Série: Os Estados ao serviço dos bancos sob o pretexto «Too big to fail» (parte 1)
26 de Agosto de 2014 por Eric Toussaint
Resumo:Desde a eclosão da crise bancária em 2007, os bancos centrais dos países mais industrializados emprestam massivamente aos bancos a taxas de juro
Juro
Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada.
muito baixas, a fim de evitarem falências, permitindo que os bancos economizem somas consideráveis em termos de reembolso dos juros.
A Fed compra massivamente aos bancos norte-americanos produtos estruturados hipotecários. O Banco Central
Banco central
Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE).
Europeu (BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
) não compra, até agora, produtos estruturados, mas aceita que os bancos os usem como colateral, que é como quem diz como garantia, dos empréstimos que lhes concede.
Quanto aos governos, concedem garantias e injectam massivamente capitais, a fim de recapitalizarem os bancos.
Os bancos sistémicos
Bancos sistémicos
Estes bancos são chamados sistémicos por causa do seu peso e do perigo que a falência de um deles representa para o sistema financeiro privado a nível internacional.
sabem que, em caso de surgirem problemas, graças à sua dimensão e ao risco que representa a falência de um deles («too big to fail»), podem contar com o apoio dos Estados que os alimentam sem pestanejar.
Os governos pedem emprestado nos mercados financeiros, emitindo títulos de dívida pública
Dívida pública
Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social.
soberana. Confiam na venda desses títulos aos grandes bancos privados. Por outro lado, os bancos beneficiam de reduções de impostos sobre os seus rendimentos.
Além disso, no seio da Europa, os bancos aproveitam o monopólio do crédito destinado ao sector público.
A partir de 2007, os governos e os bancos centrais dos países ocidentais mais industrializados, mergulhados na maior crise económica desde os anos trinta, deram prioridade absoluta ao resgate dos bancos privados e ao sistema financeiro que os rodeia (seguradoras, fundos de investimento, fundos de pensões privados, …) [1]. O resgate dos bancos é feito à custa da esmagadora maioria da população (os 99 %). Os poderes públicos tudo fizeram para manterem os principais privilégios dos bancos privados e para conservarem intacto o poder destes. O custo do resgate é enorme: explosão da dívida pública, perda de receitas fiscais, forte restrição dos empréstimos às famílias e às PME (pequenas e médias empresas), continuação das actividades especulativas e aventureiras que, nalguns casos, provocam a necessidade de novos resgates de elevado montante.
Os empréstimos massivos dos bancos centrais aos bancos privados
Desde a eclosão da crise bancária, em 2007, os grandes bancos centrais dos países mais industrializados (BCE, Banco de Inglaterra, Fed dos EUA, Banco Nacional Suíço, Banco do Japão) emprestam massivamente aos bancos, a taxas de juro baixas, a fim de evitarem falências. Sem essa linha de crédito ilimitado, uma grande parte dos bancos teria entrado em incumprimento de pagamentos, pois as fontes habituais de financiamento estancaram; os empréstimos interbancários deixaram de funcionar (os bancos desconfiavam uns dos outros); a venda de obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. bancárias é muito fraca e os empréstimos a curto prazo, assegurados pelos money market funds, são aleatórios (ver caixa). O total acumulado dos empréstimos dos bancos centrais aos bancos privados, desde 2007, ultrapassa muito largamente os 20 biliões de dólares. Como este maná de crédito funciona com uma taxa de juro muito baixa, isto permite aos grandes bancos, que dele beneficiam, economizar montantes consideráveis no que diz respeito ao reembolso dos juros.
O que são os money market funds? Os money market funds (MMF) são sociedades financeiras dos EUA e da Europa, pouco ou nada controladas e regulamentadas, porque não possuem licença bancária. Fazem parte da shadow banking Shadow banking banca paralela As actividades financeiras do shadow banking são realizadas principalmente por conta dos grandes bancos por sociedades financeiras criadas pelos próprios bancos. Estas sociedades financeiras – SPV (sociedade intermediária), money market funds, etc. – não recebem depósitos, o que lhes permite não estarem submetidas à regulamentação bancária. Por isso são utilizadas por grandes bancos a fim de escaparem aos regulamentos nacionais ou internacionais, nomeadamente aos da Comité de Basileia sobre fundos próprios e rácios prudenciais. O shadow banking é o complemento ou o corolário dos bancos universais. , a banca sombra. Em teoria, os MMF têm uma política prudente, mas a realidade é bem diferente. A administração Obama pretende regulamentá-los, porque em caso de falência de um MMF, o risco de ter de utilizar dinheiros públicos para os salvar é muito elevado. Os MMF suscitam grande inquietação, em razão dos consideráveis fundos que gerem e da queda da sua margem de lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). desde 2008. Em 2012, os MMF norte-americanos movimentavam 2,7 biliões de dólares de fundos, contra 3,8 biliões em 2008. Enquanto fundos de investimento, os MMF colectam capitais dos investidores (bancos, fundos de pensão, etc.). Esta poupança é depois emprestada a muito curto prazo, frequentemente de um dia para o outro, a bancos, empresas e aos Estados. Nos anos zero, o financiamento através dos MMF tornou-se um componente importante do financiamento a curto prazo dos bancos. Entre os principais fundos, encontramos o Prime Money Market Fund, criado pelo principal banco dos EUA, o JP Morgan, que geria, em 2012, 115 mil milhões de dólares. Nesse mesmo ano, o Wells Fargo, quarto banco dos EUA, geria um MMF de 24 mil milhões de dólares. O Goldman Sachs, quinto banco norte-americano, controlava um MMF de 25 mil milhões de dólares. No mercado dos MMF em euros, voltamos a encontrar as sociedades norte-americanas – JP Morgan (com 18 mil milhões de euros), Black Rock (11,5 mil milhões), Goldman Sachs (10 mil milhões) – e europeias, onde pontuam o BNP Paribas (7,4 mil milhões) e o Deutsche Bank (11,3 mil milhões), isto no que respeita ao ano de 2012. Certos MMF operam igualmente em libras esterlinas. Embora Michel Barnier, comissário europeu encarregado dos mercados financeiros, tenha anunciado a intenção de regulamentar o sector, até hoje nada foi feito. Mais uma declaração de intenções que deu em nada. [2] A agência de notação Moody’s calculou que, durante o período 2007-2009, 62 MMF tiveram de ser salvos da falência pelos bancos ou pelos fundos de pensões, que os tinham criado. Trata-se de 36 MMF que operam nos EUA e 26 na Europa, com um custo total de 12,1 mil milhões de dólares. Entre 1980 e 2007, 146 MMF foram salvos pelos seus promotores. Em 2010-2011, ainda segundo a Moody’s, 20 MMF foram salvos. [3] Isto mostra a que ponto podem os MMF pôr em perigo a estabilidade do sistema financeiro privado. |
Fora financiamentos directos, os bancos centrais utilizam outros meios para ir em socorro dos bancos privados.
Assim, a Fed compra massivamente aos bancos norte-americanos os produtos estruturados hipotecários (mortgage backed securities, MBS). Entre 2008 e inícios de 2014, a Fed comprou-os por um pouco mais de 1,5 biliões de dólares. [4] Em 2012-2013, comprou por mês aos bancos e às agências imobiliárias, [5] que garantem os créditos
Créditos
Montante de dinheiro que uma pessoa (o credor) tem direito de exigir a outra pessoa (o devedor).
hipotecários, 40 mil milhões de dólares desses produtos altamente tóxicos, a fim de lhes aliviar o fardo. Em finais de 2013, começou a reduzir estas compras que se elevavam, em março de 2014, a 35 mil milhões de dólares por mês. Em outubro de 2014, a Fed deterá 1,7 biliões de dólares de MBS, ou seja, cerca de 21 % do volume total desses produtos tóxicos [6] É gigantesco!
O BCE não compra produtos estruturados, mas aceita que os bancos os depositem como colateral, que é como quem diz garantia, dos empréstimos que lhes concede. No período entre 2010 e 2013, a quantidade de produtos estruturados (ABS) depositados pelos bancos no BCE oscilou entre 325 e 490 mil milhões de euros.
Além disso, o BCE compra obrigações (covered bonds), emitidas pelos bancos privados para se financiarem. [7] Trata-se duma ajuda muito importante do BCE aos bancos que estão em graves dificuldades para se financiarem nos mercados. Esta ajuda é pura e simplesmente silenciada nos media. Desde a eclosão da crise, o BCE comprou 76 mil milhões de covered bonds – 22 mil milhões no mercado primário e 54 mil milhões no mercado secundário. Note-se que no meio disto tudo o BCE comprou covered bonds que têm uma má notação (BBB-), o que significa que as agências de notação não tinham confiança na saúde dos bancos que as emitiram. Em 18 de março de 2014, o BCE possuía 52 mil milhões de euros de covered bonds dos bancos. É um montante muito considerável, quando comparado com o volume de emissões dos bancos. Em 2013, apenas somava 166 milhões de euros, uma queda de 50 % relativamente a 2011. [8]
Tradução: Rui Viana Pereira
Revisão: Maria da Liberdade
Eric Toussaint, docente na Universidade de Liège, preside ao CADTM Bélgica e é membro do conselho científico da ATTAC França. É autor dos livros Bancocratie, Aden, 2014, http://cadtm.org/Bancocratie; Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marselha, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010.
[1] No Japão, o governo e o banco central fizeram o mesmo a seguir ao rebentamento da bolha imobiliária e da crise bancária no início dos anos noventa. Ver Daniel Munevar, «Décennies perdues au Japon», in Damien Millet e Eric Toussaint, La dette ou la vie, Aden-CADTM, 2011, cap.15.
[2] Financial Times, «EU shadow banking plan rapped», edição de 26 de março de 2012; «MMF lose worth in low interest rate world», edição de 10 de setembro de 2012; «EU abandons reform on money market funds», edição de 10 de março de 2014.
[3] Financial Times, «20 money market funds rescued», edição de 21 de outubro de 2013.
[4] Fins de faneiro de 2014, o balanço da Fed era superior a 4 biliões de dólares: 2,228 biliões em títulos do Tesouro e 1,586 biliões em créditos hipotecários titularizados (MBS)
[5] Fannie Mae, Freddie Mac e Ginnie Mae.
[6] .Natixis, EcoHebdo, 25 de julho de 2014, n.º 29, http://cib.natixis.com/flushdoc.aspx?id=78192
[7] O banco Natixis, que é evidentemente, como todos os bancos, muito favorável a estas compras, publicou um relatório entusiástico sobre a questão em 2009: http://cib.natixis.com/flushdoc.aspx?id=46663
[8] A emissão de covered bonds pelos bancos, em 2013, foi a mais fraca desde 1996! Comparando com 2011, baixou mais de 50 %. Em 2011, a emissão de covered bonds elevou-se a 370 mil milhões de dólares, enquanto, em 2013, não chegou a 166 mil milhões de dólares. Ver Financial Times, «Europe covered bond issues slump», edição de 27 de novembro de 2013.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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