A verdade veio à tona: dinheiro é apenas uma nota promissória, e os bancos estão se deleitando com isto

18 de Julho de 2018 por David Graeber


Na década de 1930, Henry Ford supostamente disse que era positivo que a maioria dos estadunidenses não soubessem como o sistema bancário realmente funciona, pois, se soubessem, “haveria uma revolução antes do próximo amanhecer”.



Semana passada algo notável aconteceu. O Banco da Inglaterra deu bandeira. Em um artigo chamado “A Criação de Dinheiro na Economia Moderna”, co-autorado por três economistas da Direção de Análise Monetária do Banco, eles afirmaram já de antemão que as concepções mais comuns de como o sistema bancário funciona estão simplesmente erradas, e que aqueles tipos de posições populares e heterodoxas mais ordinariamente associadas a grupos como o Occupy Wall Street estão corretas.

Para ter uma noção do quão radical é a nova posição do Banco, considere a visão convencional, que continua na base de todo debate respeitável sobre política pública. Pessoas colocam seu dinheiro em bancos. Bancos então emprestam aquele dinheiro sob juros - ou para consumidores, ou para empreendedores que querem investí-lo em algum empreendimento rentável. Sim, o sistema de reservas fracionárias permite que bancos emprestem consideravelmente mais do que eles têm em reservas, e sim, se as reservas não são suficientes, os bancos privados podem buscar tomar emprestado mais do banco central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). .

O banco central pode imprimir quanto dinheiro quiser. Mas ele também se preocupa em não imprimir demais. De fato, geralmente nos dizem que é por isto que os bancos centrais independentes existem, em primeiro lugar. Se governos pudessem imprimir dinheiro por conta própria, eles com certeza fariam uma tiragem grande demais, e a inflação resultante jogaria a economia no caos. Instituições como o Banco da Inglaterra e a Reserva Federal dos EUA foram criadas para regular cuidadosamente o provisionamento de dinheiro para prevenir inflação. É por isto que eles são proibidos de investir diretamente no governo, por exemplo comprando títulos do tesouro, mas em vez disso investem na atividade econômica privada que o governo meramente tributa.

É este entendimento que permite que continuemos falando de dinheiro como se ele fosse um recurso limitado como bauxita ou petróleo, dizendo que “simplesmente não há dinheiro” para investir em programas sociais, falando da imoralidade da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. ou dos gastos públicos causando “efeito deslocamento” [1] ao setor privado. O que o Banco da Inglaterra admitiu esta semana é que nada disto é verdadeiro. Para citar um de seus resumos iniciais: “Em vez de bancos recebendo depósitos quando famílias poupam e depois emprestando a elas, os empréstimos bancários criam depósitos” … “em tempos normais, o banco central não fixa a quantidade de dinheiro em circulação, e o dinheiro do banco central tampouco é ‘multiplicado’ em mais empréstimos e depósitos.”

Em outras palavras, tudo o que sabemos está simplesmente errado - é ao contrário. Quando bancos fazem empréstimos, eles criam dinheiro. Isto é porque o dinheiro é na verdade uma nota promissória. O papel do banco central é presidir sobre uma ordem legal que efetivamente garanta aos bancos o direito exclusivo de criar notas promissórias de um certo tipo, do tipo que o governo reconhecerá como moeda de curso forçado pela sua disposição em aceitá-las em pagamentos de impostos. Não há de fato limite algum no quanto os bancos podem criar, contanto que eles possam encontrar alguém disposto a pegar emprestado. Eles nunca serão pegos de calças curtas, pelo motivo simples de que credores, de modo geral, não pegam o dinheiro e o colocam debaixo dos colchões; em última instância, qualquer dinheiro emprestado por um banco irá simplesmente para algum banco novamente. Portanto, para o sistema bancário como um todo, todo empréstimo simplesmente torna-se outro depósito. E mais, enquanto os bancos precisarem adquirir fundos do banco central, eles podem pegar emprestado o quanto quiserem; tudo o que este faz é estabelecer a taxa-base de juros, o custo do dinheiro, não a sua quantidade. Desde o início da recessão, os bancos centrais dos EUA e da Grã-Bretanha reduziram este custo para quase zero. De fato, com a “flexibilização quantitativa” (quantitative easing) eles têm efetivamente bombeado tanto dinheiro quando eles puderem aos bancos, sem produzir nenhum efeito inflacionário.

Isto significa que o limite real de quantidade de moeda em circulação não é o quanto o banco central está disposto a emprestar, mas o quanto o governo, as empresas e cidadãos normais estão dispostos a pegar emprestado. O gasto governamental é a principal força indutora disto tudo (e você verá que o artigo admite, se ler cuidadosamente, que o banco central de fato investe no governo, no final das contas). Portanto não é uma questão de causar “efeito deslocamento” no investimento privado. É exatamente o oposto.

Por que o Banco da Inglaterra de repente admitiu tudo isto? Bem, uma razão é porque é obviamente verdadeiro. O papel do Banco é de fato manter o sistema funcionando e, recentemente, o sistema não tem funcionado especialmente bem. É possível que ele tenha chegado à conclusão de que manter a versão da terra da fantasia da economia, que se provou tão conveniente aos ricos, é simplesmente um luxo com o qual ele não pode mais arcar.

Mas, politicamente, isto é assumir um enorme risco. Apenas considere o que poderia acontecer se titulares de hipotecas percebessem que o dinheiro que o banco lhes empresta não é, de fato, a poupança de uma vida de um pensionista cuidadoso, mas algo que o banco simplesmente enxertou na realidade através da posse de uma varinha mágica que nós, o povo, demos a ele.

Historicamente, o Banco da Inglaterra tem tendido a ser uma ovelha-guia, vigiando posições aparentemente radicais que poderiam tornar-se novas ortodoxias. Se isto é o que está acontecendo aqui, nós podemos estar em breve ao ponto de aprender se Henry Ford estava certo.

Fonte artigo original: The Guardian
Fonte traducção: POEMA


Notas

[1O Efeito de “Crowding Out” (em português, “Efeito Deslocamento”) corresponderia, segundo a abordagem neoclássica/ortodoxa, grosso modo, a uma redução no investimento privado sempre que o Estado aumente os seus gastos.

David Graeber

foi um militante, antropólogo e professor leitor de antropologia social, no Colégio Goldsmith da Universidade de Londres e autor do livro Debt, 5.000 Anos de História. Morreu a 2 de Setembro 2020.

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