Declaração da Via Campesina

Acabemos com a crise alimentar! A soberania alimentar é urgente!

26 de Julho de 2022 por La Via Campesina


«Globalizemos a luta, globalizemos a esperança»; este slogan manteve-nos unidos ao longo dos 30 anos de história da Via Campesina. Guiou-nos na luta incansável contra a intervenção da Organização Mundial do Comércio (OMC), contra a comercialização dos alimentos ao serviço das grandes empresas capitalistas que transformaram os alimentos em mercadorias, e na luta pela soberania alimentar. Hoje, colocam-se novos desafios. As crises de fome rebentaram em diversos países. Perante isto, a Via Campesina propõe-se partilhar a sua análise da situação e as suas reivindicações para uma mudança urgente e radical das políticas internacionais e nacionais.



 Crise simultânea…

Vivemos hoje, no mundo inteiro, no meio de crises simultâneas, graves, intensas e prolongadas, com mudanças muito rápidas na correlação de forças e na luta política. Uma crise económica profunda e estrutural que afecta os principais países do centro capitalista, bem como os países pobres e em desenvolvimento. Classificamos esta crise como estrutural, porque ela resulta da organização dos sistema e não é possível ultrapassá-la sem atacar os fundamentos do próprio capitalismo. Esta crise manifesta-se e aprofunda-se na economia, nas desigualdades sociais, nos limites da democracia burguesa, na ineficácia do Estado, no peso insustentável da dívida pública, no ataque à soberania dos povos e numa verdadeira crise dos valores civilizacionais. Daí que a barbárie emirja em diversas regiões do mundo, sob a forma de ódio, violência, guerras e retóricas fascistas.

 Crise ambiental

Vivemos uma crise ambiental que faz parte da crise estrutural. Ela é agravada pelas agressões quotidianas que os capitalistas fazem à natureza, intensificadas com a crise, ao tentarem privatizar os bens comuns e, em particular, apropriando-se dos minérios, da água, das florestas, da biodiversidade, para os transformar em mercadorias e obter lucros extraordinários, rendimentos que não conseguiriam obter nas fábricas, no comércio ou mesmo na especulação Trading
especulação
Operação de compra e venda de produtos financeiros (acções, futuros, produtos derivados, opções, warrants, etc.) realizada na mira de obter um lucro a curto prazo.
financeira.

Por isso a conferência COP26, convocada para discutir a crise climática, foi um falhanço: os capitalistas não querem renunciar aos seus lucros para salvar a natureza e o planeta. Em vez disso, a única coisa que pretendem fazer é criar mecanismos de crédito de carbono, para aumentarem ainda mais os seus lucros. O nosso planeta já estava em estado de alerta; com o desaparecimento de numerosas espécies, a subida das temperaturas e o dióxido de carbono na atmosfera, os próprios seres humanos encontram-se em perigo.

 Crise sanitária

À crise estrutural do capitalismo que já estava em curso, vem juntar-se o aparecimento do covid-19, que gerou enormes perturbações e aumentou as desigualdades no mundo inteiro.

As pessoas com baixos rendimentos são as mais vulneráveis ao covid-19, tanto porque a maioria dos governos não forneceu meios suficientes para que as pessoas pudessem ficar em casa, de modo que as mais pobres tiveram de continuar a trabalhar e enfrentar o vírus, como em virtude das enormes desigualdades de acesso aos serviços de saúde, aos dispositivos de protecção (como as máscaras ou o gel hidroalcoólico) e às vacinas. Esta desigualdade manifestou-se tanto no seio de cada país, como a nível internacional, pois as grandes indústrias médicas e farmacêuticas obedecem à pura lógica do lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). e não à de salvar vidas, e encaminham os medicamentos apenas para os países ricos.

Assim, a crise agrava-se em todas as suas dimensões económicas, sociais e ambientais. Em vez de atacar as causas reais da crise, ou seja o próprio sistema, os capitalistas aceleram a destruição da natureza para produzirem ainda mais bens e fazem pagar a factura da crise aos trabalhadores e trabalhadoras, retiram-lhes direitos, aumentam a exploração e a repressão, reduzem os salários, etc.

 As guerras e a crise geopolítica

Acresce a tudo isto que estamos no meio de várias guerras: no Iémene, na Palestina, na Síria, na Líbia e agora também na Ucrânia. O aparecimento da guerra na Ucrânia levanta sérias ameaças geopolíticas, tanto na Europa como no resto do mundo.

Para a Via Campesina, o mais importante em tempo de guerra é a defesa dos princípios que nos trouxeram politicamente até aos dias de hoje e que são determinantes e fundamentais para a nossa posição. Esses princípios estão inscritos na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas zonas rurais. O primeiro é a defesa intransigente da vida e da paz. O segundo é a defesa da soberania dos povos, contra as guerras e contra a destruição das estruturas sociais.

A principal consequência destas guerras é a perda de numerosas vidas humanas, levadas por razões quase sempre sem relação com a sua vida quotidiana. Milhões de pessoas são mutiladas pela guerra, tanto física como psicologicamente por razões que têm a ver com a perda da sua família e das suas amizades, a destruição do seu espaço vital e o sentimento de medo e a frustração por terem de deixar a sua terra, sem nada, deixando para trás tudo quanto tinham construído, para fugirem à guerra e tentarem salvar a própria vida e a vida das suas famílias.

O mundo sofrerá consequências a diversos níveis, como seja o agravamento da crise económica, que já conhecemos desde 2008, mas que com a guerra tende a intensificar-se. Isto trará sem dúvida consequências directas e indirectas em numerosos domínios, mas sobretudo na produção alimentar. Isto significa uma crise de aprovisionamento, um aumento dos preços dos bens alimentares de base, uma subida da inflação e um possível aumento do valor do dólar. A tendência é que a crise económica alastre a todos os países, à medida que a guerra se agrava e se prolonga. É costume dizer-se: «sabemos quando uma guerra começa, mas não podemos predizer quando e como terminará».

 … a caminho de uma possível crise alimentar mundial

Ainda é cedo para predizer as consequências da guerra, na Europa e fora dela, em matéria de política, economia e conflitos geopolíticos, e na agricultura.

No entanto, todas estas crises têm graves consequências nos sistemas alimentares do mundo inteiro, principalmente porque os governos, as empresas transnacionais e as instituições internacionais deram prioridade ao desenvolvimento da importação e exportação de produtos alimentares e agrícolas, em vez de apoiarem sistemas alimentares locais e nacionais estáveis, com vista a produzirem uma alimentação sã para as populações. Isto criou uma dependência em relação aos mercados internacionais.

Ainda hoje mais de 85 % da produção agrícola não entra nas trocas internacionais. O que estamos a viver é uma crise do sistema alimentar capitalista mundializado e industrializado, enquanto os sistemas alimentares camponeses locais dão provas de resiliência.

Actualmente a crise não está relacionada com uma penúria alimentar mundial, mas sim com a especulação sobre os preços. Os países que se tornaram dependentes das importações alimentares têm maiores dificuldades em pagar os preços muito elevados a que os cereais são actualmente vendidos nos mercados internacionais. Infelizmente, podemos afirmar que a ganância do capital pode levar a uma crise na distribuição dos alimentos no mundo e certamente ao aumento da fome, sobretudo nos países que já sofrem de carestia. A agricultura mundial produz em quantidade suficiente para resistir a um período de crise mais prolongado. O problema não está na falta de alimento, mas sim no facto de as grandes empresas capitalistas que dominam o mercado financeiro Mercado financeiro Mercado de capitais a longo prazo. Inclui um mercado primário (o das emissões) e um mercado secundário (o da revenda). A par dos mercados regulamentados encontramos mercados fora da bolsa, onde não existe a obrigação de satisfazer regras e condições mínimas. e de distribuição mundial terem transformado o comércio dos produtos alimentares e agrícolas num mercado altamente especulativo. A maior parte das matérias-primas negociadas a nível internacional é objecto de contratos a termo [o chamado mercado de futuros] que podem ser trocados no mercado bolsista várias centenas de vezes por dia. O preço a que esses produtos são por fim vendidos aos países que deles necessitam para alimentar a população não tem qualquer relação com os verdadeiros custos de produção, nem com o poder de compra dos países importadores.

Por outro lado, numa tentativa cínica de extrair lucro da guerra na Ucrânia, os EUA, o Canadá e a União Europeia apelam a um aumento sem precedentes da produção cerealífera, não para alimentar as populações dos países importadores de bens alimentares, mas sim para conquistar novos mercados que anteriormente eram aprovisionados pela Rússia ou pela Ucrânia.

A maior parte das políticas que asseguravam a protecção contra as crises internacionais (catástrofes naturais, pandemias, guerras ou conflitos internacionais, etc.), como sejam a constituição de stocks públicos estratégicos, o controlo regulamentar dos stocks, a regulação dos mercados ou outras políticas necessárias, foram progressivamente desmanteladas ao longo da última década sob pressão do FMI, do Banco Mundial, da OMC e dos acordos bilaterais de livre-comércio. Estas estratégias de protecção face às crises alimentares, que são parte integrante dos procedimentos estratégicos de defesa da soberania nacional, sempre foram uma tarefa dos estados. No entanto, o neoliberalismo, enquanto modelo de desenvolvimento capitalista, aplicado na maioria das nações ao longo das décadas de 1980 e 1990, promoveu, em nome da mundialização económica, a abertura total das fronteiras para a livre circulação das mercadorias controladas pelas grandes empresas capitalistas e a privatização das estruturas de armazenagem e distribuição.

No seguimento deste processo, a maioria das nações ficou refém do mercado e dos interesses das grandes empresas transnacionais, que controlam a produção, o armazenamento, a industrialização, o financiamento e a distribuição do mercado alimentar mundial. O armazenamento e controlo dos produtos alimentares é controlado pelo mercado, ao serviço do capital; por isso nos encontramos perante o desafio de retomar em todos os países a construção de stocks provenientes da agricultura camponesa, assim como a comercialização dos alimentos entre países, que deve ser objecto de novos parâmetros e regulamentos.

Enquanto o agronegócio se orienta para a digitalização da agricultura com a tecnologia 4.0, obtivemos em 2018 a aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses e camponesas e outras pessoas que trabalham nas zonas rurais. Este momento histórico permite denunciar do esgotamento do modelo de produção baseado no pacote tecnológico e apresentar os camponeses/as como alternativa no presente e no futuro. Produzir alimentos sãos, proteger a natureza e criar novas relações sociais nos campos, uma vida digna, a soberania alimentar e a soberania dos povos. Devemos ter presente que as novas tecnologias geram desemprego e expulsam os camponeses/as das terras, provocando migração forçada e miséria.

 As propostas da Via Campesina para fazer face à crise alimentar actual e avançar para a soberania alimentar

Face a este contexto dramático, a Via Campesina exprime exigências e propostas enérgicas para fazer face à crise, tanto a curto como a longo prazo.

Exigimos uma acção imediata visando:

  • O fim da especulação sobre os produtos alimentares e a suspensão da cotação de produtos alimentares na bolsa de valores. O mercado de futuros das matérias-primas agrícolas deve ser proibido imediatamente. O preço dos produtos alimentares sujeitos ao comércio internacional deve estar ligado aos custos de produção e respeitar os princípios do comércio justo, tanto para os produtores/as, como para os consumidores/as;
  • O fim do controlo da OMC sobre o comércio alimentar, assim como o fim dos tratados de livre-comércio. Em particular, as regras da OMC que impedem os países de constituir reservas alimentares públicas e regulamentar os preços e os mercados devem ser imediatamente suspensas, a fim de que os países possam desenvolver as políticas públicas necessárias para apoiar os pequenos produtores/as neste difícil contexto;
  • Uma reunião de urgência do comité de segurança alimentar e a criação de um novo organismo internacional encarregado de promover negociações transparentes dos tratados sobre produtos de base entre os países exportadores e importadores, a fim de que os países dependentes das importações de produtos alimentares possam ter acesso a alimentos a preços comportáveis;
  • A proibição de utilizar produtos agrícolas para produzir agrocarburantes ou energia. A alimentação deve ter prioridade absoluta em relação aos carburantes;
  • Uma moratória mundial para o reembolso da dívida pública nos países mais vulneráveis. No contexto actual, fazer pressão sobre certos países muito vulneráveis para que reembolsem a dívida é absolutamente irresponsável e conduz a uma crise alimentar. Exigimos o fim das pressões exercidas pelo FMI para desmantelar as políticas públicas nacionais e os serviços públicos. Exigimos a anulação da dívida pública externa ilegítima nos países em desenvolvimento.

Exigimos mudanças radicais nas políticas internacionais, regionais e nacionais, a fim de reconstruir a soberania alimentar através de:

  • Uma mudança radical da ordem comercial internacional. A OMC deve ser desmantelada. Um novo enquadramento internacional para o comércio e a agricultura, baseado na soberania alimentar, deve abrir as vias para o desenvolvimento das agriculturas camponesas locais e nacionais e garantir uma base estável para a produção alimentar relocalizada e o apoio aos mercados locais e nacionais dirigidos por camponeses/as. O sistema comercial internacional deve ser justo e basear-se na cooperação e na solidariedade, e não na concorrência e na especulação;
  • A promoção de uma reforma agrária popular e global, para pôr fim ao açambarcamento da água, das sementes e das terras por parte de empresas transnacionais, e para garantir aos pequenos produtores/as direitos justos sobre os recursos produtivos. Protestamos contra a privatização e o açambarcamento dos ecossistemas e dos recursos naturais por parte de interesses privados, com o pretexto de proteger a natureza, por via dos mercados de carbono ou outros programas de compensação da biodiversidade, que não têm em conta as pessoas que vivem nos territórios e cuidam dos respectivos recursos há gerações;
  • Uma mudança radical em direcção à agroecologia, a fim de produzir uma alimentação sã e em quantidade suficiente para o conjunto da população. Devemos ter presente que a crise climática e ambiental é o nosso grande desafio no contexto actual e que devemos dar a devida importância ao desafio de produzir alimentos suficientes e de qualidade, e ao mesmo tempo reavivar a biodiversidade e reduzir drasticamente as emissões de gases com efeito de estufa;
  • Uma regulamentação eficaz do mercado de insumos (crédito, fertilizantes, pesticidas, sementes, combustíveis, etc.) para apoiar a capacidade dos camponeses/as para produzirem alimentos, mas também para assegurar uma transição justa e bem planificada para práticas agrícolas mais agroecológicas;
  • Governação alimentar baseada nos interesses do povo, não nos interesses das empresas transnacionais. Aos níveis mundial, regional, nacional e local é necessário pôr fim ao poderio das multinacionais sobre a governação alimentar e colocar os interesses da população no centro. Deve ser dado aos pequenos produtores e às pequenas produtoras um papel chave em todos os órgãos de governação alimentar;
  • A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos camponeses/as deve ser transformada num instrumento juridicamente vinculativo para a defesa das populações rurais;
  • O desenvolvimento das capacidades de armazenamento público em cada país. A estratégia de constituição de reservas alimentares deve ser posta em marcha, tanto ao nível nacional como através da criação e apoio público de reservas alimentares ao nível comunitário, com alimentos produzidos localmente a partir de práticas agrícolas agroecológicas;
  • Uma moratória mundial sobre as tecnologias perigosas que ameaçam a humanidade, como a geoengenharia, os OGM e a carneartificial. A promoção de técnicas baratas, que aumentam a autonomia dos camponeses/as e as sementes camponesas;
  • O desenvolvimento de políticas públicas para criar novas relações entre as pessoas que produzem os alimentos e as pessoas que os consomem, as pessoas que vivem nas zonas rurais e as que vivem nas zonas urbanas, garantindo preços justos definidos com base no custo de produção, permitindo um rendimento decente para todas as pessoas que produzem no mundo rural e um acesso justo a uma alimentação sã para os consumidores/as;
  • A promoção de novas relações de género baseadas na igualdade e no respeito, tanto para as pessoas que vivem no campo como para a classe operária urbana. A violência dirigida às mulheres deve acabar já.

Para consultar ou descarregar a declaração em pdf:
em francês: https://viacampesina.org/fr/wp-content/uploads/sites/4/2022/06/LVC-analysefoodcrisis_FR-1.pdf
em castelhano: https://viacampesina.org/es/wp-content/uploads/sites/4/2022/06/LVC-analysefoodcrisis_FR-1.pdf

La Via Campesina | Bagnolet | 03 de junho de 2022

Tradução de Rui Viana Pereira


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