A transformação do modelo de desenvolvimento da China e o impacto na América latina (parte I)

16 de Março de 2013 por Daniel Munevar




O crescimento económico rápido da China no decorrer das últimas décadas tem mudado radicalmente a estrutura da economia global. A América Latina não tem sido alheia a este processo, tendo sido beneficiada diretamente pelo impacto da China nos mercados das matérias-primas. No período entre 2013 e 2012, deu-se um processo, largamente intensificado pela especulação Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
, de subida dos preços das matérias-primas de 111% em termos reais [1]. No mesmo período, o valor das importações de matérias-primas pela China cresceu de 1136% [2]. Em consequência dessa dinâmica, as exportações da América Latina para a China aumentaram de 10 mil milhões de dólares em 2000 para 241 mil milhões em 2011 [3].

A curto prazo, este crescimento rápido das exportações beneficiou a região. A diversificação das exportações regionais em termos de mercados de destino facilitou o processo de recuperação económica dos países da América Latina após a recessão dos Estados Unidos no ano de 2001 e a crise financeira de 2008. Da mesma forma, o aumento das receitas fiscais dos países da região desempenhou um papel fundamental na redução significativa do volume da dívida externa, ao passo que permitiu o financiamento de maiores gastos sociais.

De certa forma, independentemente da orientação política da administração, a maioria dos governos da região baseiam as suas projecções e políticas de desenvolvimento futuro no pressuposto de que essas dinâmicas são de natureza estrutural. Ou seja, que a procura insaciável de matérias-primas pela China constitui uma base estável tanto para o crescimento das exportações regionais como para a estabilização dos termos de troca em níveis extremamente favoráveis para os países da América Latina. Contudo, este pressuposto aponta para um desconhecimento profundo dos elementos componentes do modelo de desenvolvimento da China.

Como nos casos de desenvolvimento históricos da Coreia do Sul ou do Japão e outros, o modelo de desenvolvimento da China baseia-se na transferência sistemática dos rendimentos e da riqueza das famílias para o setor de actividade das exportações. Tal transferência resultou numa repressão do consumo interno, no aumento da produção nacional, e segundo a definição das contas nacionais, num aumento da poupança e do superavit externo [4]. Na medida em que a transferência dos rendimentos dos agregados familiares restringe a capacidade do consumo interno de estimular o crescimento económico, este crescimento depende do investimento do setor das exportações e da procura externa para persistir.

A transferência dos rendimentos das famílias para o sector de produção ocorre por meio de um conjunto de políticas económicas de que se destacam 3. A primeira consiste em manter sistematicamente o aumento dos salários abaixo do aumento dos níveis de produtividade. Tal esquema representa um subsídio directo das famílias ao sector de produção e constitui um elemento-chave para manter a taxa de lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). deste último. No caso da China, isto refletiu-se na diminuição da participação dos salários na economia de 52% do PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
no fim dos anos noventa para menos de 40% do PIB em 2007 [5]. No mesmo período, o rendimento do investimento cresceu de 20 pontos do PIB [6]. Deste modo, convém realçar que o impacto negativo da repressão salarial no bem-estar dos agregados familiares foi compensado pelo crescimento da taxa de emprego que ocorreu na China ao longo das últimas décadas. Visto de outra maneira, os rendimentos inferiores ao nível dos agregados familiares individuais têm sido compensados com o aumento do número de famílias com rendimentos.

O segundo mecanismo é a repressão financeira. O estabelecimento de taxas de juros artificialmente baixas implica uma transferência de recursos dos detentores de poupança para os prestamistas. Na medida em que as famílias são um setor com poupança líquida positiva e que o setor produtivo é un setor com poupança líquida negativa, as baixas taxas de juros prejudicam o primeiro e favorecem o segundo. Na prática, as famílias são forçadas a subvencionar o custo do investimento do setor produtivo. Nas fases iniciais do processo de desenvolvimento, esse mecanismo de subsídios acelera o crescimento por reduzir o custo dos investimentos. No entanto, se for mantido durante períodos prolongados, pode ter por efeito distorcer sistematicamente esse custo, o que pode levar a um aumento dos projectos de investimento inviáveis do ponto de vista económico, e mais importante, sem capacidade para enfrentar o serviço da dívida que financiou originariamente esses projectos.

A análise da experiência da Coreia do Sul e do Japão demonstra que a má distribuição de créditos no setor empresarial desempenhou um papel-chave nas crises vividas por ambos os países na década de noventa. Em ambos os casos, a crise obrigou a uma reorientação das políticas económicas para enfrentar os problemas de endividamento do setor produtivo após anos de baixas taxas de juros e subsídios em massa que incentivavam a tomada de riscos excessivos. No caso da China, tudo indica que este país asiático começa a enfrentar precisamente o mesmo problema. Entre 2007 e 2012, a dívida do sector empresarial não financeiro na China subiu de 130% do PIB para 190% [7]. Esta subida do endividamento ocorreu no âmbito do plano de estímulo do governo para enfrentar a crise internacional, no entanto, tudo indica que o impacto do crédito no crescimento económico tem diminuído progressivamente [8]. Na medida em que se reduz o rendimento do capital fixo, são exigidos níveis de crédito e de endividamento superiores com vista a manter os níveis de crescimento actuais, o que aumenta a vulnerabilidade da economia chinesa, como aconteceu anteriormente no Japão e na Coreia do Sul.

O terceiro mecanismo da estratégia de desenvolvimento da China é uma taxa de câmbio artificialmente alta. Nos últimos anos, esta questão tornou-se altamente controversa no âmbito da chamada guerra cambial. Ao passo que a atenção está centrada no aumento da competitividade das exportações chinesas, que resulta de um taxa de câmbio alta, não se dá atenção ao impacto dessa taxa sobre o consumo e a poupança dentro do país. Ao aumentar o custo das importações, a taxa de câmbio alta reduz o rendimento real dos agregados familiares em termos de poder de compra. Por outras palavras, o efeito direto é a redução do consumo das famílias chinesas. Se esta diminuição do consumo for superior ao aumento da produção, por definição a poupança nacional deve crescer, e com ela o superavit externo do país. Isto é, a repressão do consumo interno, via a taxa de câmbio, anda de mãos dadas com o crescimento de superavits externos para sustentar o crescimento económico.
Duas componentes essenciais são necessárias para que a relação entre estes três elementos se possa manter ao longo do tempo. Em primeiro lugar, uma disposição do país em geral e das famílias em particular de manter termos de troca extremamente desfavoráveis que afetam diretamente o rendimento real bem como a capacidade de consumo da população. Como no caso da repressão salarial, o sacrifício em termos de capacidade de consumo é compensado pela capacidade do setor de produção de gerar novos empregos que permitam aumentar o nível de vida das cerca de 20 milhões de pessoas que emigram anualmente das regiões interiores da China para o litoral do país onde estão situadas as zonas massivas de manufatura e exportação. Em segundo lugar, o resto do mundo deve estar disposto a acolher o aumento contínuo da produção e da poupança da China sob a forma de exportações de artigos manufaturados e de fluxos de capital. A medida que a participação do consumo como percentagem do PIB da China diminuiu de cerca de 50% para menos de 35% na última década [9], o resto do mundo teve de assimilar volumes de exportações crescentes da China.

Nesta fase, fica claro que o modelo de desenvolvimento da China enfrenta actualmente dois grandes obstáculos. O primeiro dos quais é o aumento rápido dos problemas de crédito ligados ao sistema financeiro extremamente distorcido. As pressões exercidas pelo governo no sentido de manter o crescimento do crédito rápido têm resultado numa má utilização dos recursos, e as oportunidades de investimentos rentáveis que justifiquem os créditos são cada vez menores [10]. A implicação direta é que, mais cedo ou mais tarde, as perdas resultantes desta situação devem ser reconhecidas. Se os prejuízos do sistema financeiro forem corrigidos através do aumento dos impostos ou da captura da poupança, isto só pioraria os desequilíbrios presentes na China por reduzir ainda mais a participação do rendimento e do consumo dos agregados familiares na economia e, consequentemente, pela dependência do investimento e do aumento das exportações.

O segundo obstáculo é a disposição do resto do mundo de continuar a absorver os excedentes comerciais da China. Ainda que o governo da China seja capaz de adiar o reconhecimento das perdas no setor financeiro, as pressões comerciais maiores associadas ao contexto atual, em que a economia dos Estados Unidos continua a recuperar lentamente e as principais economias europeias afundam-se na recessão, tornam pouco provável que este país asiático consiga manter a sua estratégia de desenvolvimento indefinidamente. Perante esta situação, não é por acaso que, depois da crise de 2008, a China tenha reforçado os seus esforços para exportar as suas poupanças excedentárias para a América Latina e África. Tendo em conta que as exportações de capital equivalem a uma importação da procura de outros países, este mecanismo constitui uma derradeira tentativa de manter o crescimento económico e do emprego ligado às exportações em detrimento do setor produtivo dos outros países.

Por conseguinte, o reequilíbrio que deve ocorrer na economia chinesa, à semelhança do que aconteceu na Coreia do Sul ou no Japão, será alcançado por meio da combinação de vários factores: a diminuição da taxa de crescimento económico, a diminuição do ritmo de crescimento do emprego e, mais importante, a melhoria significativa dos termos de troca do país. Uma vez que as políticas de transferência dos rendimentos dos agregados familiares para o setor produtivo exportador visam a criação de um setor manufatureiro competitivo, que permita reter o valor agregado gerado pela economia, é lógico que, uma vez atingido este objetivo e esgotadas as possibilidades iniciais do modelo de desenvolvimento, as condições de vida da população mudem.

Convém agora realçar que uma redução do crescimento económico não resulta necessariamente na deterioração das condições de vida das famílias. Na realidade, dá-se o oposto. Uma vez que uma mudança de modelo implica inevitavelmente o abandono das políticas de transferência dos rendimentos, o abrandamento no crescimento da economia e do emprego é compensado pela melhoria nos rendimentos reais das famílias. Os exemplos históricos demonstram que medidas tais como o aumento dos salários, melhorias na rede da segurança social e nos termos de troca da economia, se verificam e permitem o desenvolvimento de um mercado interno, uma vez estabelecida uma base manufatureira de exportação. Mais importante ainda, são absolutamente necessárias para manter o apoio político da população mediante a consolidação de uma classe média com um poder de compra crescente, num contexto marcado pela estagnação do crescimento do emprego. É este o processo pelo qual a China deve passar nos próximos anos, ainda que de forma relutante.

Visto nesta perspectiva, a transformação do modelo de desenvolvimento da China tem profundas implicações para a América Latina, as quais se repartem em 3 grupos: o impacto sobre os preços das matérias-primas e, por definição, sobre os termos de troca da América Latina; o impacto sobre os rendimentos reais da população; o impacto sobre as receitas fiscais e a estratégia de desenvolvimento dos países nessa região. Esses elementos serão analisados na segunda parte deste artigo.


Tradução : Noémie Josse Dos Santos

Notas

[1Dados do Banco Mundial sobre os preços reais das matérias-primas numa base de 100 em 2005. Média não ponderada da subida dos preços dos grupos de matérias-primas da energia, metais, alimentos e metais preciosos.

[2Dados da UN COMTRADE segundo a classificação padrão do comércio internacional, SITC. Ver 3.

[3Ver Kolesli K. “Backgrounder: China in Latin America” US-China Economic and Security Review Commision, disponível em: http://origin.www.uscc.gov/sites/de. Para obter os dados de 2011, ver “China´s trade with Latin America grew in 2001” disponível em: http://in.news.yahoo.com/chinas-tra

[4De acordo com a definição das contas nacionais, a poupança nacional é igual à diferença entre a produção e o consumo. Na presença de equilíbrio fiscal, a poupança nacional é igual à diferença entre as exportações e as importações. Consequentemente, níveis de poupança nacional mais altos correspondem por identidade macroeconómica a um aumento do superavit externo.

[5Ver “Should China raise wages”, disponível em: http://www.economonitor.com/blog/20...

[6Ver “Percentage of wage income in GDP falls” disponível em: http://english.caixin.com/2010-05-1...

[7Ver Chancellor E. e Monelly Mike “Feeding the Dragon: Why China´s Credit System Looks Vulnerable”, disponível em: http://es.scribd.com/doc/121710465/...

[8Ver “Yuan lending expansión keeps momentum”, disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/cndy/2...

[9Ver “Household Consumption as a Percentage of GDP”, disponível em: http://www.chinaglobaltrade.com/fac

[10Ver “Deflating Shadow Credit in China”, disponível em: http://ftalphaville.ft.com/2013/02/...

Daniel Munevar

est un économiste post-keynésien originaire de Bogotá, en Colombie. De mars à juillet 2015, il a travaillé comme assistant de l’ancien ministre des finances grec, Yanis Varoufakis ; il le conseillait en matière de politique budgétaire et de soutenabilité de la dette.
Auparavant, il était conseiller au Ministère des Finances de Colombie. Il a également travaillé à la CNUCED.
C’est une des figures marquantes dans l’étude de la dette publique au niveau international. Il est chercheur à Eurodad.

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