a ser utilizado como instrumento de submissão dos devedores.

Desde a sua criação, o FMI e o BM violaram pactos internacionais relativos a direitos humanos e nunca hesitaram, nem hesitam, em apoiar ditaduras.

É urgente fazer uma nova forma e descolonização, para sair do impasse em que as IFI e seus principais accionistas encurralaram o mundo. É preciso construir novas instituições internacionais.

Publicamos aqui uma série de artigos de Éric Toussaint, que descreve a evolução do Banco Mundial e do FMI desde a sua criação. Estes artigos foram extraídos do livro Banco Mundial: o Golpe de Estado Permanente, que pode ser consultado gratuitamente em francês ou em castelhano. Existe também uma edição inglesa.

A sucessão de crises que atingiu os países ditos emergentes nos anos noventa e a intervenção desastrosa do Banco Mundial e do FMI nessa altura geraram uma quantidade enorme de debates, à escala internacional, sobre o futuro e o papel das instituições de Bretton Woods. Vários intelectuais do establishment participaram nesses debates: Allan Meltzer, Paul Krugman, Joseph Stiglitz, Jeffrey Sachs. Paralelamente, o Congresso não mostrava entusiasmo face à possibilidade de aumentar os meios financeiros do FMI destinados a enfrentar crises. Isso levou à formação de uma comissão bipartida [1] ad hoc. Essa comissão, denominada Comissão Consultiva sobre as Instituições Financeiras Internacionais (IFI Advisory Commission), termina o seu relatório (The Meltzer Report) no início de 2000. O relatório analisa sete instituições multilaterais: o FMI, o sistema Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), a OMC e o Banco de Compensações Internacionais (BCI). Neste capítulo retomamos apenas algumas conclusões relativas ao FMI e ao Banco Mundial.

A Comissão era composta por onze especialistas (seis republicanos e cinco democratas), provenientes dos meios parlamentar, universitário e bancário, entre os quais, pelo lado republicano, Allan H. Meltzer (como presidente), Edwin Feulner (presidente do ultra-reacionário Heritage Foundation e antigo presidente da Sociedade de Mont-Pèlerin); pelo lado democrata, Jeffrey Sachs, Fred Bergsten e Jerome Levinson. Grande parte dos trabalhos dessa Comissão, inclusive notas sobre os pontos em desacordo, está disponível na Internet [2].

Todas as reuniões e audições da Comissão são públicas. Os trabalhos da Comissão merecem ser conhecidos, porque possuem avaliações muito interessantes e esclarecedoras sobre os termos do debate em Washington.

Uma resolução lacónica foi aprovada por unanimidade na Comissão, sendo, no entanto, o relatório aprovado com oito votos a favor e três contra. Os três votos contra são democratas (Fred Bergsten, Jerome Levinson e Esteban Edward Torres). Dois democratas (entre eles Jeffrey Sachs) votaram com os republicanos.

A resolução aprovada por unanimidade foi a seguinte:

«1. O FMI, o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento devem anular totalmente todos os seus créditos em relação a países pobres muito endividados (PPME) que apliquem uma estratégia adequada em matéria de desenvolvimento económico e social (em conjunto com o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento). 2. O FMI deve limitar os seus empréstimos à cedência de liquidez de curto prazo. É preciso suprimir a prática actual de conceder empréstimos a longo prazo para reduzir a pobreza ou para outros objectivos.»

O relatório tem mais de cem páginas. No fundo deixa claro que não há razão para eliminar ou fundir as instituições multilaterais. É preciso reformá-las profundamente. Nalgumas das suas passagens o relatório faz um diagnóstico extremamente crítico em relação às políticas levadas a cabo pelo FMI e pelo Banco Mundial e critica duramente a OMC. O relatório propõe que o Banco Mundial acabe totalmente com os empréstimos concedidos a países que já têm acesso aos mercados financeiros e se limite a fazer donativos a países que não têm acesso a esses mercados.

De maneira complementar, o relatório declara que o FMI apenas deve conceder empréstimos de curto prazo. Deve abandonar a missão de combater a pobreza, missão essa que deve ser reservada ao Banco Mundial e aos bancos regionais de desenvolvimento. É preciso que o Banco Mundial mude de nome e passe a chamar-se Agência Mundial de Desenvolvimento (World Development Agency). O relatório denuncia os governos dos países ricos, o FMI e o Banco Mundial, que curto-circuitaram a função de controlo e decisão do poder legislativo. No mesmo sentido, ataca a OMC no que diz respeito aos seus abusos de poder. Afirma que a OMC não tem o direito de impor automaticamente regras e decisões aos seus Estados membros. As decisões da OMC devem ser avaliadas pelo parlamento de cada um dos Estados membros.

Eis aqui alguns excertos marcantes do relatório, que começa por se congratular com o papel dos Estados Unidos no mundo e afirma o seu apoio às políticas neoliberais.

«Essas instituições e o empenho americano na manutenção da paz e da estabilidade obtiveram êxitos consideráveis. Ao longo dos 50 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, observou-se uma enorme melhoria do nível de vida de um número elevadíssimo de pessoas em muitos países, como nunca antes ocorrera.»

«Os nossos antigos adversários fazem agora parte do sistema de mercado global em expansão.»

«Os Estados Unidos estiveram na vanguarda da manutenção da paz e da estabilidade, promovendo a democracia e o respeito pelas leis, reduzindo barreiras comerciais e estabelecendo um sistema financeiro transnacional.»

«A comissão considera que, para estimular o desenvolvimento, os países devem abrir os mercados ao comércio e encorajar a iniciativa privada, o respeito pelas leis, a democracia política e a liberdade individual.»

Até aqui, nada de mais em relação ao que escrevem os membros do establishment, quer sejam republicanos, quer sejam democratas. A seguir o relatório é mais surpreendente. A comissão critica a acção do FMI, dos governos dos países membros do G7 e ataca as políticas de choque impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial.


Crítica à intervenção do FMI na crise da dívida do México em 1982

«Em agosto de 1982, o Governo mexicano anunciou que não podia pagar mais a dívida externa. O FMI organizou e supervisionou a administração de um plano de reescalonamento das dívidas comerciais contraídas pelo Governo mexicano na década anterior. Os empréstimos do FMI não canalizaram novas fontes de financiamento líquido para o México. O FMI emprestou dinheiro ao México para pagar o serviço da dívida. A dívida do México aumentou e o México não entrou em incumprimento por falta de pagamento. O FMI concedeu empréstimos na condição de o México implementar um conjunto de reformas económicas a longo prazo. Muitas dessas condicionantes significaram grandes sacrifícios para a população local, a perda de emprego e uma forte redução do nível de vida. Os outros países em desenvolvimento, em especial na América Latina, viram os fluxos líquidos de capital privado diminuírem ou tornarem-se negativos.» (sublinhado pelo autor)


Crítica dos PAS impostos pelo FMI

«A transformação do FMI numa fonte de empréstimos a longo prazo sob condições de ajustamento tornou as nações pobres cada vez mais dependentes do FMI, proporcionando-lhe uma influência considerável na escolha das políticas dos países membros, o que era inédito numa instituição multilateral. A continuação do financiamento depende do resultado das políticas exigidas, tal como foram definidas nos acordos entre o FMI e os países membros. Esses programas não asseguraram o progresso económico. Minaram a soberania nacional e frequentemente impediram o desenvolvimento de instituições democráticas e responsáveis, susceptíveis de corrigirem os seus próprios erros e de responderem aos desafios das condições externas.»


O relatório crítico da intervenção das IFI na crise do México de 1994

«Na sequência do reembolso ao FMI, ao Tesouro americano e aos credores estrangeiros, foi o contribuinte mexicano que pagou a factura. O custo do resgate do sistema bancário é actualmente estimado em cerca de 20 % do PIB mexicano. O rendimento real por habitante não era, em 1997, apesar dos altos e baixos, superior ao nível de rendimento que havia 20 anos atrás. Os salários reais dos trabalhadores menos bem pagos, aqueles que auferiam o salário mínimo, diminuíram 50 % desde 1985. A dívida externa total do México em 1996, em dólares norte-americanos, é cinco vezes superior à dívida de 1973, ou quatro vezes, tendo em conta uma base de cálculo per capita. Os salários reais são muito mais baixos e o peso do financiamento da dívida é muito mais alto para cada trabalhador mexicano.»

«As críticas também aludem a que, ao impedir ou ao reduzir as perdas dos emprestadores internacionais, o programa do FMI para o México, em 1995, enviou uma má mensagem aos credores e emprestadores. Poupando perdas aos credores internacionais, o FMI implicitamente fez saber ao mercado que se os bancos locais e outras instituições similares contraíssem empréstimos de valores significativos junto de credores estrangeiros e se os governos garantissem essas dívidas em relação aos credores privados, o FMI emprestaria o montante necessário para honrar esses reembolsos. Os economistas dão o nome de “risco moral” ao incentivo inerente a tais garantias.»

«O corte nas despesas públicas, o aumento de impostos, das taxas de juro e o fecho de bancos agravaram a crise.»


O FMI ao serviço do G7, também criticado pela Comissão

«Os governos do G7, particularmente os Estados Unidos, usam o FMI como meio para atingirem seus objectivos políticos. Essa prática subverte o processo democrático dos países credores, ao evitar a fiscalização parlamentar sobre a ajuda externa ou sobre a política externa e ao enfraquecer a disciplina orçamental.»


O FMI ao serviço dos abastados

«Numerosos estudos sobre os efeitos dos empréstimos do FMI não conseguiram estabelecer uma relação significativa entre os empréstimos do FMI e o aumento da riqueza ou do rendimento. O resgate dos credores com o apoio do FMI durante as crises recentes foi especialmente danoso e teve efeitos terríveis sobre os países em desenvolvimento. Pessoas que tinham trabalhado intensamente para saírem da pobreza viram os seus esforços malogrados, perderam as suas poupanças e viram falir as suas pequenas empresas. Os trabalhadores perderam o emprego, muitas vezes sem qualquer tipo de indemnização que amortecesse o problema. Proprietários nacionais e estrangeiros de activos reais sofreram perdas consideráveis, ao mesmo tempo que os bancos credores estrangeiros estavam bem protegidos. Esses bancos receberam compensações por assumirem altos riscos através de taxas de juro elevadas e, além disso, não tiveram que assumir todas as perdas decorrentes dos empréstimos de alto risco (por vezes nenhum risco). O apoio de que beneficiaram os bancos estrangeiros serviu também para proteger devedores nacionais politicamente influentes, encorajou o empréstimo de grandes somas e taxas extraordinárias de endividamento em relação ao capital.»


A comissão não aprova as políticas do FMI na América Latina

«A Comissão não aprovou as políticas do FMI na América Latina nos anos oitenta e no México em 1995 ou em muitos outros casos. Os empréstimos do FMI para esses países protegeram bancos americanos e estrangeiros, instituições financeiras e alguns investidores e tiveram enormes custos para os cidadãos dos países devedores. Os empréstimos atrasaram a resolução das crises dos anos oitenta ao permitirem que os credores e emprestadores reescalonassem uma dívida que será mais que paga. […] a Comissão acredita que os emprestadores que assumiram os riscos dos empréstimos ou da compra de títulos da dívida deveriam aceitar as perdas reais quando os riscos se tornam uma realidade desagradável.»


A comissão critica o Banco Mundial e os Bancos regionais associados

«Há um grande fosso entre a retórica e as promessas dos Bancos e o seu desempenho e realizações. O caso do Banco Mundial é um bom exemplo. Pretendendo combater a pobreza no mundo em desenvolvimento, o Banco afirma redireccionar os seus empréstimos para países que não têm acesso ao mercado de capitais. Mas não é esse o caso: 70 % da ajuda financeira do Banco Mundial destina-se a países que possuem acesso ao mercado de capitais.»

«O montante total do fluxo de recursos destinado às actividades de serviço público nos países sem acesso ao mercado de capitais, mas com políticas e instituições estáveis, foi de 2,5 mil milhões de dólares em 7 anos, entre 1993 e 1999. Isso representa menos de 2 % do financiamento do Banco Mundial, excluída a ajuda financeira.»


O futuro da instituições do grupo Banco Mundial segundo a Comissão Meltzer

«O papel de emprestador do Banco Mundial será substancialmente reduzido». A Comissão acrescenta que o Banco deverá, sobretudo, fazer donativos. Além disso, para a Comissão, as outras instituições do grupo Banco Mundial não têm na realidade razão de ser:

«A Sociedade Financeira Internacional (SFI) deverá tornar-se parte integrante da Agência de Desenvolvimento Mundial redefinida. O seu capital deverá regressar aos accionistas e os empréstimos em curso serão resgatados.»

«A Agência Multilateral de Garantias dos Investimentos (AMGI) deve ser eliminada. Vários países têm as suas próprias seguradoras. Além disso, as seguradoras do sector privado entraram no mercado.»


A redefinição das missões do FMI segundo a Comissão Meltzer

«A missão do novo FMI. A Comissão recomenda que o FMI seja reestruturado, tornando-se uma instituição menor, com apenas três responsabilidades:

  • Agir como um quase emprestador de última instância, dando assistência às economias emergentes através de empréstimos de curto prazo, concedidos aos países que tenham necessidade;
  • Recolher e publicar dados financeiros e económicos dos países membros e distribuir esses dados de maneira uniforme e num período de tempo razoável;
  • Aconselhar (mas sem impor condições) sobre a política económica, como consta do artigo IV sobre consultas a países membros.
    O Crédito para Redução da Pobreza e Crescimento do FMI deve ser suprimido.

O FMI não deve ser autorizado a negociar reformas políticas.

Os empréstimos do FMI devem ser de curto prazo (por exemplo, no máximo de 120 dias, havendo apenas uma possibilidade de renovação).»


A posição minoritária dos três democratas da Comissão

Os três democratas que votaram contra o relatório (Fred Bergsten, Jerome Levinson e Esteban Edward Torres) consideraram que este era muito negativo para as IFI e a OMC: pretendia limitar muito o campo de acção dessas instituições. Jerome Levinson chega a redigir um texto de cerca de vinte páginas defendendo o Banco Mundial, o FMI e a administração Clinton. Levinson propõe uma orientação alternativa à da maioria da Comissão, dando ênfase ao compromisso democrata com a direcção da confederação sindical AFL-CIO.

Além disso, Levinson critica o Banco Mundial e o FMI por não favorecerem o respeito pelos direitos dos trabalhadores. Pelo contrário, sempre que tiveram oportunidade, essas duas instituições impuseram que os trabalhadores, e apenas eles, suportassem o custo da resolução das crises financeiras. Jerome Levinson está ciente disso, porque estava no Brasil aquando do golpe militar apoiado pelo Governo dos Estados Unidos, pelo Banco e pelo FMI. [3] Levinson resume correctamente a utilização das crises provocadas pelo comportamento dos detentores de capital e pelos governos que sistematicamente atacaram os trabalhadores. Eis um excerto do seu argumento conforme exposto no relatório da Comissão Meltzer:

«Os empréstimos bancários dos anos setenta, os tesobonos [títulos do Estado emitidos pelo México (N. do A.)] e os fiascos financeiros do Sudeste Asiático apresentam características comuns: em cada caso os bancos e os investidores, atafulhados em liquidez, procuraram obter um rendimento mais elevado do que teriam conseguido nos seus países, investindo (tesobono) ou emprestando […] a governos, bancos e empresas dos países em desenvolvimento. Muitos empréstimos não foram utilizados para financiar investimentos produtivos; uma conjugação de choques internos e externos conduziu a uma crise que foi considerada perigosa para o sistema financeiro internacional.

O FMI e o Banco Mundial foram encarregues de acompanhar a evolução dos acontecimentos; as instituições financeiras privadas, que também são responsáveis pela crise, devido aos seus investimentos ou empréstimos imprudentes, foram socorridas e recompensadas: tiveram a possibilidade de comprar bancos locais e outras instituições financeiras a preços baixos. Os países devedores foram aconselhados a exportarem mais para saírem da crise, o que se traduz numa inundação de bens e serviços no mercado americano, o único mercado que efectivamente lhes abre as portas. Para tornarem as suas mercadorias mais competitivas, o FMI e o Banco Mundial exigem que os governos dos países devedores adoptem medidas de flexibilização do mercado de trabalho, o que permite às empresas desembaraçarem-se mais facilmente dos trabalhadores, sem terem de pagar indemnizações, e enfraquece a capacidade de negociação dos sindicatos, tudo para fazer baixar as despesas com salários. Tanto os trabalhadores dos países industrializados como os trabalhadores dos PED, particularmente os sindicalizados, pagam um custo desproporcionado pelo fardo do ajustamento.»

Jerome Levinson cita também Joseph Stiglitz (antigo economista chefe do Banco Mundial) ao argumentar no mesmo sentido:

«Mesmo quando o mercado de trabalho não é o principal problema que o país enfrenta, é muito frequente que se peça aos trabalhadores que suportem os custos do ajustamento. No Leste Asiático, foram os empréstimos imprudentes dos bancos internacionais e de outras instituições, em conjugação com os empréstimos duvidosos de instituições locais – em conjugação com as expectativas versáteis dos investidores – que provocaram a crise; no entanto, foram os trabalhadores que pagaram a factura em termos de emprego, em termos de desemprego e de perdas salariais.»

Jerome Levinson ataca a dupla linguagem do Banco Mundial. Quando pede a essa douta instituição para proteger os direitos dos trabalhadores, essa instituição responde que a secção 10 do artigo IV do seu estatuto lhe proíbe considerações políticas. Contudo, Jerome Levinson afirma que quando o Banco fixa condições, impõe uma maior flexibilização do mercado de trabalho, facilitando os despedimentos, enfraquecendo o poder de negociação dos sindicatos e diminuindo o rendimento dos trabalhadores urbanos. Não nos enganemos, Jerome Levinson não se opõe à liberalização da economia pró-mercado, nem às privatizações. Afirma que essas políticas são necessárias, porém necessitam uma contrapartida sindical para serem eficazes. A alternativa de Jerome Levinson está próxima da orientação adoptada por Tony Blair na Grã-Bretanha ou Gerhard Schroeder na Alemanha.


Análise retrospectiva dos trabalhos da Comissão

Num trabalho de 1998, Anne Krueger, ex-economista chefe do Banco Mundial, de 1981 a 1987, salienta as diferenças entre os anos setenta e os finais da década de noventa. Esse texto é útil para compreender certos termos do debate. Krueger indica que, no início dos anos setenta, os Estados Unidos decidiram dar uma maior importância ao Banco Mundial e ao FMI, reduzindo a ajuda bilateral e aumentando a ajuda multilateral. [4] Desde então, segundo Anne Krueger, a liberalização no plano mundial reduziu muito a margem de manobra dessas instituições, porque o fluxo de capitais privados predomina. Além disso, a guerra fria terminara. Krueger frisa:

«Até ao fim da Guerra Fria, o apoio político à realização da ajuda ao desenvolvimento via IFI (BM e FMI) e agências bilaterais provinha de dois grupos: os de direita, motivados por problemas de segurança, e os de esquerda, que apoiavam objectivos de desenvolvimento numa base humanitária. Com o fim da Guerra Fria, o apoio que vinha da direita enfraqueceu e os esforços do Banco para estender as suas actividades a novas áreas reflectem a busca de um apoio político mais alargado.» [5]

Segundo Krueger, o Banco Mundial tem tendência a fazer de mais:

«Muitas das acusações relativas à ineficácia do Banco têm origem nos esforços para estender as suas actividades em todas as direcções e a todos os países. Pode-se, de facto, considerar que ao envolver-se em questões ambientais, ao cooperar com as ONG, ao combater a corrupção e ao abraçar outros temas, o Banco tenha ido para além das suas competências essenciais. Ao fazê-lo, excedeu as capacidades da sua direcção.»

Quanto ao futuro do Banco, Anne Krueger considera que é preciso fazer uma escolha entre três opções:

«1) prosseguir o seu papel de instituição encarregue do desenvolvimento, limitando-se aos países realmente pobres e retirando-se gradualmente dos países com rendimento médio; 2) prosseguir as suas actividades nos países clientes, concentrando-se nas softs issues do desenvolvimento, tais como os direitos das mulheres, a preservação do meio ambiente, os incentivo às ONG; 3) fechar a loja.» [6]

Anne Krueger não é favorável à terceira opção e deixa a discussão aberta em relação às duas primeiras. No entanto, frisa que mais cedo ou mais tarde será necessário optar. No que diz respeito ao funcionamento do Banco, ela é clara: está fora de questão a alteração do seu estatuto para instituir o sistema «um país, um voto» (one-country one-vote). Segundo Anne Krueger, não é de excluir uma fusão entre o Banco Mundial e o FMI; no entanto, isso desencadearia um processo perigoso, porque ter-se-ia de voltar a discutir uma nova constituição e, inclusive, o princípio «one-country one-vote» – o que deve ser evitado [7], a fim de manter o controlo da actividade nas mãos das grandes potências.


O contexto da Comissão Meltzer

Para compreender as propostas da comissão Meltzer, convém ter presente o contexto internacional da época: a sucessão de crises financeiras nos países da periferia e a posterior intervenção catastrófica do FMI e do Banco Mundial. Mas isso não é suficiente. O contexto nacional nos Estados Unidos é determinante: o Congresso de maioria republicana levou a cabo uma guerrilha feroz contra a administração democrata de William Clinton. Sem se ter em conta esse factor de ordem política interna, não se poderia compreender os duros ataques feitos pela Comissão ao Executivo que instrumentalizou o FMI no sentido de intervir no mundo sem a permissão do Congresso [8]. Além disso, certas preocupações sociais da Comissão estão certamente relacionadas com a necessidade de dividir as personalidades designadas pelos democratas para a Comissão, a fim de conquistar alguns desses elementos para o lado de Allan Meltzer e dos seus colegas. Tratava-se também de criticar a administração Clinton com argumentos sensíveis ao seu próprio eleitorado e aos parlamentares democratas.


A posição da Comissão Meltzer e a política de Washington

Não falta consenso entre a Comissão e o poder em Washington. Além disso, desde o início da sua presidência, em 2001, G. W. Bush implementou uma política que em determinados aspectos converge com as recomendações da Comissão Meltzer.

1° A existência de um acordo fundamental em relação à continuidade da agenda neoliberal: «A Comissão acha que, para estimular o desenvolvimento, os países deverão abrir os mercados comerciais, estimular a propriedade privada, o respeito pela lei, a democracia política e a liberdade individual». É, em suma, o essencial.

2° A necessidade de manter as instituições financeiras internacionais: «Essas instituições e o empenhamento americano para a manutenção da paz e da estabilidade tiveram resultados notáveis».

3° A existência de um acordo para manter e reforçar a liderança dos Estados Unidos nessas instituições.

4° A existência de um acordo para anular totalmente (ou quase) a dívida dos PPME e de outros países endividados, no caso de aplicarem políticas de acordo com a agenda neoliberal e os interesses dos Estados Unidos. A razão é muito simples: para os Estados Unidos, para que servem esses países se, por causa do endividamento excessivo, são incapazes de comprar mercadorias e serviços norte-americanos? É melhor anular ou aliviar substancialmente as suas dívidas para que voltem a ser capazes de comprar.

5° É, de facto, rentável para os Estados Unidos conceder e incentivar o Banco Mundial a conceder donativos, porque é certo que os países pobres que receberem esses donativos vão utilizá-los para comprarem produtos principalmente nos países mais industrializados. O que é dado aos países pobres é gasto imediatamente no Norte, porque eles já não produzem aquilo de que necessitam. É o resultado de 25 anos de política de liberalização do comércio e de concorrência, no que se refere aos produtores locais dos países pobres.

6° É preciso lutar contra a corrupção nesses países, a fim de evitar que uma parte dos donativos seja desviada para outras actividades que não sejam a compra de produtos do Norte.

7° Uma política de donativos também tem a vantagem de manter as elites e as economias dos países beneficiários dependentes dos países doadores.

8° Os donativos necessários aos países mais pobres representam um esforço claramente irrisório para países como os Estados Unidos. É muito pouco, comparado com os 400 mil milhões de dólares que custou a «guerra contra o terrorismo» no Afeganistão e no Iraque, de setembro de 2001 a abril de 2006.


Como a Comissão Meltzer encara a política de donativos

A Comissão Meltzer propõe que se recorra amplamente a donativos para substituir os empréstimos. O exemplo da Comissão mostra claramente que, para o doador, trata-se da possibilidade de se imiscuir directamente nas escolhas dos PED, passando por cima da acção dos poderes públicos nacionais.

«Exemplo: Um país que tem um rendimento por habitante de 1000 dólares e que pode obter um donativo que cubra 70 % do custo da realização de um projecto, decide, por exemplo, vacinar todas as crianças contra a rubéola. Se a agência de desenvolvimento (a instituição multilateral que, segundo Meltzer, deve substituir o Banco Mundial) confirma a necessidade da iniciativa, o Governo abrirá um concurso junto dos fornecedores privados e organizações não governamentais, tais como instituições de caridade e entidades do sector público, como o Ministério da saúde. Suponhamos que a oferta mais interessante é de 5 dólares por criança vacinada, então a agência de desenvolvimento pagará directamente ao fornecedor 3,5 dólares (70 %) por vacina. O fornecedor deverá receber do Governo os restantes 1,5 dólares. Os pagamentos serão efectuados apenas após uma certificação feita por agentes independentes em relação aos participantes – Governo, agência de desenvolvimento e fornecedor de vacinas. No sistema em que o pagamento é feito pelos utilizadores, os donativos são concedidos após realizada uma auditoria ao serviço prestado. Se não há resultados, não há fundos. Os pagamentos são feitos em função do total de crianças vacinadas, dos quilowatts de electricidade fornecidos, dos metros cúbicos de água tratada, do número de estudantes aprovados em testes de alfabetização, dos quilómetros de estradas abertas ao trânsito […] A execução não apresenta riscos políticos. É o prestador do serviço e não o Governo que recebe o pagamento.»

Mais à frente no texto:

«Das vacinas à construção de estradas, da alfabetização ao fornecimento de água, os serviços serão prestados por fornecedores do sector privado (inclusive ONG e organizações de caridade) ou por entidades do sector público, tendo em conta a oferta mais interessante apresentada a concurso. A quantidade e a qualidade dos desempenhos serão certificadas por auditores independentes e os pagamentos serão feitos directamente aos fornecedores; os custos serão divididos pelo país receptor e pela agência de desenvolvimento. A subvenção variará entre 10 % e 90 %, em função do acesso ao mercado de capitais e do rendimento por habitante.»

Mesmo que os argumentos do relatório Meltzer sejam úteis no que diz respeito ao balanço das acções levadas a cabo pelo FMI e pelo Banco Mundial, as soluções que implementam são nefastas e criticáveis. Devemos rejeitar a abordagem da Comissão Meltzer, que pretende fazer dos donativos um novo meio de reforçar a mercantilização de serviços essenciais como a saúde, a distribuição de água e o seu tratamento/eliminação, a educação … Da mesma forma, temos de rejeitar que os donativos sejam utilizados para impor aos beneficiários as vontades dos doadores.

É necessário um procedimento alternativo: é preciso quebrar o ciclo infernal do endividamento sem cair numa política de caridade, que vise perpetuar um sistema mundial dominado inteiramente pelo capital, pelas grandes potências e pelas multinacionais. Trata-se de colocar em marcha um sistema internacional de redistribuição dos rendimentos e das riquezas, a fim de interromper a pilhagem secular, que subjuga e continua a subjugar os povos dominados da periferia. Essas reparações sob a forma de donativos não concedem às autoridades dos países mais industrializados o direito de ingerência nos assuntos das populações afectadas. Trata-se de inventar mecanismos de decisão sobre o destino dos fundos e de controlo da utilização desses fundos que fiquem nas mãos das populações e das autoridade públicas em questão. Isso abre um vasto campo de reflexão e de experimentação.

Além disso, em oposição à Comissão Meltzer, que quer manter o Banco Mundial e o FMI, fazendo apenas pequenas alterações, é preciso abolir essas instituições e substituí-las por outras instituições mundiais caracterizadas por um funcionamento democrático. O novo Banco Mundial e o novo Fundo Monetário Internacional, qualquer que seja a nova denominação, devem ter missões radicalmente diferentes das anteriores: devem garantir o cumprimento dos tratados internacionais em termos de direitos humanos (políticos, civis, sociais, económicos e culturais) e em termos de crédito internacional e de relações monetárias internacionais. Essas novas instituições mundiais devem fazer parte de um sistema institucional mundial supervisionado por uma Organização das Nações Unidas radicalmente reformada. É essencial e prioritário que os países em desenvolvimento se associem para constituírem o mais depressa possível entidades regionais, dotadas de um banco comum e de um fundo monetário comum. Aquando da crise do Sudeste Asiático e da Coreia de 1997-1998, a constituição de um fundo monetário asiático tinha sido aventada pelos países envolvidos. A discussão foi abortada devido à pressão dos Estados Unidos e do FMI. Na região da América Latina e Caraíbas, sob o impulso das autoridades venezuelanas, o debate sobre a possibilidade de construir um Banco do Sul começou em 2005-2006. É claro que, procurando a emancipação dos povos e a plena satisfação dos direitos humanos, as novas instituições financeiras e monetárias, tanto regionais como mundiais, devem estar ao serviço de um projecto de sociedade que rompa com o neoliberalismo e o capitalismo.


Notas :

[1Bipartida significa que reúne republicanos e democratas.

[2The Meltzer Commission: The Future Of The Imf And World Bank, https://www.govinfo.gov/content/pkg/CHRG-106shrg66721/html/CHRG-106shrg66721.htm .

The Report of the International Financial Institution Advisory Commission: Comments on the Critics, https://www.ifo.de/DocDL/Forum400-focus2.pdf

[3Jerome Levinson foi assistant director of USAID no Brasil de 1964 a 1966.

[4Krueger, Anne. 1998. «Whither the Bank and the IMF?», Journal of Economic Literature, vol. XXXVI, dezembro de 1998, p. 1987 e 1999.

[5Idem, p. 2010.

[6Ibid., p. 2006.

[7Ibid., p. 2015.

[8De 2001 até aos dias de hoje, com uma administração republicana apoiada por uma maioria da mesma cor política no Congresso e no Senado, não se constata o mesmo tipo de ataque por parte de uma comissão do Congresso ao Executivo. Veremos se mudará.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.