A partir de 2007 o céu capitalista fica escuro. Começa então a maior crise capitalista desde os anos 1930. Verifica-se uma interconexão de diferentes crises: nos países mais industrializados, a crise bancária e financeira, a crise imobiliária, a crise económica; nos países do sul, em particular em África e certos países da Ásia, a crise alimentar (a América Latina é menos afectada) causada principalmente por dois factores gerados pela política praticada pelos governos dos países mais industrializados: 1. a transferência da especulação imobiliária (no seguimento do estouro da bolha imobiliária) para o mercado a prazo dos cereais; 2. o apoio à produção de agrocombustíveis. Em 2008, a crise alimentar provoca motins da fome em mais de 15 países; o número de famintos passa de 850 milhões para mais de mil milhões [1]. A saúde económica da China, a fábrica do mundo, acaba por provocar no antigo Império do Meio greves operárias que levam ao aumento dos salários (a partir de um nível salarial muito baixo). A crise de governação é evidente à escala planetária. Apenas três exemplos:
1. o processo de acentuação da desregulamentação das trocas definidas em Doha em novembro de 2001, com a OMC na chefia.
2. entre 2002 e 2008, o FMI atravessa uma crise radical: sucedem-se dois directores-gerais; nenhum deles cumpre o mandato até ao fim; os países emergentes reembolsam as suas dívidas ao FMI de forma antecipada, para se liberar da sua tutela directa e seguir políticas parcialmente heterodoxas.
3. o G7 (EUA, Alemanha, Reino-Unido, Japão, França, Itália, Canadá), de onde partiu a crise financeira e económica, não pode continuar a defender e impor soluções quando as economias emergentes gozam de boa saúde económica, abundam em reservas de divisas e desendividam-se (em termos de dívida externa). As capitais dos países mais industrializados convocam o G20 em 2009 e pedem aos países emergentes que os ajudem a sair do atoleiro em que se meteram. Multiplicam-se as declarações de intenção: o sistema capitalista será reformado, até mesmo alterando os seus alicerces, a finança internacional também, puxando as orelhas dos paraísos fiscais, serão impostos limites às extravagâncias dos banqueiros e dos seus operadores financeiros, a especulação sobre os produtos alimentares será contida, as grandes instituições como o FMI e o Banco Mundial serão reformadas com vista a deixar espaço aos países emergentes, soluções às mudanças climáticas serão buscadas… Feitas as contas, nenhuma destas promessas foi levada à prática. O FMI, por sua vez, regressa à ribalta. Já não controla os países emergentes e está à beira da asfixia financeira (ao ponto de despedir pessoal), por isso, volta à carga com ospaíses do Norte: em 2008-2009 o FMI dita medidas neoliberais à Islândia, bem como a vários países da Europa Central e do Leste (antigos membros do bloco soviético tornados membros da União Europeia ou candidatos a tais) [2]. Em 2010 é a vez da Grécia e Irlanda. Em 2011, Portugal entra na dança. O G20 decide encher os cofres do FMI, apesar de o processo ser difícil de aplicar, principalmente porque as grandes potências resistem a reconhecer o lugar que cabe aos países emergentes, apesar de lhes baterem à porta a pedinchar dinheiro [3]. Por ocasião duma cimeira europeia em dezembro de 2011, a União Europeia, sem o Reino Unido, decide contribuir com 150 000 milhões de euros para o FMI.
Em 2008-2009, a crise dos países mais industrializados afecta a boa saúde económica da China; as autoridades públicas reagem por meio de um vasto plano de relançamento financeiro orientado pelo Estado (coisa que o FMI sempre recusou aos países do Sul confrontados com a crise).
Em 2007-2008 as classes dominantes e os governos no poder nos países mais industrializados apanharam um grande susto: a miragem capitalista estava à beira de sumir, o capitalismo viu as suas próprias contradições serem desvendadas, começando a aparecer claramente como a origem da crise. Para evitar mobilizações de massas que poderiam tomar um rumo radical, ou seja, anticapitalista, em finais de 2008 e em 2009, Washington (onde Barack Obama chegou ao poder em janeiro de 2009), a Comissão Europeia e as capitais do Velho Continente montam uns quantos amortecedores sociais (salvo nos países da periferia europeia como as repúblicas bálticas, a Hungria, a Ucrânia…). O arranque da estratégia do choque começa verdadeiramente a partir de 2010. Em 2010, aprofunda-se. Os ataques contra as reminiscências das lutas dos trabalhadores desde a II Guerra Mundial são brutais, em especial nos países periféricos, dentro ou fora da União Europeia.
Entretanto, em 2008-2009, o epicentro da crise dos países mais industrializados deslocou-se dos EUA para a União Europeia por três razões: 1. a estrutura da UE acentua a crise devido à redução drástica dos mecanismos de ajuda e a transferência aos países mais frágeis; 2. os bancos privados europeus ameaçam ruir e provocar um novo cataclismo financeiro do tipo daquele gerado pela falência do Lehman Brothers. Os bancos resgatados pelos Estados continuam a tomar riscos enormes, utilizando os fundos disponibilizados de forma quase gratuita pelo Fed, o BCE, o Banco de Inglaterra, o Banco da Suíça; 3. em vez de adoptar uma política de relançamento económico e impor regras rigorosas aos bancos, a Comissão Europeia e os governos impõem uma cura de austeridade que diminui a procura e enfraquece a actividade económica. Consequentemente, a dívida pública, que é muito inferior à dívida das empresas privadas, rebenta. Em diversos países europeus (Espanha, Irlanda, Reino Unido, Hungria,…), o rebentamento da bolha imobiliária produz uma situação dramática para centenas de milhares de famílias fortemente endividadas, que são forçadas a abandonar os seus lares. Foram suprimidos centenas de milhares de empregos no sector da construção civil. Em 2010-2011 a crise de governação europeia atinge dimensões consideráveis. Sucedem-se as cimeiras sobre a crise, a procura de planos de resgate quese mostram insuficientes na totalidade. Os bancos estão novamente à beira do abismo e só não se despenham graças ao apoio dado pelos Estados.
Traduccão: Rui Viana Pereira; Revisão: Noémie Josse Dos Santos
[1] Voir Jean Ziegler, Destruction massive : géopolitique de la faim, Le Seuil, Paris, 2011 et Damien Millet et Eric Toussaint, La Crise, quelles crises ? Aden-CADTM-Cetim, Bruxelles-Liège-Genève, 2010, chapitre 6. http://www.cadtm.org/La-crise-quelles-crises
[2] Voir Damien Millet et Eric Toussaint (sous la direction de ), La dette ou la vie, Aden-CADTM, 2011 http://www.cadtm.org/La-Dette-ou-la-Vie
[3] Lors du G20 tenu à Cannes en novembre 2011, les BRIC (Brésil, Russie, Inde, Chine) n’ont pas été d’accord pour apporter des fonds tant qu’on ne leur faisait pas nettement plus de place dans les instances internationales.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.