9 de Abril de 2022 por Mats Lucia Bayer
Enquanto prossegue a invasão russa na Ucrânia, o país continua preso na armadilha da dívida, com sérias consequências sociais, políticas e económicas na vida dos trabalhadores/as ucranianos. Reproduzimos aqui um artigo publicado em 2018, uma vez que a questão é mais relevante que nunca e também porque a contenda judicial sobre a dívida da Ucrânia à Rússia ainda está em curso nos tribunais de Londres.
A 19 de setembro de 2018 o Financial Times anunciou a iminência da abertura de um processo judicial entre a Ucrânia e a Rússia por causa de um empréstimo de 3000 milhões de dólares.
O processo judicial resultava da recusa da Ucrânia em reembolsar o montante emprestado em 2013 pela Rússia, com o argumento de que essa dívida era «odiosa». Este argumento, já avançado em 2015 pelo país devedor, refere a alegada cumplicidade do governo de Viktor Yanukovych com a Rússia de Putin. Recordemos que Viktor Yanukovych foi deposto em 2014, no seguimento do chamado movimento de massas da Praça Maidan, indo então refugiar-se na Rússia. Na opinião do Financial Times, seria muito pouco provável que o tribunal de Londres aplicasse neste caso a doutrina da dívida odiosa. A entrada desta disputa nos tribunais de Londres deve-se ao facto as dívidas terem sido contratadas sob a lei inglesa e ambos os contendores, queixoso e arguido, terem acordado que qualquer disputa seria arbitrada nos tribunais britânicos.
Além disso, a referência à doutrina da «dívida odiosa» seria política e moralmente benéfica à Ucrânia, uma vez que recairia sobre a Rússia o ónus de justificar as suas acções durante a guerra civil ucraniana.
Para além do recurso mais ou menos interesseiro, para não dizer oportunista, por parte do Governo ucraniano, a disputa é relevante, pois volta a colocar na ordem do dia a doutrina da «dívida odiosa». Esta doutrina, desenvolvida pelo jurista Alexander Nahum Sack, estabelece que o carácter «odioso» de uma dívida soberana é determinado por duas condições:
Dada a natureza do empréstimo – provido pela Rússia à Ucrânia – no âmago da disputa, podia claramente ser encarado como dívida odiosa
De facto, dada a natureza do empréstimo – provido pela Rússia à Ucrânia – no âmago da disputa, poderia claramente ser visto como dívida odiosa, uma vez que teria sido uma recompensa da Rússia pela lealdade de Yanukovych e porque, após a queda deste, Moscovo viria a ser acusada de ter interferido e depois participado directamente na guerra civil da Ucrânia.
É possível alargar este argumento a outras dívidas contraídas pela Ucrânia, o que torna a queixa judicial apresentada por este país um grande problema. Esta a razão pela qual o processo da Ucrânia contra a Rússia representa um problema tão grande aos olhos do Financial Times e provavelmente também do tribunal londrino. As opiniões expressas pelo jornal, cujos editoriais ecoam as vozes representativas dos interesses dominantes no mundo dos grandes negócios, são significantes. Existe aqui uma contradição de fundo que tem a ver com a história da doutrina da «dívida odiosa». A abordagem de Alexander Sack, que passou a constituir uma referência na formulação da doutrina da «dívida odiosa», tinha um objectivo completamente diferente: limitar o número de repúdios da dívida soberana, a fim de garantir o máximo de proveitos para os credores privados. Aliás, apesar de já ter ocorrido um considerável número de repúdios ao tempo da formulação da doutrina, Sack não os levou a todos em conta. O seu objectivo não era portanto justificar, e menos ainda encorajar, o repúdio das dívidas soberanas por parte dos países devedores, mas sim prevenir os percalços do mercado de dívida soberana, muitas vezes politicamente determinado, de forma a fortalecê-lo. No entanto, a sua abordagem criou um domínio propício à análise e debate sobre o repúdio da dívida e sua potencial relevância.
Este debate desemboca muitas vezes em situações contraditórias: em 2003, um mês após a invasão do Iraque pela coligação constituída pelos EUA, Grã-Bretanha e Austrália, os Estados Unidos declararam que consideravam odiosa a dívida contraída pelo regime de Saddam Hussein. Do ponto de vista da potência ocupante, era essencial repudiar a dívida, pois esta constituiria um fardo ilegítimo para a criação de um regime democrático no Iraque. Tanto o Financial Times como os países credores expressaram então as suas dúvidas, especialmente por causa do perigoso precedente que seria reconhecer o carácter odioso da dívida. Na realidade, os EUA viram essa dívida (e a necessidade de a reembolsar aos credores, entre os quais avultava a França, a Alemanha e a Rússia) sobretudo como um obstáculo ao desenvolvimento dos seus negócios no Iraque. [2] As negociações resultaram no cancelamento de 80 % da dívida pelo Clube de Paris em novembro de 2004. O Banco Mundial levou o caso a tribunal, bem como outros credores. Por fim, ficaram criadas as condições para o capital privado norte-americano se apropriar dos principais mercados iraquianos. O exemplo iraquinano mostra como as estratégias do capital para alargar a sua base de acumulação não só envolvem o mecanismo de aumento da dívida, mas também por vezes o seu cancelamento parcial (que é diferente do repúdio).
A disputa entre a Ucrânia e a Rússia revela uma contradição semelhante no que respeita à teorização de Sack. Paralelamente ao anúncio do repúdio da dívida devida à Rússia, o novo governo ucraniano contraiu empréstimos com o FMI, num montante total de 17,3 mil milhões de dólares. O então primeiro-ministro Arseni Yatsenyuk, apoiado pelo milionário Petro Poroshenko, novo presidente ucraniano, insistiu na inevitabilidade deste empréstimo [«The government will meet all the conditions set by the IMF, because we have no other choice» («O Governo aceitará todas as condições estabelecidas pelo FMI, porque não tem outra alternativa»), disse Yatsenyuk durante um encontro com membros da European Business Association (EBA). «Ukraine vows to meet IMF loan conditions» (A Ucrânia compromete-se a cumprir as condições de empréstimo do FMI), Xinhua, 3-03-2014]. Num contexto em que as despesas de guerra cresciam constantemente devido ao conflito no Leste do país, o empréstimo do FMI foi acompanhado de um pesado programa de «ajustamento estrutural» que precarizou ainda mais a população ucraniana. Neste sentido, seria perfeitamente legítimo para o povo ucraniano exigir que o empréstimo do FMI fosse repudiado, à semelhança do repúdio da dívida à Rússia. Repúdio esse que poderia ser justificado em razão do seu «carácter odioso», preenchendo assim as condições de aplicação da doutrina da dívida odiosa.
Esta perspectiva sobre as diversas componentes da dívida ucraniana permite-nos compreender melhor o ponto de vista do Financial Times, quando este escreveu em 2015: «Ukraine takes ’odious’ path to default» («A Ucrânia segue a via “odiosa” para entrar em incumprimento»). Para este diário financeiro, o pior cenário possível nesta disputa seria o repúdio da dívida ucraniana à Rússia com base no argumento da dívida odiosa. Isto abriria um precedente em termos de jurisprudência que seria terrível para os credores em todo o Mundo. Vemos assim, mais uma vez, como as disputas em torno da dívida soberana escondem relações de dominação entre países baseadas na exportação de capitais, que é como quem diz, relações imperialistas; neste caso entre a Rússia e as potências ocidentais agrupadas em torno do FMI e tendo a Ucrânia como alvo. O jogo das tensões geopolíticas praticado pelas classes dominantes passa completamente ao lado dos interesses da população ucraniana – uma população precarizada, destituída de vários direitos e que tem o legítimo direito a repudiar as dívidas odiosas que pesam sobre o país.
Tradução de Rui Viana Pereira (a partir da versão em inglês, de 3-04-2022)
O autor agradece a Nathan Legrand e Éric Toussaint pelos seus conselhos e revisão. O autor é inteiramente responsável por quaisquer erros contidos neste artigo.
[1] Éric Toussaint, Le système dette. Histoire des dettes souveraines et de leur répudiation, Ed. Les Liens qui Libèrent, Paris, 2017, p. 189.
Ver também: Éric Toussaint, A Book that brings odious debt back into the limelight
[2] «US persuades Paris Club to write off £23bn of Iraqi debt», Ashley Seager, The Guardian, 22-11-2004, https://www.theguardian.com/business/2004/nov/22/iraq.debt
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