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A transformação do modelo de desenvolvimento da China e o impacto na América latina (parte II)
por Daniel Munevar
17 de Março de 2013

A transformação do modelo de desenvolvimento da China analisada no artigo anterior tem profundas implicações para a América Latina. Essas implicações repartem-se em 3 grupos: o impacto sobre os preços das matérias-primas e, por definição, sobre os termos de troca da América Latina; o impacto sobre os rendimentos reais da população; o impacto sobre as receitas fiscais e a estratégia de desenvolvimento dos países nessa região. Esses elementos são analisados nesta segunda parte do artigo.

Quanto ao primeiro aspecto, o abrandamento da economia chinesa no âmbito de um processo de reequilíbrio eliminaria o último suporte na economia real da especulação de matérias-primas. Os últimos meses foram caracterizados por uma crescente desconexão entre a evolução da procura e da oferta real nos principais mercados de matérias-primas e as curvas dos preços futuros das ditas [1]. Enquanto um número crescente de indicadores da produção e da procura de metais e petróleo apontam para um excesso de oferta e uma incapacidade de lidar com enormes estoques acumulados, os preços futuros indicam uma escassez a curto e médio prazo [2]. Neste contexto, para os mercados de futuros e de derivados de matérias-primas, o abrandamento do crescimento da China seria o equivalente do que aconteceu no verão de 2007 quando surgiram os primeiros problemas provocados pelos empréstimos hipotecários de alto risco (subprimes).
No entanto, mesmo se os preços das matérias-primas não caíram de forma precipitada, o processo de reequilíbrio da China exige uma mudança dos seus termos de troca. A consequência elementar do processo de industrialização da China é o alargamento da fronteira da produtividade e a retenção do valor agregado. Enquanto a América Latina permanece sujeita à limitação dos aumentos da produtividade, inerente às matérias-primas, a China já é capaz de navegar para linhas mais dinâmicas e intensivas, na tecnologia do comércio mundial. É esta diferença fundamental em termos de crescimento da produtividade que marcará a evolução dos termos de troca entre a China e a América Latina, de forma desfavorável para a última. Por outras palavras, as melhorias em termos de rendimentos reais e de crescimento do consumo das famílias na China terão lugar em detrimento dos setores de exportação de matérias-primas daquela região.

Neste sentido, é importante esclarecer que, enquanto os volumes de certas matérias-primas tais como o petróleo e os metais serão afetados, outros vão continuar a crescer continuamente a par do consumo das famílias chinesas, os produtos alimentares, essencialmente. No entanto, o crescimento da procura terá lugar num contexto marcado por preços significativamente mais baixos. Ou seja, a região será uma vez mais presa no dilema da tese Prebisch-Singer de redução secular dos termos de troca. Maiores volumes de exportação resultam em rendimentos reais menores para os produtores na medida em que o diferencial da produtividade permite aos países industrializados, neste caso à China, reter todos os lucros de valor agregado. Desta forma, ao passo que a China aproveitou as últimas décadas para se posicionar na economia mundial, a América Latina desperdiçou essas décadas por cometer o mesmo erro em termos de políticas de desenvolvimento que na época da independência ao apostar nas matérias-primas como motor principal do crescimento económico.

Esta deterioração dos termos de troca traz um impacto sobre os rendimentos reais da população latino-americana. Em consequência do crescimento económico rápido da região, cerca de 70 milhões de pessoas saíram da pobreza entre 2003 e 2010 [3]. Paralelamente assistimos na maioria dos países a uma ligeira redução dos altos níveis de desigualdade de rendimentos [4]. O problema desta situação é que ela resulta diretamente da especialização nas matérias-primas e da melhoria nos termos de troca que se verificou nos primeiros anos. Por outras palavras, as melhorias observadas na América Latina representaram a imagem inversa do que se passava na China.

Enquanto este país adotava uma taxa de câmbio que travava o consumo interno, a valorização significativa da taxa de câmbio que ocorreu em certos países da América Latina, como o Brasil, a Colômbia, Chile, teve o efeito oposto. A valorização de uma moeda, ao reduzir o custo das importações, impulsiona o consumo e representa de facto uma transferência de rendimentos dos sectores exportadores líquidos duma economia para os sectores importadores líquidos. Esta situação é favorável às economias que veem o seu poder de compra aumentar em consequência da sua capacidade de aquisição de bens importados.

No entanto a economia no seu conjunto sofre um desastre, pois afeta diretamente os sectores dotados de maior capacidade de crescimento e portanto os mais dinâmicos em termos de criação de emprego.
A amplitude do impactos dos termos de troca sobre o rendimento real e o modelo de consumo foi amplificado pela dinâmica do sistema financeiro nos diferentes países, contrariamente ao que aconteceu na China, onde o crédito é principalmente hipotecário e de consumo. Com taxas de crescimento superiores a 20% na maioria dos países latino-americanos, o crédito concentrou-se nos sectores que aumentam por um lado a dependência face às importações e por outro a instabilidade financeira, favorecendo a formação de bolhas especulativas no preço dos ativos, particularmente no campo imobiliário. O problema do crescimento do crédito é que, tal como as políticas de desenvolvimento regional, ele se baseia sobre dois pressupostos. Primeiro, que o crescimento económico baseado na exportação de matérias-primas se manterá, dando assim lugar a rendimentos que permitem o desenvolvimento do crédito. Segundo, que o mesmo se passará com os capitais ligados aos investimentos diretos estrangeiros em matérias-primas e com perspectivas de valorização. No entanto, como explicamos anteriormente, ambos os pressupostos estão incorretos. A deterioração dos termos de troca na região terá por consequência uma diminuição do poder de compra das famílias, assim como um bloqueio da dinâmica de criação de emprego e de acesso ao crédito. Isto não se traduz necessariamente numa crise económica, mas acarreta uma diminuição significativa da qualidade de vida da população da região.
Isto traz-nos ao último ponto, o impacto sobre as políticas de desenvolvimento regionais. Independentemente da sua orientação política, os países latino-americanos tiveram um aumento das suas receitas orçamentais em linha com a exportação de matérias-primas. Enquanto em 2000 as receitas orçamentais ligadas às exportações representavam menos de 20% do total de receitas dos governos da região, em 2008 ascenderam a 35% [5]. Este aumento significativo das receitas dos orçamentos de estado permitiu uma melhoria dos indicadores orçamentais e daí uma diminuição dos níveis de endividamento, ao mesmo tempo que permitiu um aumento das despesas sociais na região. As despesas sociais entre 2000 e 2010 passaram de 13,3% a 18,1%, ou seja um aumento de 36% [6]. O problema é evidente. O crescimento económico não só aumentou a dependência face às matérias-primas, mas também é preciso ter em conta que a adoção de políticas públicas na região depende fortemente da evolução dos preços das matérias-primas e das receitas a elas associadas. O reequilíbrio da China, com o seu impacto sobre os termos de troca e sobre o crescimento económico regional, vai limitar a capacidade de os países da América Latina fazerem face ao novo cenário em perspectiva. Enquanto os governos adotam políticas contracíclicas e de desenvolvimento da segurança social para fazerem face à queda do crescimento e do emprego, uma das suas principais fontes de financiamento sofrerá uma importante redução. É caso para perguntar se as despesas sociais poderão manter-se ao nível referido sem lançar mão de medidas fiscais significativas.
Perante as sombrias perspectivas evocadas, o facto mais preocupante é a falta de previsão da maioria dos governos da região, que adotam uma postura de passividade. E no entanto seria necessário tomar medidas para enfrentar os desafios impostos pela transformação do modelo de desenvolvimento da China, antes que os efeitos mencionados comecem a produzir efeitos na região. Medidas como a aceleração da integração regional, o abandono do modelo de economia extrativa e as auditorias à dívida deveriam ser implementadas.


Tradução: Noémie Josse Dos Santos e Rui Viana Pereira

Notas :

[1Ver, «A physical vs forward commodity market disconnect»,http://ftalphaville.ft.com/2013/02/... ?

[2Em relação à oferta na produção de metais, ver «Hey, spendy miners, operate Glencore style», http://ftalphaville.ft.com/2013/02/... Quanto à oferta na produção de petróleo, ver «Scarcity amid plenty, Oil edition», http://ftalphaville.ft.com/2012/06/...

[3Ver, BBVA Research (2013), «Emerging middle classes in fast track mode», http://www.bbvaresearch.com/KETD/fb...

[4Ver, Palma G. (2011), «Homogeneous middles vs. heterogeneous tails, and the end of the ‘Inverted-U’ : the share of the rich is what it’s all about», http://www.econ.cam.ac.uk/dae/repec...

[5Ver World Bank (2010) «Natural Resources in Latin America and the Caribbean: Beyond Booms and Busts?», http://siteresources.worldbank.org/...

[6Base de dados da CEPAL na rede digital.

Daniel Munevar

est un économiste post-keynésien originaire de Bogotá, en Colombie. De mars à juillet 2015, il a travaillé comme assistant de l’ancien ministre des finances grec, Yanis Varoufakis ; il le conseillait en matière de politique budgétaire et de soutenabilité de la dette.
Auparavant, il était conseiller au Ministère des Finances de Colombie. Il a également travaillé à la CNUCED.
C’est une des figures marquantes dans l’étude de la dette publique au niveau international. Il est chercheur à Eurodad.