CADTM international
15 de Agosto de 2020 por CADTM
É com enorme consternação que nós, militantes da rede internacional CADTM, tomámos conhecimento da nova explosão catastrófica que abalou Beirute no dia 4 de agosto de 2020. Queremos, por meio deste comunicado, exprimir a nossa solidariedade com os Libaneses e Libanesas que há tantos anos sofrem uma injusta sucessão de crises mortais, que atingiu agora o paroxismo. Pensamos que também é importante apontar as responsabilidades políticas e a responsabilidade de todos quantos tentam aproveitar-se da situação. Mais importante ainda é identificar as pistas que permitiriam ao país sair deste círculo vicioso.
A verdade sobre as causas precisas da explosão, ocorrida ao início da noite de 4 de agosto, de 2750 toneladas de nitrato de amónio no porto de Beirute levará tempo a ser apurada, se é que alguma vez chegará a ver a luz do dia. No entanto, esta catástrofe – que, no momento em que escrevemos estas linhas, já causou 158 mortes e mais de 6000 feridos – demonstra claramente o avançado estado de deliquescência a que chegou o Estado libanês. O primeiro-ministro do país dos cedros falou de falha por «negligência». Ora essa negligência, que é literalmente criminosa, recai antes do mais sobre o Governo e a sua própria administração central, gangrenada pelo clientelismo e pela corrupção. Recai também sobre os governos que se sucederam no Líbano desde o fim da guerra civil (ainda que as pessoas no poder já lá estivessem de facto nessa época) e evidentemente sobre os diversos partidos e milícias do país. O Líbano vai mal, muito mal, e as elites políticas locais têm pesadas responsabilidades nessa situação – isto é evidente para todo o mundo. Mas a responsabilidade recai também sobre as potências regionais e mundiais, as instituições financeiras internacionais (o Fundo Monetário Internacional, FMI, e o Banco Mundial) e os bancos privados.
Uma situação local mantida pela intervenção das potências internacionais
A catástrofe deste início de agosto enquadra-se antes de tudo no contexto da crise económica intensa que o país atravessa há vários meses. E esta, por sua vez, enquadra-se num contexto político problemático que se arrasta há dezenas de anos. O Líbano é um país magnífico, com fronteiras milenares e variadas culturas e confissões. Esta amálgama cultural e religiosa é, como em toda a parte, fonte de uma enorme riqueza social e cultural. Mas esta grande mistura e diversidade étnica e religiosa é frequentemente explorada e ampliada com fins políticos pelos poderes instituídos. Prova disso são a guerra civil que dilacerou o país de 1975 a 1990. O fim da guerra, contudo, não significou o fim do hábito, por parte das potências internacionais, de tentar tirar proveito das tensões interconfessionais. Esquematizando de forma um pouco grosseira, a Arábia Saudita e seus aliados (e por detrás destes, os EUA), e em menor medida a Turquia, apoiam os partidos sunitas; o Irão e a Síria apoiam os partidos chiitas (à cabeça dos quais se encontra o célebre Hezbollah); e a França (e mais discretamente Israel) apoiam os partidos cristãos. Cada um destes actores apoia e serve-se daqueles partidos para avançar os seus peões naquela região estratégica ao nível geopolítico e económico.
No Líbano, a organização montada à volta das crenças religiosas define toda a política. Os/as eleitores/as só podem votar nos candidatos/as que pertencem à mesma confissão religiosa (real ou presumida de nascença) e isto acontece não só ao nível da localidade onde o/a eleitor/a reside, mas também naquela onde nasceu. Este sistema favorece a manutenção de um clientelismo estrutural de proporções gigantescas. A tal ponto que não é exagero dizer que o essencial da classe política libanesa trabalha quase exclusiva e abertamente nos seus próprios interesses, nada se ralando com os interesses da população, que fica entregue a si mesma na maior parte dos domínios da vida quotidiana: o fornecimento de energia eléctrica é caótico; a gestão dos serviços de transportes colectivos de Beirute é deixada a cargo quer das diversas milícias, quer de particulares que dispõem de minibus; a (não-)gestão do lixo deu aso a grandes manifestações em 2015; as comunicações têm preços incomportáveis; os projectos de construção de uma linha ferroviária de sul a norte do país são constantemente adiados, apesar da congestão permanente das auto-estradas e dos planos de empréstimo vindos de antanho. Quanto aos mercados públicos e da administração, reina o compadrio político e o nepotismo. Escusado seria acrescentar que neste contexto a «boa gestão dos orçamentos públicos» é um conceito que apenas existe nos discursos dos políticos. O orçamento público serve sobretudo para untar as mãos dos mandatários locais e enriquecer ainda mais as fortunas privadas. A baixa de Beirute, à volta da Praça da Estrela – com os seus prédios vagos, construídos com subsídios do Estado e que apenas servem a especulação
Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
imobiliária privada –, é o símbolo por excelência desta confluência de interesses entre os detentores dos poderes públicos e os privados. Entre 2005 e 2014, o 1 % mais rico reteve 23 % dos rendimentos e 40 % do total de riquezas patrimoniais pessoais no Líbano, enquanto os 50 % mais «pobres» repartiram entre si o equivalente a metade dos rendimentos que couberam ao 1 % do topo. [1]
O movimento de contestação popular libanês que começou em 17 de outubro de 2019 põe em causa todo o sistema de desigualdades, reivindica o afastamento de toda a classe dirigente, a condenação dos responsáveis corruptos e a instauração de uma economia baseada na justiça social. Procura manter-se nas ruas, apesar da situação de emergência sanitária ligada ao covid-19 e da repressão. O movimento de protestos populares, que apresenta lemas anticonfessionais e denuncia a ditadura dos bancos, foi retomado após a catástrofe de 4 de agosto de 2020 e conseguiu provocar a 10 de agosto a queda do governo. O povo quer mudanças reais e mais profundas.
Uma economia ultra-financeirizada assente em esquemas financeiros bancários
O país, outrora apelidado a «Suíça do Médio Oriente», baseou a sua economia no sector financeiro, em prejuízo dos sectores produtivos. Há muito tempo que a balança comercial do país é deficitária (o que implica uma soberania alimentar muito precária) e a economia depende fortemente dos dólares enviados pela imensa diáspora libanesa espalhada por esse mundo fora (8000 milhões de dólares em 2018). Com base nestas remessas, o sector bancário montou uma verdadeira pirâmide de Ponzi. Os bancos privados compram, graças à liquidez enviada pela diáspora, os títulos da dívida nacional, cotados em libra libanesa, beneficiando de taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. muito vantajosas concedidas pelo Banco do Líbano (BdL); este sistema financia também os orçamentos públicos, que no essencial são delapidados pelos governos, como já explicámos acima.
Este sistema de financiamento do Estado para e pela finança privada conduziu à acumulação de uma dívida pública insustentável que representava, em 2019, 170 % do PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
(com cerca de 40 % da dívida denominada em dólares). Esse edifício desmoronou-se pouco a pouco, por efeito do abrandamento do fluxo de importação de dólares, devido à guerra na Síria e à fractura do sistema financeiro a nível mundial, assim como à fuga de capitais organizada pelas grandes fortunas do país. Acabou por ruir totalmente com a crise económica e financeira que acompanhou o coronavirus, quando as consequências socioeconómicas eram já consideráveis (ainda há poucos meses estimava-se que cerca de um terço da população vivia com menos de 4 $ por dia, que o desemprego era de +- 25 %, chegando aos 37 % se tivermos em conta a população com menos de 25 anos). Os/as libaneses/as viram-se então privados/as das suas poupanças e das suas pensões e o Estado tornou-se incapaz de financiar seja o que for, incluindo o reembolso da dívida (o país entrou em incumprimento de pagamento dos Eurobonds que atingiram o prazo de maturidade em março de 2020, o que veio acentuar ainda mais o sufoco do sistema bancário).
Enquanto a crise económica e humanitária atingia níveis nunca vistos no país, nem sequer durante a guerra civil e os bombardeamentos israelitas, mais uma vez os interesses políticos internacionais travaram a ajuda vinda do estrangeiro. A maioria dos partidos políticos enfraqueceu, na sequência dos protestos populares; só o Hezbollah, servindo-se da sua posição dominante como milícia mais armada do país para hostilizar os/as manifestantes, conseguiu manter o seu poder. Neste contexto, ficou fora de questão o envio de ajuda vinda dos EUA, da Arábia Saudita, da Turquia, de Israel e também da França e restante UE. Bem pelo contrário – os EUA tentaram aproveitar-se desta crise para aplicar o máximo de pressão sobre o Hezbollah, privando-o (a ele e ao resto do país) da chegada de liquidez, com o objectivo de debilitar a estratégia regional do Irão. Quanto ao Irão, encontrava-se também ele numa posição difícil, por um lado, por causa das repercussões económicas do bloqueio norte-americano e, por outro, por causa do coronavirus, que fustiga duramente o país, vendo-se assim incapacitado para enviar ajuda adequada. Assim, as potências internacionais, que durante décadas se serviram do Líbano em proveito próprio, deixaram-no entregue à sua sorte no momento de maior aflição.
É neste contexto que o Banco Mundial concedeu em abril um primeiro empréstimo de 120 milhões de dólares ao Estado libanês, para financiar as despesas de saúde. O FMI, sempre pronto a reagir neste tipo de situações, também se armou em salvador dos/as Libaneses/as, propondo um empréstimo de 10.000 milhões de dólares ao Governo. É claro que, como é costume desta instituição de Bretton Woods, a oferta de crédito vem acompanhada de um plano de ajustamento estrutural (PAS) ou, dito de outra forma, de um pacote de reformas para liberalizar ainda mais uma economia já de si extremamente financeirizada.
Por uma verdadeira ajuda internacional e por reformas que sirvam realmente os interesses dos/as Libaneses/as
Desde terça-feira passada, 15 de agosto, perante o verdadeiro cataclismo que abalou Beirute e que logicamente comoveu o mundo inteiro, os governos de todo o mundo ofereceram ajuda humanitária. O presidente francês foi mesmo visitar o local e aproveitou para fazer um discurso abertamente neocolonialista perante a população do antigo protectorado francês, a qual, por seu turno, lhe pediu que deixasse cair as elites políticas apoiadas pela França.
Sendo certo que a explosão de 4 de agosto afectou acima de tudo os/as habitantes de Beirute, todos/as os/as Libaneses/as estão dispostos/as a assumir as consequências. De facto, o porto destruído era a principal porta de entrada comercial do país (60 % das importações passam por aquele porto, das quais 85 % dos cereais importados), que tem todas as fronteiras terrestres cortadas pela guerra na Síria e pelo conflito com Israel, assim como uma grande parte do quarteirão das finanças. Por isso toda a economia libanesa caiu por terra. Além das pessoas já terem perdido as suas economias e pensões e o custo de vida ter explodido, 250.000 pessoas encontram-se hoje sem casa e milhões ficarão sem rendimentos. E não podemos esquecer que o Líbano é um país onde um em cada quatro habitantes é refugiado. Embora os dados não sejam muito precisos, calcula-se que numa população total de 6,8 milhões de habitantes, 4,5 milhões sejam libaneses, aos/às quais se juntam 1,5 milhões de refugiados sírios e mais de 500.000 refugiados/as palestinianos/as, para mencionar apenas os grupos maiores. É preciso igualmente ter em conta o grande número de migrantes que vivem no país e trabalham em condições horrorosas, em particular os trabalhadores domésticos. Todas estas pessoas serão ainda mais afectadas pela crise actual.
É desde já evidente que é indispensável uma ajuda internacional, tanto ao nível da ajuda humanitária urgente, como na reconstrução a médio e longo prazo. É também muito claro que o poder local não pode continuar nas mãos de quem tem responsabilidades neste desastre; tem de ser entregue à «sociedade civil», ou seja, à população, que deve poder gerir as instituições do país no interesse de todos e todas. Esta ajuda tem de ser uma ajuda real e para isso deve assumir a forma de donativos, de apoio médico e alimentar e da oferta de perícia logística (nomeadamente na reconstrução do porto, dos hospitais e das infraestruturas essenciais) e não de empréstimos. E as grandes reformas (reivindicadas pelo movimento popular) indispensáveis ao país são aquelas que permitem uma gestão democrática e eficiente, não as que são oferecidas (com renovada insistência) pelo FMI e que conduziriam ao agravamento das desigualdades económicas e a uma economia não menos dependente da finança, como acontece sistematicamente em todos os casos em que os países seguiram os PAS.
Apelamos a uma verdadeira ajuda internacional, sob a forma de donativos, acompanhada da anulação total da dívida libanesa, e não sob a forma de novos empréstimos que nada mais farão senão impedir a reconstrução do país a longo prazo.
Tradução de Rui Viana Pereira
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