A resposta económica à crise beneficia as grandes empresas

O porta-voz da rede internacional CADTM (Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas) defende o fim das patentes

26 de Maio de 2021 por Eric Toussaint , Roberto González Amador


Éric Toussaint, porta-voz da rede internacional CADTM (Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas), foi entrevistado por Roberto González Amador, do jornal mexicano La Jornada, defende o fim das patentes. [1]



As sementes de uma armadilha da dívida cujos efeitos serão visíveis nos anos vindouros

A primeira resposta político-económica que prevaleceu em todo o mundo para enfrentar a crise derivada da pandemia de covid-19 – injectar dinheiro nos mercados financeiros e contrair mais dívidas públicas – acabou por fazer proveito ao Grande Capital, aos grandes accionistas das grandes empresas e aos fundos de investimento que se dedicam a actividades especulativas. Ao mesmo tempo, lançou as sementes de uma armadilha da dívida cujos efeitos se tornarão visíveis nos anos vindouros, diz Éric Toussaint, porta-voz do CADTM.

«As classes populares, já de si afectadas pela pandemia, vêem-se ainda mais confrontadas com mudanças que as afectam», afirma Toussaint, que é há anos uma das vozes mais conhecidas dos movimentos altermundialistas, como os que resultaram das mobilizações de Seattle (1999) para denunciar as práticas da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou do Fórum Económico Mundial de Davos.

As classes populares, já de si afectadas pela pandemia, vêem-se ainda mais confrontadas com mudanças que as afectam

«É evidente que a crise de 2020 é diferente da de 2007-2009, mas assistimos a uma repetição de políticas que favorecem fundamentalmente o grande capital e as grandes empresas. No caso actual, não se trata apenas de fundos de investimento e da banca privada. Desta vez temos de acrescentar a Big Pharma [a grande indústria farmacêutica] e as GAFA (Google, Amazon, Facebook, Apple)», declarou ele a La Jornada.


Adiar o descalabro

Toussaint promove actualmente, junto com centenas de organizações de diversas partes do Mundo, um manifesto para enfrentar a crise multidimensional actual, que tem como elemento fundamental a libertação das patentes sobre as vacinas.


Diz que a pandemia aumentou as desigualdades sociais. Como foi isso?

«A pandemia não pode ser dissociada de uma profunda e destrutiva mercantilização da natureza, que está ligada ao modo de funcionamento do capitalismo à escala mundial. Por outro lado, antes mesmo da pandemia, encontrávamo-nos já em plena crise económica, com uma bolha financeira e bolsista, uma estagnação das principais economias industriais e um abrandamento do crescimento da China. Existe uma ligação entre a pandemia e a crise capitalista mundial e global. É importante sublinhar este aspecto, pois os governantes e os meios de comunicação dominantes explicam-nos que tudo se deve ao vírus.»


A crise afectou mais fortemente os sectores mais vulneráveis?

«As classes populares são obrigadas a continuar à procura de rendimentos para as suas despesas essenciais, a usar transportes colectivos para irem trabalhar. No contexto da pandemia, isto implica uma degradação das suas condições de vida, a que acresce a perda de fontes de rendimento, já que na maioria dos casos, sobretudo os/as trabalhadoras do sector informal, não têm direito aos apoios pecuniários distribuídos pelos governos, nos casos em que eles existem.

«O nível de endividamento das classes populares, incluindo a classe média-baixa, também aumentou. Em vários países foram tomadas medidas para adiar o pagamento das dívidas ou suspender o despejo das famílias que não podem pagar o aluguer ou a hipoteca da sua casa. Mas isto é temporário; no futuro terão de os pagar, a não ser que haja uma anulação dessas dívidas.»


Pouco mais de um ano após o início da crise, quais foram as principais respostas dos governos, no domínio económico, e quais os efeitos dessas medidas?

«Um: uma injecção massiva de liquidez no sistema financeiro, o que significa que a crise bolsista que explodiu entre 13 de fevereiro e 15 de março de 2020 foi aparentemente ultrapassada. O índice bolsista da maioria das economias é hoje mais elevado do que no início de 2020.

«A primeira resposta consistiu numa política favorável aos grandes capitalistas. Estes, na maioria dos casos, utilizam de forma especulativa os meios financeiros ao seu dispor, não os investem na produção e na geração de emprego, excepto no caso do Big Pharma, que é muito rentável. Os governos voltaram a repetir o que já tinham feito em 2008: uma intervenção massiva dos bancos centrais a favor das grandes empresas financeiras e outras.

«Dois: a imposição de um confinamento acompanhado da vontade dos governantes de relançar a actividade económica, em detrimento das classes populares, pois elas encontram-se mais expostas ao vírus. É claro que em países como os EUA, parte da Europa e na China, se verifica um início de retoma económica, ainda que por enquanto não seja muito forte e não baste, salvo na China, para recuperar rapidamente as perdas de PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
de 2020 e do primeiro trimestre de 2021. O PIB dos EUA teve um crescimento considerável, mas a criação de emprego é mais fraca, até à data, do que a administração Biden desejaria. Se não sobrevier uma nova catástrofe, o PIB dos EUA será provavelmente mais elevado em finais de 2021 que no início de 2020, mas será preciso também ter em conta o número de falências de pequenas empresas, o estado exacto do emprego, a situação de endividamento dos agregados familiares das classes populares … Tudo isto desenha um futuro incerto.

«Os défices orçamentais e o aumento das dívidas públicas foram autorizados, mas não da forma adoptada por Roosevelt na década de 1930, pelos países europeus após a II Guerra Mundial ou pelos países da América Latina que optaram um modelo de industrialização em substituição da importação, entre os anos 1940 e 1960 (ver caixa).»

A substituição das importações por industrialização

Esta estratégia remete principalmente para a experiência histórica da América Latina dos anos trinta e quarenta e para os trabalhos do CEPAL (Comissão Económica para a América Latina, da ONU) dos anos 1950, nomeadamente com os escritos do argentino Raúl Prebisch (que viria a ser em 1964 o primeiro secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento – CNUCED). O ponto de partida é a verificação de que, confrontados com uma redução drástica das trocas devida à grande crise dos anos trinta e à II Guerra Mundial, os principais países da América Latina souberam responder à procura interna substituindo os produtos importados pelo desenvolvimento da produção local. A teorização da CEPAL visa alargar este procedimento sucessivamente a todos os sectores da indústria, criando uma «desconexão» relativamente ao Centro. Apoiada em boa dose de proteccionismo e numa intervenção coordenada do Estado, esta estratégia visa o florescimento de indústrias nascentes. Esta política deu frutos importantes em matéria de industrialização na Argentina (anos 1940-1950) e no México (anos 1930-1950). A Coreia do Sul aplicou esta política com sucesso mas em condições especiais.

«Nos dias de hoje esta política não se aproxima do New Deal que o presidente Franklin D. Roosevelt aplicou a partir de 1933. Desta vez, nenhuma progressão dos direitos sociais; nenhuma imposição de uma política financeira forte em relação aos bancos; nenhum esforço fiscal imposto aos mais ricos, nenhum aumento considerável dos salários, nenhum aumento dos direitos sindicais – isto para referir apenas cinco critérios. No caso do New Deal, foi posta em prática uma grande protecção social, os bancos de investimento foram separados dos bancos de depósito, os salários foram aumentados. Os impostos sobre os rendimentos mais elevados chegaram aos 91 % em 1941 e depois mantiveram-se nos 80 % durante várias décadas.

Não se verifica um abandono da orientação neoliberal que visa precarizar ainda mais o mercado de trabalho, a relação capital/trabalho e os sistemas de protecção social

«Actualmente, o programa de resgate da economia é financiado pela dívida pública e até agora nenhum imposto sobre os mais ricos foi lançado. Veremos nos próximos meses se o projecto da administração Biden se concretiza no que diz respeito ao aumento de impostos sobre os lucros das empresas (sabendo-se que o aumento previsto por Biden não chega para cobrir a baixa de impostos sobre os lucros aplicada por Trump entre 2017 e 2020, ainda em vigor à data desta entrevista). Veremos também se ele reforçará ou não (de maneira significativa) a taxação dos GAFA.

«Não se verifica um abandono da orientação neoliberal que visa precarizar ainda mais o mercado de trabalho, a relação capital/trabalho e os sistemas de protecção social. Uma política keynesiana não se define apenas pela gestão orçamental, mas também por outras medidas destinadas às classes populares, como fez Roosevelt na sua época nos EUA, sob pressão de grandes mobilizações dos/as trabalhadoras, ou o presidente Lazaro Cardenas no México nos anos 1930.»


As medidas tomadas pelos governos na Europa e nos EUA para aumentar os orçamentos públicos, os défices orçamentais e aumentar a liquidez dos bancos modifica a estrutura económica que existia quando a crise estourou?

A dívida é uma solução temporária e a dado momento o montante será tal, que as políticas de austeridade brutais voltarão a ser aplicadas no futuro, provavelmente daqui a dois anos, afirma Éric Toussaint

«No fundamental a orientação não mudou. São medidas conjunturais fortes, mas não podem ser interpretadas como se o capitalismo tivesse regressado às medidas postas em prática nos anos 1930 a 1960-1970. Não é isso que acontece. São medidas temporárias e, a dado momento, a dívida será de tal ordem, que o regresso às políticas de austeridade brutais ocorrerá daqui a um ano ou dois. Temos de olhar para os EUA. O plano do presidente Joe Biden, pelo menos nas suas intenções declaradas, dá a ligeira impressão de que alguma coisa poderia ir no sentido de uma espécie de keynesianismo moderado; mas ainda não foi totalmente aprovado pelo Congresso. O que se passar nos EUA terá impacto na Europa, no México e no resto do mundo.»

Algumas das medidas adoptadas pelos governantes e pelos bancos centrais para fazer frente a crise financeira de 2008-2009 acabaram por beneficiar os mesmos grupos que foram responsáveis pela crise. Que se passa desta vez, tendo em conta que se trata de um tipo diferente de crise?

As patentes das vacinas covid da Pfizer garantem-lhe uma renda fixa durante 20 anos. Esta empresa diz que terá 25 mil milhões de dólares de lucros suplementares a curto prazo

«É uma repetição. Embora a crise de 2020 seja diferente da de 2007-2009, verificamos a repetição de políticas que favorecem fundamentalmente o grande capital e as grandes empresas. No caso presente, não se trata apenas de fundos de investimento e da banca privada. Desta vez, acrescenta-se o Big Pharma, uma indústria que se tornou cada vez mais poderosa, tal como os GAFA. BlackRock, o maior fundo de investimentos do mundo, é accionista de todas as grandes empresas farmacêuticas, que estão a ser favorecidas pelas políticas dos governos, que em vez de suspenderem as patentes e lançarem um programa de investimento público e a produção de vacinas, compram centenas de milhões de doses às empresas privadas, as quais, ainda por cima, terão um rendimento garantido durante 20 anos, se as patentes não forem suspensas.

«Por exemplo, a patente da vacina contra o covid da Pfizer garante-lhe uma renda durante 20 anos. Esta empresa afirma que terá 25 mil milhões de dólares de rendimentos suplementares a curto prazo. Além disso, a vacina terá de ser renovada todos os anos. É uma renda permanente. Assistimos a coisas que é muito importante denunciar, pois trata-se de alterações extraordinárias, a saber, a iniciativa pública retira-se progressivamente da produção de medicamentos e tratamentos.

São impostas alterações estruturais à nossa maneira de trabalhar, de ensinar e de nos fornecer serviços e produtos de base. Isto degrada a situação das classes populares

«É preciso acrescentar a tudo isto as alterações estruturais que nos são impostas: o trabalho e o ensino à distância, assim como o crescimento do fornecimento às famílias via Amazon e outras empresas. As mudanças estruturais são impostas à nossa maneira de trabalhar, de ensinar e de nos fornecer os serviços e produtos de base. A mercantilização acelera e tudo isto degrada a situação das classes populares.»


Que irá passar-se nos próximos anos, quando as dívidas contraídas pelos governos para enfrentar a crise tiverem de ser pagas?

«Exactamente, estamos perante uma armadilha. Como a dívida aumentou enormemente, os governos neoliberais dispõem de mais instrumentos ou armas de chantagem para continuarem a aplicar reformas estruturais. Encontramo-nos numa fase de endividamento público super-rápida e gigantesca. Cuidado com o que vai acontecer a seguir, se não houver uma forte resistência: mais austeridade e contra-reformas a favor do sector privado. Temos de nos manter vigilantes e preparados para resistir.»


Contrariamente a outros episódios de crise, a dívida hoje em dia aumenta tanto nos países do Sul como do Norte.

«A dívida da Grécia representa 200 % do seu produto interno bruto, a da Itália 150 %, a da Bélgica 120 % e a da França 115 %. Nos países do Sul, ela aumenta, mas a níveis equivalentes a 60 % ou 70 % do PIB.

«Se os bancos centrais dos EUA, do Japão, da Europa e da Grã-Bretanha modificarem a sua política actual de taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. quase nulas e começarem a aumentá-las, o custo da dívida sobe em flecha e todos os países terão dificuldades de financiamento. Se a especulação Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
desenfreada no mercado de acções, cuja cotização na bolsa atingiu novos picos, descambar num krach bolsista, na estrondosa falência das grandes empresas, os mercados podem entrar em pânico. Isso pode levar a um forte aumento dos prémios de risco para os novos empréstimos a uma série de empresas e aos países que se financiam nos mercados financeiros. A especulação voltou a atacar em força o mercado de matérias-primas e isso pode também provocar novos choques.»


Tradução: Rui Viana Pereira


Fonte: https://www.jornada.com.mx/2021/05/23/economia/021e1eco
https://www.jornada.com.mx/2021/05/23/portada.pdf La Jornada, principal quotidien de gauche au Mexique), domingo, 23/05/2021.

Notas

[1Entrevista publicada em castelhano, com data de 23/05/2021, no México, adaptada e ligeiramente aumentada para a versão noutras línguas.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

Outros artigos em português de Eric Toussaint (325)

0 | ... | 80 | 90 | 100 | 110 | 120 | 130 | 140 | 150 | 160 | ... | 320

CADTM

COMITE PARA A ABOLIÇAO DAS DIVIDAS ILEGITIMAS

8 rue Jonfosse
4000 - Liège- Belgique

00324 60 97 96 80
info@cadtm.org

cadtm.org