Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!
6 de Março por Eric Toussaint
Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.
Após a Segunda Guerra Mundial, numa zona cada vez maior do Terceiro Mundo, as políticas implementadas viram as costas às antigas potências coloniais. Essa orientação esbarra contra a oposição firme dos governos dos grandes países capitalistas industrializados, que exercem uma influência determinante sobre o Banco Mundial e sobre o FMI. Os projetos do Banco possuem uma vertente política acentuada: refrear o desenvolvimento de movimentos que ponham em causa o poder das grandes potências capitalistas. A proibição de apresentar justificações “políticas” e “não económicas” nas operações do Banco (uma das mais importantes cláusulas dos seus estatutos) é sistematicamente contornada. A parcialidade política das instituições de Bretton Woods é demonstrada pelo apoio financeiro dado, em especial, às ditaduras que assolaram o Chile, o Brasil, a Nicarágua, o Congo-Kinshasa e a Roménia.
1.A revolta anticolonial e anti-imperialista do Terceiro Mundo
Após 1955, o espírito da Conferência de Bandung (Indonésia) [1] sopra sobre grande parte do planeta. A conferência acontece na sequência do fracasso francês no Vietname e precede a nacionalização do canal do Suez por Nasser (1956). Depois surgem as revoluções cubana (1959) e argelina (1954-1962) e o retomar da luta pela emancipação do Vietname... Numa zona cada vez mais alargada do Terceiro Mundo, as políticas implementadas viram as costas às antigas potências coloniais. Nota-se uma tendência para a substituição de importações e para o desenvolvimento de políticas voltadas para o mercado interno. Essa orientação esbarra contra a oposição firme dos governos dos grandes países capitalistas industrializados, que têm uma influência determinante no Banco Mundial e no FMI. Avoluma-se a onda de regimes nacionalistas burgueses que adotam políticas populares (Nasser no Egito, Nehru na Índia, Perón na Argentina, Goulart no Brasil, Sukarno na Indonésia, Nkrumah no Gana...) e de regimes com orientação explicitamente socialista (Cuba, República Popular da China).
Nesse contexto, os projetos do Banco Mundial têm um forte pendor político: refrear o desenvolvimento de movimentos que coloquem em causa a dominação exercida pelas grandes potências capitalistas.
2.Poder de intervenção do Banco Mundial nas economias nacionais
Desde os anos cinquenta, o Banco criou uma rede de influência que lhe seria muito útil mais tarde. Estimulou a procura dos seus serviços no Terceiro Mundo. A ascendência que o Banco dispõe decorre, em grande parte, da rede de agências que construiu nos Estados que se tornaram seus clientes e, ao mesmo tempo, devedores. O Banco exerce uma verdadeira política de influência para sustentar a sua rede de empréstimos.
A partir dos anos cinquenta, um dos primeiros objetivos do Banco é a “construção de instituições” que assumem frequentemente a forma de agências para-governamentais nos países clientes do Banco. [2] Tais agências são fundadas com a intenção de serem relativamente independentes em termos financeiros dos seus governos e de estarem fora do controlo das instituições políticas locais, especialmente dos parlamentos nacionais. Constituem pontos naturais de apoio do Banco, a quem devem muito, a começar pela sua existência e, em certos casos, o seu financiamento.
A criação de tais agências foi uma das mais importantes estratégias do Banco Mundial para se integrar nas economias políticas do Terceiro Mundo.
Funcionando segundo regras próprias (frequentemente elaboradas de acordo com as sugestões do Banco), repletas de tecnocratas simpatizantes do banco, incentivados e apoiados por ele, essas agências são uma fonte estável e digna de confiança para satisfazer as necessidades do Banco: elaboram propostas de empréstimo “viáveis”. Fornecem também ao Banco as bases do poder paralelo, que permitiram transformar as economias nacionais, e, de facto, sociedades inteiras, sem recorrer ao procedimento exigente do controlo democrático e sem debates do contraditório.
O Banco funda, em 1956, com o apoio financeiro importante das Fundações Ford e Rockefeller, o Instituto de Desenvolvimento Económico (Economic Development Institute), que oferece estágios de formação, de seis meses, aos delegados oficiais dos países membros. “Entre 1956 e 1971, mais de 1300 delegados oficiais passaram pelo Instituto; alguns deles atingiram posições de primeiro-ministro, ministro do Planeamento e ou das Finanças”. [3]
As implicações dessa política são inquietantes: o estudo realizado pelo International Legal Center (ILC) de Nova York, sobre a ação do Banco na Colômbia, entre 1949 e 1972, concluiu que as agências autónomas criadas pelo Banco têm um impacto profundo na estrutura política e na evolução social de toda a região, enfraquecendo “o sistema dos partidos políticos e minimizando o papel do legislativo e do judiciário”.
Pode-se considerar que, desde os anos sessenta, o Banco estabeleceu mecanismos únicos e novos, tendo em vista uma intervenção permanente nos assuntos internos dos países que pediam empréstimos. No entanto, o Banco nega vigorosamente que tais intervenções sejam políticas: ao contrário, insiste no facto de a sua política nada ter a ver com as estruturas de poder e de os assuntos políticos e económicos existirem separadamente.
3.A política de empréstimos do Banco Mundial é influenciada por considerações políticas e geoestratégicas.
O artigo IV, secção 10, estipula: “O Banco e os seus responsáveis não interferirão nos assuntos políticos de nenhum dos membros e é-lhes proibido deixarem-se influenciar nas suas decisões pelas caraterísticas políticas do membro ou dos membros em questão. Só considerações económicas podem influenciar as suas decisões e essas considerações devem ser avaliadas sem ideias pré-concebidas, a fim de se atingirem os objetivos (fixados pelo Banco) estipulados no artigo 1º”.
Apesar disso, a proibição de apresentar justificações “políticas” e “não económicas” nas operações do Banco, uma das cláusulas mais importantes dos seus estatutos, é contornada sistematicamente. E desde o início da sua atividade. Recorde-se que o Banco recusou emprestar à França, após a libertação, enquanto os comunistas estivessem no governo (alguns dias após a saída dos comunistas do governo, em maio de 1947, o empréstimo solicitado e bloqueado até então foi concedido).
O Banco age recorrentemente contrariando o artigo IV dos estatutos. De facto, com regularidade, as escolhas feitas têm como justificação considerações políticas. A qualidade das políticas económicas não é condição determinante das suas opções. O Banco empresta regularmente dinheiro a países sem ter em conta a má qualidade da sua política económica e o elevado nível de corrupção: a Indonésia e o Zaire são dois casos emblemáticos. Mais precisamente, as escolhas do Banco, em relação a países que assumem posições políticas de maior relevância para os principais acionistas, estão com frequência relacionadas com os interesses e as orientações desses acionistas, a começar pelos Estados Unidos.
As escolhas do Banco e do seu irmão gêmeo, o FMI, desde 1947 até a derrocada do bloco soviético [4], são amplamente determinadas pelos seguintes critérios:
evitar a manutenção dos modelos autocentrados;
apoiar financeiramente grandes projetos (Banco Mundial) ou políticas (FMI), que permitam aumentar as exportações dos principais países industrializados;
recusar ajuda a regimes considerados como uma ameaça pelo governo dos Estados Unidos e por outros acionistas importantes;
tentar modificar a política de certos países ditos socialistas, a fim de enfraquecer a coesão do bloco soviético. É nesse contexto que foi concedido apoio à Jugoslávia, que saiu do bloco dominado por Moscovo a partir de 1948, ou à Romênia a partir dos anos setenta, quando Ceausescu manifestava intenção de se distanciar do COMECON e do Pacto de Varsóvia;
apoiar aliados estratégicos do bloco capitalista ocidental, dos Estados Unidos em particular (exemplos: a Indonésia, de 1965 até hoje; o Zaire de Mobutu, de 1965 a 1977; as Filipinas sob o governo de Marcos; o Brasil da ditadura a partir de 1964; a Nicarágua do ditador Somoza; a África do Sul do Apartheid);
procurar evitar ou limitar, tanto quanto possível, um aproximação dos governos dos PED ao bloco soviético ou à China: tentar, por exemplo, afastar a Índia e a Indonésia, dos tempos de Sukharno, da URSS;
procurar, a partir de 1980, integrar a China no jogo de alianças dos Estados Unidos.
Para implementar essa política, o Banco Mundial e o FMI adotam uma tática generalizada: tornam-se mais flexíveis em relação aos governos de direita (menos exigentes em termos de políticas de austeridade antipopulares), que se confrontam com uma forte oposição de esquerda, do que em relação aos governos de esquerda, que se confrontam com uma forte oposição de direita. Concretamente, isso significa que essas instituições pretendem dificultar a vida aos governos de esquerda, confrontados com uma oposição de direita, de modo a enfraquecê-los e a favorecerem a ascensão da direita ao poder. Segundo a mesma lógica, serão menos exigentes com os governos de direita, que se confrontam com oposições de esquerda, de modo a evitarem enfraquecê-los e impedindo a esquerda de ascender ao poder. A ortodoxia monetarista possui uma geometria variável: as variações dependem muito de fatores políticos e geoestratégicos.
Alguns casos concretos – o Chile, o Brasil, a Nicarágua, o Zaire e a Roménia – ilustram o que ficou dito: trata-se, em simultâneo, de escolhas do Banco e do FMI, porque essas escolhas são determinadas, grosso modo, pelas mesmas considerações e são submetidas às mesmas influências.
O FMI e o Banco Mundial não hesitam em apoiar as ditaduras, quando (tal como outras grandes potências capitalistas) acham oportuno. Os autores do Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, realizado pelo PNUD (edição de 1994), afirmam claramente isso: “De facto, a ajuda dada pelos Estados Unidos, durante os anos oitenta, é inversamente proporcional ao respeito pelos direitos humanos. Os doadores multilaterais também não parecem muito incomodados com tais justificações. Parecem, de facto, preferir os regimes autoritários, aceitando sem pestanejar que esses regimes favorecem a estabilidade política e gerem melhor a economia. Logo que o Bangladesh e as Filipinas puseram fim à lei marcial, as parcelas respetivas nos empréstimos do Banco Mundial diminuíram”. [5]
4. A parcialidade política das Instituições Financeiras Internacionais (IFI): exemplos de apoio financeiro às ditaduras
4.1 Apoio à ditadura do General Augusto Pinochet
Gráfico 1. Chile : pagamentos multilaterais
Fonte: Banco Mundial, CD-ROM GDF, 2001
(tradução legendas: milhões, eleição de Allende, golpe de Pinochet)
O Chile, durante o governo democraticamente eleito de Salvador Allende (1970-1973), não recebe empréstimos do Banco, mas após o golpe militar, durante o governo de Pinochet, o país volta subitamente a ter credibilidade. No entanto, nenhum dirigente do Banco ou do FMI ignora o caráter profundamente autoritário e ditatorial ou, resumindo, criminoso, do regime de Pinochet. A relação entre política de empréstimos e contexto geopolítico é evidente nesse caso. Um dos principais colaboradores de Robert McNamara, Mahbub ul Haq, redige, em 1976, num memorando, uma nota muito crítica intitulada “Os erros do Banco Mundial no Chile” [6], com o objetivo de modificar a orientação do Banco. Pode ler-se nesse relatório: “Falhámos no apoio aos objetivos básicos do regime de Allende, quer seja nos nossos relatórios, quer seja publicamente”. Robert McNamara decide ignorá-lo. [7] Mahbub ul Haq tenta, sem sucesso, convencer a direção do Banco a suspender os empréstimos a Pinochet, porque está “a restaurar uma sociedade economicamente elitista e instável”. Acrescenta que a política de Pinochet “agravou as desigualdades na distribuição de rendimentos no país”. [8]
4.2 Apoio à junta militar no Brasil após a queda do Presidente João Goulart
Gráfico 2. Brasil : pagamentos do Banco Mundial
Fonte: Banco Mundial, CD-Rom GDF, 2001
(tradução legendas: milhões, golpe de Estado militar: ditadura até 1985.)
O regime democrático do presidente João Goulart foi deposto pelos militares em abril de 1964. Os empréstimos do Banco e do FMI, que tinham sido suspensos durante três anos, são retomados pouco tempo depois. [9]
Resumo sucinto dos acontecimentos: em 1958, o presidente brasileiro Kubitschek entra em negociações com o FMI para receber um empréstimo de 300 milhões de dólares por parte dos Estados Unidos. Finalmente, Kubitschek recusa as condições impostas pelo FMI e dispensa o empréstimo. Isto vale-lhe grande popularidade.
O seu sucessor, João Goulart, anuncia que vai pôr em prática uma reforma agrária radical e proceder à nacionalização das refinarias de petróleo: é derrubado pelos militares. No dia seguinte ao golpe, os Estados Unidos reconhecem o novo regime militar. Algum tempo depois, o Banco e o FMI retomam a política de empréstimos suspensa. Por seu lado, os militares anulam as medidas económicas criticadas pelos Estados Unidos e pelo FMI. Note-se que as instituições financeiras internacionais consideram que o regime militar adota medidas económicas saudáveis (sound economic measures). [10] No entanto, o PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
cai 7% em 1965, e milhares de empresas vão à falência. O regime organiza uma forte repressão; proíbe as greves; provoca uma forte queda dos salários reais; suprime as eleições por sufrágio universal; decreta a dissolução dos sindicatos e recorre regularmente à tortura.
Desde a primeira viagem efetuada em 1968, McNamara visita com regularidade o Brasil, encontrando-se sempre com os governantes militares. Os relatórios públicos do Banco saúdam de forma sistemática a política da ditadura no que se refere à redução de desigualdades [11], apesar de, internamente, as discussões poderem azedar. Quando o subdiretor do Departamento de Projetos, Bernard Chadenet, declara que a imagem do Banco vai degradar-se após ser dado apoio ao governo repressivo do Brasil, McNamara reconhece que há uma repressão muito forte (“um tremendo esforço repressivo”). Mas acrescenta que “não é necessariamente muito diferente do que tinha ocorrido em governos anteriores e que não parecia ser muito pior do que noutros países membros do Banco. O Brasil será pior do que a Tailândia?”. [12] Alguns dias mais tarde, McNamara prosseguia: “Não parece haver uma alternativa viável ao governo dos generais” Kap. [13]. O Banco Mundial compreende bem que as desigualdades não diminuem e que os seus empréstimos para a agricultura fortalecem os grandes proprietários. Decide, entretanto, prosseguir com os empréstimos, porque o que pretende realmente é manter o governo sob sua influência. Contudo, a esse nível, enfrenta um óbvio fracasso: os militares dão mostras de uma profunda desconfiança face à vontade de o Banco aumentar a sua influência. Finalmente, em finais dos anos setenta, beneficiam de uma profusão de empréstimos concedidos por banqueiros privados internacionais, a taxas de juros inferiores às do Banco.
4.3 Depois de ter apoiado a ditadura de Anastasio Somoza, o Banco Mundial põe fim aos empréstimos após a eleição do sandinista Daniel Ortega para a presidência da Nicarágua
Gráfico 3: NICARAGUA: pagamentos do Banco Mundial
Fonte: Banco Mundial, CD-Rom GDF, 2001
(tradução legendas: milhões, movimento popular que derruba a ditadura dos Somoza, embargo comercial decretado por Washington)
Durante o consulado do clã Somoza, que estava no poder na Nicarágua desde os anos trinta, devido a uma intervenção militar dos Estados Unidos, um poderoso movimento popular irrompe sobre a ditadura, em 19 de julho de 1979, provocando a fuga do ditador Anastasio Somoza. Os Somoza, detestados pelo povo, dilapidaram uma grande parte da riqueza do país e favoreceram a implantação de grandes empresas estrangeiras, sobretudo norte-americanas. A ditadura de Anastásio Somoza beneficiou de numerosos empréstimos do Banco Mundial. Com a queda da ditadura, um governo de aliança assume o poder, juntando a oposição democrática tradicional (dirigida por empresários) e os revolucionários sandinistas, que não escondem a sua simpatia por Cuba, nem a sua disposição de empreender determinadas reformas (reforma agrária, nacionalização de certas empresas estrangeiras, confisco de terras pertencentes ao clã Somoza, programa de alfabetização...). Washington, que apoiou Anastásio Somoza até o fim, considera que esse governo constitui uma ameaça comunista, que pode contagiar a América Central. No entanto, a administração Carter, no poder aquando do derrube da ditadura, não adota de imediato uma atitude agressiva. Porém, as coisas mudam rapidamente quando Ronald Reagan assume funções na Casa Branca. Anuncia (1981) a sua intenção de fazer cair os Sandinistas. Sustenta a nível financeiro e militar uma rebelião composta por antigos membros da guarda nacional (“Contrarrevolucionários” ou “Contras”). A aviação dos Estados Unidos ataca diversos portos nicaraguanos. Face às hostilidades, a política do governo de maioria sandinista radicaliza-se... Nas eleições de 1984, que decorrem de forma democrática, pela primeira vez após meio século, o sandinista Daniel Ortega é eleito presidente com 67% dos votos. No ano seguinte, os Estados Unidos impõem um embargo comercial contra a Nicarágua, isolando o país dos investidores estrangeiros. O Banco Mundial, por sua vez, interrompe os empréstimos a partir da vitória sandinista nas eleições presidenciais. Como referido no capítulo anterior, os sandinistas tentam a todo o custo convencer o Banco Mundial a retomar os empréstimos. [14] Estão mesmo dispostos a implementar um plano draconiano de ajustamento estrutural. O Banco decide, entretanto, responder negativamente e só retoma os empréstimos após a derrota eleitoral dos Sandinistas nas eleições de fevereiro de 1990 e a vitória de Violeta Barrios de Chamorro, candidata conservadora apoiada pelos Estados Unidos.
4.4 Apoio à ditadura de Mobutu
Gráfico 4 : Congo-Kinshasa (Zaire DE Mobutu) : pagamentos do Banco Mundial
Fonte: Banco Mundial, CD-Rom GDF, 2001
(tradução legendas: milhões, queda do Muro de Berlim; Relatório Blumenthal)
Em 1962, um relatório do Secretário Geral da Nações Unidas informa que Mobutu desviou vários milhões de dólares, destinados ao financiamento das tropas. Em 1982, um representante autorizado do FMI, Erwin Blumenthal, banqueiro alemão, antigo responsável pelo Departamento Internacional do Bundesbank, faz um relatório duro sobre a gestão de Mobutu no Zaire. Adverte os credores estrangeiros de que não devem esperar ser reembolsados enquanto Mobutu estiver no poder.
Entre 1965 e 1981, o governo do Zaire pediu emprestados 5 mil milhões de dólares ao estrangeiro e, entre 1976 e 1981, a dívida externa sofreu quatro reestruturações no Clube de Paris, num montante de 2,25 mil milhões de dólares.
A péssima gestão económica e o desvio sistemático de uma parte dos empréstimos não levaram o FMI e o Banco Mundial a interromperem a ajuda ao regime ditatorial de Mobutu. É impressionante observar que após o relatório Blumenthal, os pagamentos efetuados pelo Banco aumentam [15] (os do FMI também, mas não foram considerados no gráfico). Manifestamente, as escolhas do Banco Mundial e do FMI não são determinadas pelos princípios de boa gestão económica. O regime de Mobutu é um aliado estratégico dos Estados Unidos e de outras potências influentes no seio das instituições de Bretton Woods (por exemplo, França e Bélgica), enquanto dura a Guerra Fria. A partir de 1989-1991, com a queda do muro de Berlim e, mais tarde, com a implosão da União Soviética, o regime de Mobutu perde interesse, numa altura em que, também em muitos países de África (entre os quais o Zaire), se dá início a conferências nacionais, que dão destaque a reivindicações em prol da democracia. Os empréstimos do Banco começam a diminuir e cessam, por completo, em meados dos anos noventa.
4.5 Apoio do Banco à ditadura de Ceausescu na Roménia
Gráfico 5 : Roménia : pagamentos do Banco Mundial
Fonte: Banco Mundial, CD-Rom GDF, 2001
(Tradução das legendas: início da Presidência de Ceausescu; Isolamento de Ceausescu na cena internacional)
A partir de 1947, a Roménia adere ao bloco soviético. Em 1972, é o primeiro país satélite da União Soviética a juntar-se ao Banco.
Ceausescu é, desde 1965, secretário-geral do Partido Comunista no poder; em 1968, critica a intervenção da URSS na Checoslováquia e as tropas da Roménia não participam na intervenção ao lado das tropas do Pacto de Varsóvia. Esse distanciamento em relação a Moscovo leva nitidamente Washington, via Banco Mundial, a tentar estabelecer relações com o regime romeno.
O Banco começa, desde 1973, a negociar com Bucareste o lançamento de uma política de empréstimos, que atinge muito rapidamente um volume apreciável. Em 1980, a Roménia torna-se o oitavo país mais importante na lista de países que pediam empréstimos ao Banco. Um dos historiadores do Banco, Aart van de Laar, conta uma anedota sintomática que remonta a 1973. Ele assistia, no início de 1973, a uma reunião da direção do Banco, constando da agenda o início da concessão de empréstimos à Roménia. Perante a incredulidade de certos dirigentes que criticavam a ausência de um relatório detalhado sobre a Roménia, Robert McNamara teria declarado que tinha uma grande confiança na moralidade financeira dos países socialistas em termos de reembolso de dívida. Ao que um dos vice-presidentes do Banco, presente na reunião, teria respondido que “o Chile de Allende talvez ainda não se tivesse tornado suficientemente socialista”. [16] McNamara ficou gelado.
As opções do Banco não se baseiam em critérios económicos convincentes. De facto, primo, se, por um lado, o Banco, com regularidade, recusava emprestar a países que não tivessem regularizado antigas dívidas soberanas, por outro lado, dava início à concessão de empréstimos à Roménia sem que ela tivesse conseguido resolver um litígio referente a dívidas antigas. Secundo, as transações económicas da Roménia faziam-se, sobretudo, no interior do Comecon em divisas não convertíveis: como poderia pagar os empréstimos em divisas fortes? Tercio, a Roménia recusa-se de início a fornecer informações económicas requeridas pelo Banco. São, portanto, claramente razões de ordem política, que levaram o Banco a decidir estabelecer relações estreitas com a Roménia. Tratava-se de desestabilizar a URSS e o bloco soviético no contexto da Guerra Fria. A falta de democracia interna e a sistemática repressão policial não pareciam fazer dissuadir o Banco de intervir mais neste caso do que noutros.
Pelo contrário, a Roménia torna-se um dos maiores clientes do Banco que financia grandes projetos (minas de carvão a céu aberto, centrais termo-elétricas), cujos efeitos negativos em termos de poluição são facilmente perceptíveis. Para a exploração de minas de carvão a céu aberto, as autoridades romenas deslocaram populações que, até então, se dedicavam à agricultura. Numa outra área, o Banco apoia a política de planeamento familiar que visa aumentar a taxa de natalidade.
Em 1982, quando a crise da dívida explode a nível internacional, o regime romeno decide impor à população uma terapia de choque. A Roménia reduz bruscamente as importações para libertar recursos em divisas de modo a pagar a dívida externa a um ritmo acelerado. As consequências são terríveis para a população. Porém, como escrevem os autores do livro encomendado pelo Banco para comemorar seu primeiro meio século de existência “A Roménia era, em certo sentido, um devedor ‘modelo’, pelo menos do ponto de vista dos credores”. [17]
Conclusão
Contrariando a secção 10, do artigo IV dos estatutos do Banco Mundial, o banco e o FMI emprestaram sistematicamente aos Estados com o objetivo de influenciarem as suas opções políticas. Os exemplos apresentados neste estudo mostram que os interesses políticos e estratégicos das grandes potências capitalistas determinam as suas escolhas. Essas grandes potências apoiaram e ajudaram financeiramente regimes cujas políticas económicas não correspondiam aos critérios oficiais das instituições financeiras internacionais (IFI), nem respeitavam os direitos humanos. Por outro lado, os regimes considerados hostis aos interesses das grandes potências foram privados de empréstimos sob o pretexto de não respeitarem os critérios económicos definidos pelas IFI.
Convém perceber que essa política das instituições de Bretton Woods não foi abandonada com o final da Guerra Fria. Prossegue até aos nossos dias: foram concedidos empréstimos à Rússia de Boris Yeltsin, à Indonésia de Mohammed Suharto até à sua queda em 1998, ao Chade de Idriss Déby, à China Popular, ao Iraque sob ocupação estrangeira…
Tradução: CADTM
[1] A Conferência de Bandung, em 1955, foi convocada pelo presidente indonésio Sukharno. Trata-se do ponto de partida do movimento dos não alinhados. Sukharno, Tito e Nehru eram os dirigentes que encarnavam a esperança do Terceiro Mundo perante o antigo sistema de dominação colonial. Eis um extrato do discurso de Sukharno, por ocasião da abertura da conferência: “O facto de os líderes dos povos asiáticos e africanos poderem encontrar-se num dos seus próprios países para discutirem e deliberarem sobre assuntos comuns constitui um novo começo na história (…). Nenhum povo pode sentir-se livre quando parte da sua pátria não é livre. Como a paz, a liberdade é indivisível. (...) Dizem-nos frequentemente que o colonialismo está morto. Não nos deixemos iludir, ou mesmo adormecer, por essa fórmula enganosa. Eu asseguro-vos que o colonialismo está bem vivo. Como poderíamos afirmar o contrário quando vastas regiões da Ásia e da África não são livres? (…) O colonialismo moderno apresenta-se também sob a forma de controlo económico, de controlo intelectual e de controlo físico, exercidos por uma comunidade estrangeira no interior da nação. É um inimigo hábil e decidido, que se manifesta sob diversas formas; não larga facilmente o osso. Não importa onde, não importa quando, não importa com que forma aparece, o colonialismo é um mal que é preciso eliminar da superfície da terra”. (Fonte : Le Monde Diplomatique, « Les objectifs de la Conférence de Bandoeng », edição de maio de 1955, p.1).
[2] Bruce Rich cita exemplos de agências fundadas sob influência do Banco Mundial: na Tailândia, a Industrial Finance Corporation of Thailand (IFCT), o Thai Board of Investment (BOI), a National Economic and Social Development Board (NESDB) e a Electrical Generating Authority of Thailand (EGAT); na Índia, a National Thermal Power Corporation (NPTC), a Northern Coal Limited (NCL)… (ver Bruce Rich, 1994, Mortgaging the Earth, pp.13 e 4).
[3] Rich, op. cit., p. 76. Ver igualmente: STERN Nicholas e FERREIRA Francisco. 1997. “The World Bank as ’intellectual actor’” in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 2, pp. 583-585.
[4] O que coincide com o período da Guerra Fria.
[5] PNUD, Rapport mondial sur le developpement humain, 1994, p.81.
[6] Mahbub ul Haq, “The Bank’s mistakes in Chile”, 26 de Abril de 1976.
[7] Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 301
[8] Memorandum, Mahbub ul Haq to Robert S. Mcnamara, “Chile Country Program Paper – Majority Policy Issues”, 12 de Julho de 1976.
[9] Encontra-se uma análise resumida dos factos em: Payer, Cheryl. 1974. The Debt Trap: The International Monetary Fund and the Third World, Monthly Review Press, New York and London, pp. 143-165.
[10] Em 1965, o Brasil assina um acordo Stand-by com o FMI; recebe novos créditos e vê a sua dívida externa reestruturada pelos Estados Unidos, por diversos países credores da Europa e pelo Japão. Após o golpe militar, os empréstimos passam de zero para uma média de 73 milhões de dólares por ano, durante o resto da década de sessenta, e atingem um nível de quase 500 milhões de dólares por ano, em meados dos anos setenta.
[11] Detalhes em Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, pp. 274-282
[12] World Bank, “Notes on Brazil Country Program Review”, December 2, 1971. Detalhes em Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 276.
[13] ur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1, p. 276
[14] Declarações de David Knox, vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina: « Um dos meus pesadelos era o que faríamos se os nicaraguanos começassem a implementar políticas que pudéssemos apoiar. Temia que as pressões políticas, e não apenas as dos Estados Unidos, fossem tão grandes que nos impediriam de ajudar o país” in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1: History, nota 95 p. 1058
[15] Os historiadores do Banco escrevem em 1982: “Seduzidos pela astúcia de Mobutu e pelas suas promessas de reforma e devido a pressões dos Estados Unidos, da França e da Bélgica, o Banco aventura-se a lançar no Zaire um programa ambicioso de ajustamento estrutural”. in Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1: History, p. 702
[16] Van de Laar, Aart. 1980. The World Bank and the Poor, Martinus Nijhoff Publishing, Boston/The Hague/London, p.40.
[17] Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, Volume 1: History, Brookings Institution Press, Washington, D.C., p. 702.
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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