A ocupação israelita começou nos anos quarenta, quando ainda não existia o Hamas. A organização islâmica foi fundada em 1987. Em 2001 lançou o seu primeiro míssil, 53 anos depois do início da ocupação, expulsão e discriminação contra os palestinianos.
Não, o conflito israelo-palestiniano não é um simples conflito. É a história de uma ocupação ilegal por parte de Israel e de políticas discriminatórias que constituem, de facto, um apartheid contra a população palestiniana. Assim o denunciaram este ano organizações de prestígio como Human Rights Watch ou a organização israelita de direitos humanos B’tselem. Por isso centrar o foco exclusivamente em Gaza equivale a centrar o foco apenas em uma das partes desse erradamente chamado conflito.
Gaza é o cenário escolhido por Israel para encenar o confronto e a repressão. É o palco onde mostra os seus golpes chocantes. É o lugar para onde quer que todo o mundo olhe, de forma a poder reduzir a realidade a uma máxima que diz mais ou menos o seguinte: a única coisa que fazemos é lutar contra o Hamas, que é uma organização terrorista que tem de ser bombardeada porque usa mísseis que matam civis. Assim pretende Israel justificar o injustificável: os seus massacres a civis, incluindo menores, os seus ataques colectivos contra habitações e centros de imprensa (apenas em três dias destruiu as instalações de mais de 20 meios de comunicação em Gaza, violando a lei internacional).
A assimetria é inquestionável. Segundo dados das Nações Unidas, entre 2008 e 2020 houve 5.590 palestinianos mortos e 115.000 feridos por ataques israelitas. No mesmo período houve 251 mortos israelitas e 5.600 feridos por ataques palestinianos. Entre 2000 e 2014, 87 % dos mortos foram palestinianos e 13 % israelitas, segundo os dados da B’tselem. Na ofensiva actual já há, à data em que escrevo estas linhas [17-05-2021], mais de 200 palestinos mortos, dos quais 60 menores, e 10 israelitas.
Há uma frase célebre da antiga primeira-ministra israelita Golda Meir: «Não existe ovo palestiniano. Isto não é como se nós tivéssemos vindo expulsá-los das suas casas e apoderar-nos do seu país. Eles não existem». «Uma terra sem povo para um povo sem terra» é a velha premissa que parte da negação da existência de um povo que habitava e habita essas terras há muitos séculos.
Nos anos 40 do século XX foram criadas organizações terroristas que se definiam a si mesmas como judias, com o objectivo de pôr fim ao mandato britânico sobre a Palestina e adquirir terrenos pertencentes aos palestinianos. Para isso planearam numerosos atentados, como o que assassinou o primeiro mediador na zona das Nações Unidas, o diplomata sueco Folke Bernadotte ou o perpetrado contra o hotel King David, onde morreram 92 pessoas, entre as quais 28 britânicas.
Nos anos 40 a maioria das pessoas que povoavam a Palestina eram palestinianos, árabes, uma pequena comunidade judia que há séculos habitava na zona e uns milhares de judeus europeus sionistas que tinham chegado em finais do século XIX, fugidos das perseguições e em busca de um território próprio. Essa ideia de um país próprio não se materializaria até ao final da II Guerra Mundial, quando dezenas de milhares de judeus provenientes de diversos lugares do planeta ali chegaram para construir o Estado judaico. Muitos deles tinham sobrevivido ao Holocausto. Essa ocupação do território alheio desembocou na criação do Estado israelita em 1948, aceite por umas Nações Unidas afectadas por um enorme sentimento de culpa pelos acontecimentos da II Guerra Mundial. Esse Estado foi desenhado pela ONU através de um plano de participação que atribuía 54 % da Palestina à comunidade judaica (ali chegada na sua maioria depois do Holocausto) e o resto aos palestinianos. Jerusalém mantinha-se como um enclave internacional.
Mas antes da criação do Estado israelita as forças armadas clandestinas judias – assim se autodenominavam – ocuparam territórios palestinianos que a ONU não lhes tinha atribuído. Para isso expulsaram milhares de palestinianos e assassinaram centenas, por meio do chamado Plan Dalet, que visava controlar a faixa que une Jerusalém a Telavive. Aquilo foi uma limpeza étnica, definida como tal por historiadores israelitas como Ilan Pappé, com o propósito de erguer um Estado de maioria judia.
Os massacres perpetrados em Deir Yassin ou Tantura são disso exemplo. Como escreveu o historiador israelita sionista Benny Morris, «visto em perspectiva, torna-se evidente que o que aconteceu na Palestina em 1948 foi uma espécie de limpeza étnica perpetrada por judeus nas zonas árabes». Várias aldeias palestinas foram destruídas e o caminho para Telavive ficou nas mãos dos israelitas.
Depois, quando em maio de 48 foi anunciada a criação de Israel, as nações árabes vizinhas declararam guerra ao novo país, temerosas de que este pretendesse alcançar um sonho que permanece na mente de uma parte do sionismo actual: o de construir a Grande Israel, anexando territórios pertencentes ao Egipto e à antiga Transjordânia, hoje Síria. Também pensaram os países vizinhos que se Israel podia ocupar territórios palestinos, porque não os seus?
Na guerra de 48 as forças israelitas, superiores em força e em capacidade estratégica, aproveitaram para ocupar mais espaço e expulsaram centenas de milhares de palestinianos. Foi assim que Israel passou da posse de 54 % de território atribuídos pela ONU para 78 %. Mais de 700.000 palestinianos foram expulsos das suas terras entre 1947 e 1948.
Posteriormente, na Guerra dos Seis Dias em 1967, Israel ocuparia 22 % do território restante: Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste, provocando novas vagas de refugiados. Também se apoderaram ilegalmente do Sinai egípcio e dos montes Golã sírios. Actualmente vivem na Cisjordânia 450.000 colonos judeus.
Após a guerra de 48 muitos palestinianos tentaram regressar aos seus lugares, mas as tropas israelitas impediram-nos, apesar de em dezembro de 1948 as Nações Unidas terem aprovado a Resolução 194, até hoje nunca cumprida, confirmada em repetidas ocasiões e ratificada na Resolução 3236 de 1974, que estabelecia o direito dos refugiados regressarem aos seus lugares de origem ou receberem indemnizações.
Muitos dos palestinianos que actualmente vivem em Gaza são refugiados, expulsados ou descendentes dos expulsados em 1948. Só puderam permanecer dentro de Israel, em muitos casos como deslocados, cerca de 150 mil palestinianos, ou seja 15 % da população, que em 1952 obtiveram a cidadania. São os chamados árabes israelitas.
Para que Israel pudesse ser um Estado de maioria judaica, o primeiro governo, com David Ben Gurion como primeiro-ministro, organizou a recolonização das terras e a gestão dos chamados bens imóveis «abandonados». Para tal aprovou em 1950 a Lei dos Bens Ausentes, que administrou a passagem para mãos judias das habitações dos palestinianos, não só os que tinham sido expulsos para fora das fronteiras israelitas, mas tabém dos que foram deslocados dentro das fronteiras do Estado israelita.
Também foram aprovadas outras leis que proibiram a venda ou transferência de terras para garantir que não caíssem em mãos palestinas, e permitiram decretar a expropriação de bens por interesse público ou declarar uma área como «zona militar fechada», o que impedia os proprietários da mesma de reclamar a sua posse. Foi assim que 64.000 habitações de palestinianos já tinham passado para mãos judias em 1958.
Outra lei fundamental e uma das mais controversas é a Lei do Retorno, que confirma a insistência no carácter judaico do Estado através da concessão de privilégios aos judeus. Esta lei concede o direito de cidadania a todos os judeus do mundo, aos filhos, netos e cônjuges dos judeus, assim como a quem se converta ao judaísmo. No entanto, não inclui os judeus por nascimento mas convertidos a outra religião e de facto serviu para negar a cidadania a vários judeus convertidos ao cristianismo.
Ou seja, um palestino nascido antes de 1948 na região de Telavive cujo pai, avô, bisavô ou tetravô tenham nascido ali não pode ir viver em Telavive, nem podem os seus descendentes, mas um português que se converta ao jadaísmo tem direito a residir em Israel e obter a cidadania. Além disso, é provável que possa aceder a ajudas económicas do Estado para financiar estudos ou a adaptação à sua nova morada.
Em 2003 foi acrescentado mais um degrau a esta política exclusiva, com a aprovação da Lei da Cidadania e Entrada em Israel, que estipula que os palestinos da Cisjordânia ou de Gaza menores de 35 anos e as palestinas da Cijordânia ou de Gaza menores de 25 anos não podem residir em território israelita, ainda que se casem com um/uma israelita. No entanto, qualquer europeu que contraia matrimónio com um cidadão ou cidadã israelita terá direito tanto a residência como a cidadania.
Nada do que ocorre em Israel e nos Territórios Ocupados Palestinos pode ser entendido sem ter em conta este objectivo: manter a maioria judaica. Para isso Israel exclui o conceito de cidadania universal. Se aceitasse como cidadãos os palestinianos de Gaza e Cijordânia – territórios que controla e ocupa – a sua concepção como Estado judaico ficaria em perigo, já que a população judaica deixaria de ser maioritária. Esta questão demográfica explica a limpeza étnica realizada no passado e o apartheid aplicado no presente.
A última ofensiva israelita, ainda em curso, ocorre num contexto político delicado para o Governo actual. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está a braços com um processo judicial por corrupção de que pretende escapar. Após as últimas eleições não conseguiu formar governo, pelo que o presidente do país encomendou essa tarefa ao líder do partido Há um Futuro, Yair Lapid, que estava em plenas negociações em busca de um acordo quando estalou a ofensiva. A situação actual em Gaza atrasou as hipóteses desse novo Executivo israelita e permitiu que o primeiro-ministro Natenyahu se mantivesse no seu posto mais algum tempo.
Por outro lado, a Autoridade Nacional Palestiniana deveria ter realizado eleições este mês, mas voltou a adiá-las, com a desculpa de que Israel não permitiria que os palestinos de Jerusalém Leste fossem votar. O presidente palestiniano Mahmoud Abbas, do partido Al Fatah, foi eleito em 2005 para um mandato de quatro anos, que devia ter concluído em 2009.
Há outros assuntos centrais para a compreensão do que se passa nos dias correntes: a vontade dos colonos judeus de expulsar das suas residências várias famílias palestinas que habitam no bairro Sheikh Jarrah, na Jerusalém Leste ocupada e o ataque israelita à mesquita de Al Aqsa quando os seus fregueses aí se encontravam a rezar tranquilamente de noite, durante o Ramadão.
Ambos os episódios provocaram uma reacção de solidariedade e união da população palestiniana da Cisjordânia e também da população árabe israelita, que saiu à rua para se manifestar em várias cidades do Estado hebreu, coisa que não acontecia há bastante tempo. Por sua vez, o Hamas lançou [uma semana antes de 17-05-2021] um ultimato a Israel, exigindo a evacuação tanto de Al Aqsa como do bairro Sheikh Jarrah.
O que se passa em Israel e nos Territórios Ocupados não é um conflito simétrico, entre outras coisas porque de um lado se encontra um Estado, enquanto o outro lado não dispõe nem de Estado nem de exército. Os números de mortos e feridos nas últimas décadas falam por si.
Os danos causados à população palestina são inquestionáveis. O Hamas lançou mísseis que mataram civis israelitas, o que é terrível. Mas isso não justifica nenhuma das violações sistemáticas contra os direitos humanos cometidas por Israel quotidianamente. O «conflito» não deriva de um confronto entre religiões, mas sim de um colonialismo em pleno século XXI e da reacção a ele.
A mobilização civil da população palestiniana nas últimas semanas está a dar uma lição aos seus próprios dirigentes e dificulta o êxito da narrativa israelita que pretende centrar tudo na questão de Gaza e do Hamas, afirmando que toda a Faixa é um alvo potencial justificável. Não, os palestinianos não são só Hamas. Alguns apoiam esta organização, porque entendem que é o único recurso que têm para responder à ocupação e ao apartheid. Outros opõem-se a ela. Neste capítulo ressalta a reacção de milhares de cidadãos palestinianos dentro das fronteiras de Israel que saíram à rua em cidades como Acre, Lydd, Ramala ou Haifa e a acção coordenada de protesto da população palestiniana.
Israel não se limita, como afirma, a actuar em resposta aos projécteis do Hamas. O que se passa na zona actualmente não pode ser entendido nem explicado sem ter em conta a questão demográfica, a ocupação e o partheid. A ocupação israelita começou nos anos quarenta do século passado, quando o Hamas não existia. Desde aí até à criação da organização islâmica passaram 39 anos. Durante esse período vários grupos protagonizaram a resistência palestiniana, todos eles de carácter laico. O Hamas só foi fundado em 1987, no calor da Primeira Intifiada palestiniana. Em 2001 lançou o seu primeiro projéctil, 53 anos depois do início da ocupação, expulsão e discriminação contra os palestinos.
Tradução: Rui Viana Pereira
Fonte: El Diario
es una periodista y escritora española especializada en información internacional, Oriente Medio y Derechos Humanos. Es cofundadora de eldiario.es.