Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 23)

As contas do Banco Mundial

21 de Outubro de 2020 por Eric Toussaint


Em 2020, o Banco Mundial (BM) e o FMI fazem 76 anos. Estas instituições financeiras internacionais (IFI), criadas em 1944 e dominadas pelos EUA e seus aliados, agem sistematicamente contra os interesses dos povos, concedendo empréstimos aos estados com o fim de influir nas suas políticas. O endividamento externo foi e continua a ser utilizado como instrumento de submissão dos devedores.

Desde a sua criação, o FMI e o BM violaram pactos internacionais relativos a direitos humanos e nunca hesitaram, nem hesitam, em apoiar ditaduras.

É urgente fazer uma nova forma e descolonização, para sair do impasse em que as IFI e seus principais accionistas encurralaram o mundo. É preciso construir novas instituições internacionais.

Publicamos aqui uma série de artigos de Éric Toussaint, que descreve a evolução do Banco Mundial e do FMI desde a sua criação. Estes artigos foram extraídos do livro Banco Mundial: o Golpe de Estado Permanente, que pode ser consultado gratuitamente em francês ou em castelhano. Existe também uma edição inglesa.


  1. ABC do Banco Mundial
  2. ABC do Fundo Monetário Internacional (FMI) 
  3. As origens das instituições de Bretton Woods
  4. O Banco mundial ao serviço dos poderosos num clima de caça às bruxas
  5. Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco Mundial/FMI desde as origens até aos anos setenta
  6. SUNFED versus Banco Mundial
  7. Porquê o Plano Marshall?
  8. Porque não é reproduzível a anulação da dívida alemã de 1953 no caso da Grécia e dos países em desenvolvimento?
  9. A Supremacia dos Estados Unidos no Banco Mundial
  10. Banco Mundial/FMI : o apoio às ditaduras
  11. O Banco Mundial e as Filipinas
  12. O apoio do Banco Mundial à ditadura turca (1980-1983)
  13. O Banco Mundial e o FMI na Indonésia: Uma intervenção emblemática
  14. As mentiras teóricas do Banco Mundial
  15. Coreia do Sul e o milagre desvendado
  16. A armadilha do endividamento
  17. O Banco Mundial apercebe-se da chegada da crise da dívida externa
  18. A crise da dívida mexicana e o Banco Mundial
  19. O Banco Mundial e o FMI: As agências financeiras dos credores
  20. Os presidentes Barber Conable e Lewis Preston (1986-1995)
  21. A operação de sedução de James Wolfensohn (1995-2005)
  22. A Comissão Meltzer sobre as Instituições Financeiras Internacionais no Congresso dos Estados Unidos em 2000
  23. As contas do Banco Mundial
  24. De Paul Wolfowitz (2005-2007) a David Malpass (2020): os homens de mão do presidente dos EUA continuam à frente do Banco Mundial
  25. O FMI e o Banco Mundial em tempos de coronavírus: vira o disco e toca o mesmo
  26. O golpe de Estado permanente do Banco Mundial
  27. O Banco Mundial, o FMI e os direitos humanos

Desde que o Banco Mundial iniciou a sua actividade, em 1946, todos os anos, sem excepção, obteve um resultado operacional líquido positivo. Em 1963, o Banco Mundial é confrontado com benefícios tão significativos que o seu novo presidente, George Woods, que tinha sido, pouco tempo antes, presidente do banco First Boston, propôs à direcção do Banco distribuir dividendos pelos accionistas como qualquer banco que se preze [1]. A ideia é abandonada porque a direcção considera que a distribuição de dividendos daria uma muito má imagem do Banco perante os países em desenvolvimento endividados. Decidiu-se, então, transferir os lucros para as reservas do Banco. Em 2005, as reservas do Banco totalizavam 38,5 mil milhões de dólares.

Desde 1985, o rendimento [2] da principal agência do Banco, o BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), superou anualmente os mil milhões de euros. Resultados excepcionais foram atingidos em 1992 (1709 milhões de dólares de lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). ), em 2000 (1991 milhões) e, sobretudo, em 2003 (3021 milhões).

O Gráfico 1 indica a evolução do resultado operacional entre 1981 e 2005.


Como é que o Banco Mundial obtém lucros?

O BIRD obtém lucros através dos reembolsos efectuados pelos países devedores, principalmente através de alguns grandes países com rendimento médio [3]. Os países mais pobres não estão aliás em condições de contrair empréstimos junto do BIRD, contraindo junto da AID (Agência Internacional para o Desenvolvimento, IDA em inglês).

Tabela 1. Evolução da dívida de todos os PED ao BIRD entre 1970 e 2004 (em milhões de dólares)

AnoStock totalMontante dos empréstimosMontantes reembolsadosTransferência líquida
1970 4 377 672 491 181
1971 4 892 796 559 237
1972 5 517 928 630 298
1973 6 146 969 757 213
1974 7 136 1 338 883 456
1975 8 500 1 817 987 830
1976 9 984 1 937 1 151 786
1977 11 784 2 373 1 434 939
1978 13 812 2 661 1 780 881
1979 16 520 3 452 2 161 1 291
1980 20 432 4 224 2 666 1 558
1981 24 356 5 201 2 963 2 239
1982 28 570 5 828 3 611 2 217
1983 33 706 7 104 4 376 2 728
1984 33 426 7 917 5 217 2 700
1985 46 612 7 915 6 077 1 838
1986 63 411 9 768 8 881 887
1987 83 372 10 680 11 447 -767
1988 79 871 11 591 14 393 -2 801
1989 80 981 10 564 13 302 -2 738
1990 92 314 13 438 14 807 -1 369
1991 97 136 11 924 16 686 -4 762
1992 92 283 10 218 17 455 -7 237
1993 100 156 12 884 17 724 -4 840
1994 107 713 11 299 19 113 -7 814
1995 111 691 13 094 19 641 -6 548
1996 105 308 13 148 19 276 -6 128
1997 101 522 14 499 17 334 -2 835
1998 108 455 14 376 17 099 -2 723
1999 111 329 14 082 17 101 -3 019
2000 112 145 13 430 17 510 -4 079
2001 112 530 12 305 17 275 -4 970
2002 111 303 10 288 22 414 -12 126
2003 109 036 11 411 22 761 -11 350
2004 104 526 8 298 18 381 -10 084
Fonte: World Bank, Global Development Finance 2005.

O BIRD obtém lucro através da diferença entre o custo dos empréstimos que contrai nos mercados financeiros, por um lado, e o dinheiro que os PED lhe pagam (amortização do capital emprestado + juros), por outro lado. No entanto, é preciso, de facto, que os PED reembolsem o BIRD. E é o que acontece, o BIRD consegue, com regularidade, ser reembolsado. Há, naturalmente, algumas excepções e alguns países são maus pagadores; é o caso do Zaire de Mobutu, por exemplo.

Para fazermos uma ideia de quanto os PED levam a sério o reembolso ao BIRD, basta ter em conta a Tabela 1, onde se percebe que os PED pagam muito mais do que o BIRD lhes empresta. Para os PED, a transferência líquida é negativa desde 1987. Constata-se também que, apesar dos enormes reembolsos, a dívida total junto do BIRD cresceu significativamente.

O Gráfico 2 apresenta a evolução do stock e da transferência líquida:


Escala da esquerda: Transferência líquida da dívida ao BIRD para o conjunto dos PED (em mil milhões de dólares).
Escala da direita: Evolução da dívida total ao BIRD para o conjunto dos PED entre 1970 e 2004 (em mil milhões de dólares)

O Banco Mundial afirma que os lucros que obtém através do BIRD não lhe permitem equilibrar as contas por causa do défice da AID, que concede empréstimos a juros baixos aos países mais pobres. O Gráfico 3mostra que se, por um lado, somarmos os empréstimos do BIRD e da AID e subtrairmos o conjunto dos reembolsos pagos pelos PED (incluindo os mais pobres) ao BIRD e à AID, o Banco fica largamente a ganhar desde o início dos anos noventa. Assim, entre 1991 e 1996, a transferência líquida foi sistematicamente negativa, acontecendo o mesmo desde 2000.


Escala da esquerda: Transferência líquida da dívida ao Banco (BIRD + AID) para o conjunto dos PED (em milhares de milhões de dólares)
Escala da direita: Evolução da dívida total ao Banco (BIRD + AID) para o conjunto dos PED entre 1970 e 2004 (em milhares de milhões de dólares)

A partir de 1984, o Banco Mundial decidiu diversificar a aplicação dos seus benefícios. Por outro lado, em relação ao aumento das reservas, utiliza-as em doses homeopáticas nalguns programas das Nações Unidas. Assim, em abril de 1984, o Banco Mundial fez um donativo de dois milhões de dólares ao Programa Alimentar Mundial, o que ficou registado na acta da reunião da direcção do Banco Mundial como sendo um gesto belo e audacioso («good and astute gesture») [4].

De seguida, a partir de 1985, o Banco Mundial aplicou uma parte dos seus lucros em fundos especiais (geralmente fundos fiduciários, trust funds em inglês) com objectivos limitados: foi o caso da contribuição do Banco no sentido de aliviar a dívida dos países pobres muito endividados, da ajuda aos países afectados pelo tsunami de dezembro de 2004, passando por donativos à Agência de Garantia Mútua de Investimentos, a quinta filial do Banco Mundial [5].

Em geral, a utilização dos fundos é criticada pelos países com rendimento médio, porque são eles que permitem que o Banco Mundial obtenha lucros. Esses países denunciam que os países ricos utilizam uma parte dos lucros conseguidos à sua custa para terem gestos de generosidade para com os países mais pobres. Eles prefeririam uma diminuição das taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. aplicadas pelo Banco Mundial.

Note-se que o Banco é muito activo Activo Em geral o termo «activo» refere um bem que possui um valor realizável, ou que pode gerar rendimentos. Caso contrário, trata-se de um «passivo», ou seja, da parte do balanço composta pelos recursos de que dispõe uma empresa (os capitais próprios realizados pelos accionistas, as provisões para risco e encargos, bem como as dívidas). no mercado dos produtos derivados, que alimentam a especulação Especulação Operação que consiste em tomar posição no mercado, frequentemente contracorrente, na esperança de obter um lucro. internacional. Em 2004, o Banco sofreu uma perda de 4 mil milhões de dólares devido a operações com produtos derivados cambiais. Apesar de a sua actividade clássica ter gerado benefícios comparáveis aos lucros dos anos anteriores, isso afectou pontualmente o seu rendimento líquido [6]. Mas esta é uma actividade paralela do Banco Mundial, certamente muito discutível, mas que nos afasta do nosso assunto...


Notas

[1Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 177.

[2Daqui para a frente, a expressão ‘rendimento’ será utilizada sempre que necessário em substituição da expressão ‘resultados operacionais líquidos’.

[3Os países com rendimento médio são aqueles cujo rendimento nacional bruto per capita, em 2003, se situa entre 766 e 9.385 dólares, pedindo emprestado ao Banco a uma taxa próxima da taxa de mercado.

[4Actas do Managing Committee meeting, Abril 9, 1984, citado por Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1: History, p. 341.

[5Lista completa desses fundos: Fundo fiduciário para o meio ambiente, Iniciativa Especial para a África Subsaariana, Fundo Fiduciário de Assistência Técnica para a União Soviética, Fundo Fiduciário para Gaza e Cisjordânia, o Fundo Especial para Timor Leste, Assistência Urgente ao Ruanda, Iniciativa de Alívio da Dívida dos Países Beneficiários da AID, Fundo Fiduciário para a Bósnia-Herzegovina, Fundo Fiduciário para a Iniciativa PPTE, Construção de Competências em África, Fundo Fiduciário para o Kosovo, Fundo Fiduciário para a República Federal da Jugoslávia, Agência de Garantia de Investimentos Multilaterais, Fundo Fiduciário para os Países de Baixo Rendimento em Situação de Crise, Fundo Fiduciário para a Libéria, Fundo Fiduciário Múltiplo de Doadores para o Achém e Norte da Sumatra, Fundo Fiduciário para a Reabilitação da Índia após o Tsunami.

[6Ver World Bank, Annual Report 2005, Washington, D. C., vol. 2, p. 33 e s.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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