As eleições e as ameaças da extrema-direita para o Brasil

Brasil

28 de Outubro de 2018 por Priscila Martins de O. Santana


No próximo dia 28 de outubro acontecerá no Brasil o 2º turno das eleições, que definirá, principalmente, mas não apenas, o próximo presidente do país. Parte expressiva da imprensa internacional tem acompanhado o processo eleitoral brasileiro, enfatizando os riscos sociais e políticos que o país está correndo, caso o candidato da extrema-direita Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal) alcance a presidência.



O avanço da extrema-direita no país e a possibilidade de captura do Estado brasileiro, caso Bolsonaro vença as eleições do próximo dia 28 de outubro, é um perigo real, que não significará, para uma parte da sociedade brasileira e latino-americana (mulheres, LGBT’s, negras e negros, indígenas, classe trabalhadora, desempregados, sem-tetos e sem-terras, estudantes, etc.) uma simples etapa eleitoral com prazo de validade de 4 anos (ou quem sabe até menos tempo, como alguns ingênuos acreditam). Ex-militar do Exército, Bolsonaro é defensor declarado de práticas de torturas [1] e de um modelo de Estado autoritário (em essencial naquilo que diz respeito aos direitos das mulheres, LGBT’s, pobres, negras e negros, nordestinos, indígenas, dentre outros grupos sociais). As várias declarações alucinadas e odientas [2] do e Bolsonaro escancaram as suas intenções em transformar o Brasil numa espécie de feudo.

Uma onda de violência contra as minoriais vem se difundindo pelo Brasil nos últimos meses. Após o resultado eleitoral do dia 07 de outubro, diversas regiões do país foram tomadas por novos episódios de violência e ameaças por parte dos bolsonaristas – como o assassinato, no dia seguinte em Salvador (Bahia), do Mestre Moa do Katende [3] , que foi brutal e covardemente assassinado quando afirmou-se eleitor do candidato Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores).

A atual conjuntura política brasileira é resultado da interação complexa de um conjunto de fatores econômicos, sociais e políticos. Alguns desses fatores superam completamente os limites do país (sejam esses territoriais, políticos ou socioeconômicos), obedecendo a uma dinâmica internacional, enquanto outros estão mais reduzidos a processos internos.

Neste breve texto, destaco quatro processos que, no meu entendimento, conformaram o atual cenário brasileiro: 1) a crise do sistema capitalista, deflagrada a partir do colapso do padrão de interação entre o capital imobiliário e o capital financeiro dos EUA (entre 2008 e 2009), processo imediatamente generalizado, através de vários canais, para as demais regiões do sistema capitalista; 2) as dinâmicas global e local do sistema da dívida após a crise de 2008; 3) os desdobramentos do golpe político articulado pela mídia hegemônica no Brasil em consórcio com parte expressiva dos Poderes Legislativo e Judiciário; 4) a influência político-ideológica das grandes igrejas neopentecostais (evangélicas) sobre amplos setores da sociedade brasileira.

Os dois primeiros fatores (a crise capitalista e o sistema da dívida) ultrapassam os limites internos, ou seja, ambos são processos que se desenrolam em escala global, apesar de terem suas dinâmicas (expressões) locais. Mas por que ainda falar sobre a crise de 2008, algo que parece, para muitas pessoas – especialmente para boa parte dos brasileiros – um evento já superado? É preciso insistir que a crise deflagrada em 2008 nunca esteve tão pulsante no mundo inteiro como nesses últimos 10 anos. A história do sistema capitalista é inseparável da história das crises econômicas, sendo algumas dessas crises mais severas do que outras, como foi o caso da Crise de 1929, que também eclodiu sob a forma de crise financeira nos EUA, e atingiu outras economias ao longo dos anos seguintes. A crise de 1929 foi tão severa que trouxe consequências sociais, políticas e humanas devastadoras para o mundo inteiro entre os anos 30 e 40, como o surgimento do fascismo na Espanha, em Portugal e na Itália, e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que envolveu o mundo todo e deixou dezenas de milhões de mortos.

Menos de um século depois configurou-se, em 2008, uma nova crise capitalista de dimensão global tal como o Crash de 1929. Após a deflagração da crise de 2008 a sociedade assistiu, num primeiro momento, às ações imediatas de salvamentos bancários protagonizadas pelo poder estatal do núcleo orgânico do sistema capitalista (EUA e Europa), e em seguida ao terrorismo dos grandes bancos que passaram a comandar uma massiva onda de despejos [4] de pessoas que viviam nos imóveis hipotecados.

Os resgates operacionalizados pelo Estado significaram a conversão de dívidas privadas em dívida pública, o que impôs dificuldades às finanças públicas (TOUSSAINT et al, 2017). Em suma, os setores sociais vulneráveis, mais uma vez, foram obrigados a fazer parte do processo de socialização dos prejuízos gerados pelo estilo de interação entre o capital financeiro e o capital imobiliário. Uma das características da atual fase (financeirização) do sistema capitalista é exatamente a internalização por parte dos Estados do ônus deixado pelo movimento do capital financeiro, ação que compromete permanentemente o orçamento público.

O economista mexicano Carlos Marichal enfatizou, em seu livro “Nova história das grandes crises financeiras: uma perspectiva global, 1873-2008”, que “a crise de 2008 e 2009 não é uma crise menor, tendo causado mais falências e desemprego do que qualquer outra crise desde os anos 1930”. Essa visão pode ser reforçada a partir dos levantamentos mais recentes sobre as perspectivas sociais e do emprego no mundo, sistematizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em janeiro de 2018, no relatório “Perspectivas sociais e do emprego no mundo: tendências 2018”. [5] Segundo o relatório a previsão é de continuidade do alto nível de desemprego mundial, que alcançará, em 2018, mais de 192 milhões de pessoas no mundo, com perspectiva de aumento de 1,3 milhões de desempregados para o ano de 2019.

Na América Latina e Caribe as dinâmicas econômica, política e social mais recentes também encontram-se marcadas pelos mesmos processos que têm caracterizado o capitalismo mundial pós-2008. A crise deflagrada no centro do capitalismo atingiu em cheio a trajetória de modesto crescimento econômico esboçada pelas principais economias latino-americanas – ao longo de boa parte da década de 2000 (gráfico 1) –, abalando fortemente as exportações de matérias-primas (fonte básica para a reprodução do sistema da dívida nas economias periféricas).

Gráfico 1: Taxa anual (%) de crescimento real do PIB das três principais economias da América Latina
Fonte: Elaboração própria, 2018, com dados da OCDE.

No caso mais específico do Brasil a atual conjuntura socioeconômica e política tem ampla relação com a disputa que se abriu pela redefinição das condições internas de reprodução do sistema da dívida. Para garantir a manutenção do sistema da dívida no contexto de crise capitalista a classe dominante brasileira (articulada com os interesses externos) promoveu um golpe midiático-jurídico-parlamentar que derrubou a presidenta Dilma, e investiu pesado em duas operações: i) o desmonte veloz de boa parte da Constituição de 1988; ii) a desmoralização político-moral do Partido dos Trabalhadores (PT). Desmontar a Constituição significava para essas forças sociais redefinir rapidamente as condições da acumulação para os setores empresariais (através da precarização do trabalho, da redução do papel social do Estado e da garantia de parte do orçamento público para o sistema bancário-financeiro). Por outro lado, a estratégia de desmoralização político-moral do Partido dos Trabalhadores, construída diariamente pela imprensa hegemônica no Brasil – com suas doses cada vez mais agressivas de anti-petismo –, visava o fortalecimento dos partidos de direita convencional (PSDB e DEM) como referências eleitorais no imaginário da população. No entanto, a “dose” do anti-petismo foi extremamente letal na medida em que acelerou a difusão de um sentimento de ódio ao sistema como um todo. O experimento político não teve o efeito esperado, não fortaleceu os partidos e candidaturas da direita convencional, mas criou o monstro Bolsonaro, o qual passou a alimentar-se do anti-petismo, apresentando-se cada vez mais como o “anti-sistema”, o único capaz de “salvar o Brasil” da destruição moral.

A situação política e socioeconômica do Brasil tem se agravado muito desde a consolidação do governo Temer em 2016, refletindo exatamente a deterioração de um conjunto de direitos sociais até então resguardados na Constituição. Ainda que o discurso do governo golpista tenha sido o de defesa irrenunciável da austeridade fiscal como único caminho para reduzir imediata e eficazmente o nível de endividamento público, o que se constata é exatamente o oposto: o endividamento não se reduziu, ele apenas cresce em níveis cada vez maiores. Em 2017 [6] a dívida pública comprometeu quase 1 trilhão de reais do orçamento público (sob a forma de juros e rolagem), o que representou quase 40% do orçamento federal executado, enquanto setores importantes como a sáude e a educação tiveram que se contentar com pouco mais de 4%, e a cultura com 0,04% do orçamento.

Michel Temer constituiu um governo que imediatamente impôs reformas econômicas estruturais de natureza regressiva, tais como a aprovação de uma Emenda Constitucional do Teto de Gastos (EC n. 95), que congela os investimentos sociais do governo por 20 anos, literalmente uma política de austeridade de longo prazo. Além da aprovação dessa medida agressiva, nunca implementada em qualquer outro país do mundo, o governo golpista articulou uma contrarreforma previdenciária, que não foi aprovada, pelo menos no curto prazo, alterou a legislação do Pré-Sal e conseguiu promover mudanças estruturais na legislação trabalhista, promovendo a precarização generalizada para os trabalhadores.

O mais intrigante é que, apesar da ampla rejeição [7] popular ao governo Temer, apesar do povo estar sentindo os efeitos dos níveis insuportáveis de desemprego e subemprego, do agravamento da miséria e da concentração de renda e riqueza, Bolsonaro cresceu propondo um projeto que representa exatamente a continuidade radical de todo o mal-estar iniciado pelo governo Temer. Então uma pergunta que vem sendo feita é: por que o apoio a Bolsonaro cresceu dessa maneira, se o seu projeto de governo expressa a continuidade (mais agressiva) das medidas tão catastróficas implementadas por Michel Temer? Bolsonaro, do mesmo modo que não esconde a sua postura autoritária e pró-ditadura, não esconde o seu alinhamento com uma política anti-trabalhista e contrária às demandas populares, inclusive faz questão de repetir publicamente o seguinte lema: “um dia o trabalhador terá que decidir entre menos direitos e mais emprego ou todos os direitos e menos emprego”. [8]

As dores materiais (desemprego, miséria, violência, sensação de abandono por parte do Estado, etc.) sentidas pelas pessoas que fazem parte das classes mais afetadas (trabalhadores e classe média) pelas consequências do sistema capitalista e da crise repercutem, inevitavelmente, de algum maneira, sobre a dimensão psico-emocional dessas pessoas, criando nelas um sentimento confuso de revolta/indignação contra tudo o que aí está. Esse sentimento é o que leva, em muitos casos, essas pessoas a identificarem o outro (as minorias sociais) como o responsáveis morais pelo caos que o país atravessa e, consequentemente, pelas suas dores da experiência coletiva. É precisamente neste ponto emocional, e no caso do Brasil, sempre apelando ao moralismo (defesa de um modelo único de família, LGBTfobia, misoginia, etc.), que o fascismo irá insistentemente tocar e tentar mobilizar cada vez mais apoiadores.

No Brasil uma das bases decisivas do avanço de Bolsonaro são as igrejas evangélicas (as grandes igrejas) [9] , hoje presentes em boa parte das periferias urbanas e cidades do interior do país. Fernandes (2012) [10] afirma que, segundo dados do IBGE, as igrejas evangélicas expandiram o número de adeptos de modo impressionante ao longo da década passada, de 2000 a 2010 houve um salto de 61% no número de evangélicos. Um avanço “silencioso” e “discreto” que foi capaz de constituir impérios empresariais, imprensa própria e uma bancada ultraconservadora e poderosa no Congresso. Do ponto de vista ideológico as principais agremiações neopetencostais representam uma combinação da “Teologia da Prosperidade” com o conservadorismo moral. A “Teologia da Prosperidade” expressa uma certa visão econômica de mundo, já que consiste num discurso de exaltação do sucesso econômico individual como recompensa divina, por isso várias dessas igrejas exaltam a ideologia neoliberal do empreendedorismo. Em resumo, trata-se de uma espécie de afinidade eletiva entre uma “ética neopentecostal e o espírito do neoliberalismo”. Por outro lado, o conservadorismo moral diz respeito à manutenção de tabus em torno de temas sociais (aborto, drogas, diversidade sexual, manutenção de um modelo hetero-patriarcal de família, etc.) que envolvem essencialmente os direitos humanos, a saúde pública e a redução dos níveis de violência, mas que são encarados por uma ampla maioria dos evangélicos enquanto assuntos de natureza moral. Essa articulação entre “Teologia da Prosperidade” e conservadorismo moral tem mostrado tamanha força na atual conjuntura política que, além de conseguir impulsionar o candidato da extrema-direita, conseguiu retirar, quase que totalmente, do centro do debate (seja na imprensa ou nas ruas) toda discussão sobre a economia política dos projetos de governo.


Referências

  • BERTI, Lucas; SEREZA, Ceravolo Haroldo. Relatos de violência com motivação política se espalham pelo país; veja mapa. Carta Maior, 11 out. 2018. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Edi...> .
  • FERNANDES, Marco. A psicoterapia popular do Espírito Santo. Revista Margem Esquerda, n.29.
  • MARICHAL, Carlos. Nueva historia de las grandes crisis financieras: una perspectiva global, 1873-2008. Barcelona: Debolsillo, 2012.

Notas

[6Para informações mais detalhadas, ver o documento: https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2018/05/Os-numeros-da-divida-2018.pdf

[7Pesquisa comprova, mais uma vez, que o Governo Temer bateu recordes de rejeição, quase 90% da população brasileira considera o governo uma catástrofe, resultado que garantiu-lhe o posto de pior presidente da história política brasileira mais recente. Para maiores informações, ver: https://www.nexojornal.com.br/podcast/2018/09/26/Fim-de-governo-Temer-reprovado-na-rua-rejeitado-na-elei%C3%A7%C3%A3o

[8Sobre as intenções de Bolsonaro no campo dos direitos trabalhistas, ver a seguinte matéria: https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/bolsonaro-e-a-pa-de-cal-nos-direitos-dos-trabalhadores-brasileiros

[10No artigo “Psicoterapia popular do Espírito Santo”, Marco Fernandes, que é doutor em Psicologia pela USP, traça uma excelente reflexão sobre o avanço e êxito das igrejas evangélicas na periferia de metrópoles periféricas.

Priscila Martins de O. Santana

Mestra em Economia pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Economia do IFBA. Militante do CADTM e ACD/Brasil.

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