Bancos centrais: o crepúsculo dos deuses

5 de Setembro por Martine Orange


«Jackson Hole» by Jim_Nix is licensed under CC BY-NC-SA 2.0

Tudo foi diferente este ano em Jackson Hole. A reunião anual dos banqueiros centrais converteu-se numa grande cerimónia de despedida, não só ao presidente da Reserva Federal (Fed), acossado por Donald Trump e que já não voltará, mas também ao seu mundo. A era da omnipotência dos bancos centrais acabou.



Até ao fim, tentaram causar boa impressão e não fornecer motivos aos críticos. O encontro de Jackson Hole (no Wyoming) deste ano, lugar onde se reuniram banqueiros centrais e economistas ao longo de mais de 30 anos, devia decorrer como os anteriores. Durante três dias falaram de economia mundial, inflação, taxas de juros, política monetária, como de costume.

Contudo, a nostalgia e a preocupação impregnaram grande parte do diálogo. Embora não quisessem insistir no assunto, cada um dos oradores prestou homenagem a Jerome Powell, o presidente da Reserva Federal (Fed), com quem passaram por tantas crises (covid, surto inflacionário mundial, desaceleração económica mundial, guerras) nos últimos sete anos. Foi a sua última grande reunião. No próximo ano já não estará ali: Donald Trump anunciou alto e bom som que queria que ele saísse, se possível antes do final do seu mandato em maio de 2026.

Mas Jackson Hole foi mais que uma cerimónia de despedida. Os repetidos ataques do presidente norte-americano contra o presidente da Fed, contra a independência da instituição e seus membros, o auge de um capitalismo predador em que a força prevalece sobre a lei e as tensões geopolíticas cada vez mais agudas fazem com que eles avaliem cada vez mais as mudanças. Definitivamente, está-se a virar a página. A era inaugurada por Paul Volcker em inícios da década de 1980, quando os banqueiros centrais eram potências indiscutíveis e a política monetária parecia governar o mundo, acabou.

 A promessa de baixar a taxa de juros

Este novo clima pesa sobre tudo. Em Jackson Hole todo o mundo esperava orientações monetárias da Fed para finais deste ano, conforme é costume. Jerome Powell respeitou o exercício. A desaceleração do mercado laboral e as perspectivas económicas «podem justificar um ajuste [da] política monetária», explicou ele, sugerindo uma diminuição de um quarto de ponto – actualmente entre 4,25 e 4,5 % – a partir de setembro. Os mercados bolsistas, que especularam massivamente sobre esta queda, registaram imediatamente um novo recorde.

Mas onde está a justificação para esta queda anunciada? O próprio presidente da Fed reconhece que a agressiva guerra comercial travada por Donald Trump, com altas tarifas aduaneiras impostas a quase todos os parceiros comerciais dos EUA, começa a materializar-se e que os preços estão a subir, muito além do mítico objectivo de 2 %, referência de toda a sua política monetária.

A primeira missão do Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). dos EUA consiste em garantir a estabilidade financeira e monetária e lutar contra a inflação. Noutras alturas, o debate teria terminado rapidamente, como reconheceu implicitamente o presidente da Fed de Saint-Louis, Alberto Musalem: «A inflação aproxima-se dos 3 %, um ponto acima da nossa meta, e tenho de avaliar este risco face ao risco não concretizado de um abrandamento do mercado de trabalho». Noutras épocas, esta situação teria aconselhado precauções.

Mas há Donald Trump.

 Sob fogo cruzado da Casa Branca

Mesmo antes de ser eleito, Trump já tinha declarado que a independência da Fed era inoportuna, que seria importante o governo ter não só o direito de controlo, mas também o poder de decisão sobre a política monetária. Desde o seu regresso à Casa Branca, dedicou-se a fazer um bombardeamento em regra ao presidente da Fed, tentando por todos os meios demiti-lo, para nomear alguém da sua confiança. Insultando-o em mensagens nas redes sociais, criticando as suas decisões, exigindo cortes imediatos nas taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. – pelo menos de 1 a 1,5 % –, aproveitou-se de um deslize nos custos das obras de renovação da sede do banco central para exigir a sua saída. Jerome Powell resistiu, mas já está consideravelmente debilitado.

Compreendendo que seria impossível demiti-lo de imediato, como pretendia, sob pena de uma reacção furiosa dos mercados, Donald Trump prossegue as suas manobras de cerco e semeia a discórdia no conselho da instituição. Em inícios de agosto obteve a demissão prematura de uma governadora da Fed, Ariane Kugler, substituída, pelo menos momentaneamente, por um dos inspiradores da sua política, Stephen Miran, enquanto espera por encontrar um candidato adequado para substituir Jerome Powell.

A Casa Branca percebeu que não podia «esmagar» um membro do conselho da Fed sem motivo, como lhe recordou o Supremo Tribunal, mas continua o seu assédio. Pouco antes da reunião de Jackson Hole, voltou a abrir as hostilidades contra outra governadora da Fed, Lisa Cook, acusada de mentir nas suas declarações para obter empréstimos imobiliários mais vantajosos. Nada está provado. Mas Donald Trump exigiu a sua demissão imediata. Por agora, Lisa Cook decidiu resistir.

Perante estes ataques, o conselho do governador está cada vez mais dividido. Uns acham que devem curvar-se ao poder presidencial, outros defendem a necessidade de manter posições firmes para defender a independência da instituição, outros recomendam a conciliação.

Neste contexto, Jerome Powell, ao dar a entender que o banco central poderia baixar as taxas de juro em setembro, dá a impressão de querer satisfazer Donald Trump, como assinala a Bloomberg. Ainda que se defendam, os governadores da Fed já perderam parte do seu poder: as considerações políticas têm agora tanto peso como a racionalidade económica por trás da qual a Fed – e todos os bancos centrais na sua sombra – justificam a sua política monetária.

 Os efeitos retardados da crise de 2008

Mostrar resistência sob a chuva de bombas lançadas pela Casa Branca é ainda mais difícil para a Fed, uma vez que perdeu a sua autoridade e a sua aura. A grande maioria dos EUA já não crê no poder «mágico» do banco central. A crise financeira de 2008, da qual o Ocidente nunca recuperou e que permanece de outras formas, contribuiu para isso.

Já em 2004-2005 vários economistas e académicos tinham lançado alertas sobre os riscos crescentes no sistema financeiro, os desequilíbrios nos balanços bancários, relacionados com uma inflação galopante dos activos imobiliários e financeiros. Do alto do seu púlpito, Alan Greenspan, encarnando a desmesura da omnipotência do poder monetário da Fed, varrera com as costas da mão todas as críticas e advertências: a sua política era simplesmente perfeita.

Menos de seis meses depois da sua saída do banco central, estalou a crise das hipotecas de alto risco.

Perante a ameaça de um colapso generalizado do sistema financeiro internacional, a Fed, em uníssono com todos os demais bancos centrais, respondeu à emergência derramando biliões de dólares, mais de 10 biliões segundo algumas estimativas, para salvar o sistema financeiro. Mas estas acções indispensáveis nunca foram seguidas de uma reflexão tanto sobre os efeitos das suas decisões, como sobre as lições que poderiam ser extraídas da crise.

Todas as medidas, pelo contrário, serviram para que «tudo mude para que nada mude». O capitalismo financeirizado, do qual os bancos centrais são um dos pilares, continuou como antes, mas agora com a ajuda de políticas monetárias cada vez mais tolerantes.

 Um aumento das desigualdades que alimenta o trumpismo

O capitalismo financeiro nunca tinha imaginado que os bancos centrais se atrevessem a ir tão longe para o salvar. Os círculos financeiros descobriram deliciados os benefícios da «flexibilidade quantitativa», símbolo desta política monetária permissiva: as taxas zero, inclusive negativas, permitiam-lhes obter efeitos de alavancagem gigantescos e garantir lucros que o capitalismo produtivo já não conseguia alcançar.

Durante anos esta política foi mantida em nome da estabilidade financeira, do crescimento, sem que os bancos centrais reconheçam a deformação económica e financeira que ela gera. O número de multimilionários decuplicou em menos de 15 anos. As multinacionais converteram-se em gigantes imprescindíveis.

Começando pelas empresas digitais de alta tecnologia – antes da crise de 2008, Google, Meta, Apple, Amazon já eram poderosas, mas não ao ponto de superar os 1.000, 2.000 ou até os 4.000 milhões de dólares, ou seja, mais que o PIB PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
de três quartas partes dos países do Mundo. O poder que adquiriram em apenas 10 anos não se deve apenas às suas inovações e à sua capacidade de investigação tecnológica. As centenas de milhar de capital que conseguiram captar devido ao excedente efectivo vertido no sistema permitiu-lhes converterem-se numa fortaleza financeira e tecnológica mundial intocável.

Ao mesmo tempo, as desigualdades não pararam de aumentar, até alcançarem um nível sem igual desde finais do século XIX. Enquanto o 1 % ou mesmo o 0,1 % dos mais ricos açambarcaram a maior parte dos benefícios das políticas monetárias e acumularam fortunas colossais, as classes populares e médias sofreram uma degradação do nível de vida sem precedentes, sem nenhuma esperança de melhoria à vista.

O trumpismo e todos os movimentos de extrema direita que abalam a Europa em particular provêm daí, alimentam-se dessa degradação e frustração. Mas os bancos centrais nunca quiseram reconhecer a sua quota de responsabilidade nessa trajectória.

 A tomada do poder monetário

Os discursos de Donald Trump exigindo que o poder político retome o controlo do poder monetário e imponha as suas decisões encontra mais eco a cada dia que passa. Obcecado com o mundo passado, o economista Kenneth Rogoff explica este movimento por via da importância da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. criada na última década. A dívida pública acumulada, os custos que provoca, levam, segundo ele, os estados a «exercerem intensas pressões sobre os bancos centrais para que baixem as taxas de juro».

Ainda que exista vontade de reduzir a dívida pública, a dinâmica que impulsiona Donald Trump parece ter outros motivos. Para além da vontade de exercer um presidencialismo sem limites, os seus objectivos são claros: longe de querer pôr a moeda ao serviço dos interesses de todos, trata-se, para os mais ricos que agora estão instalados no coração da máquina governamental, de deitar as mãos ao último bastião que lhes resiste: o banco central.

Já começaram a minar os fundamentos da sua autoridade. Ao promulgar a «Lei Genius», que permite a criação de moedas digitais privadas, e ao proibir a Fed de criar o seu próprio dólar digital, Donald Trump já abalou o poder monetário. Como controlar a criação monetária, sob um regime estável, com moedas privadas que escapam a todo o controlo, a qualquer regulamentação, ao mesmo tempo que o executivo lhes confere o mesmo estatuto que à sua moeda nacional?

Mas isto ainda não lhes basta: querem deitar mão à caixa-forte da Fed, apropriar-se da criação monetária. Querem ter a certeza de que beneficiarão eternamente de taxas de juro baixas, querem a garantia de que o banco central correrá em seu auxílio ao menor incidente e desbloqueará os milhares de milhões de que necessitem. É este o objectivo final perseguido por estes ricos.

Como assinala o economista e historiador Arnaud Orain no seu livro Le Monde confisqué – Essai sur le capitalismo de la finitude («O Mundo Confiscado – Ensaio sobre o capitalismo da finitude») (ed. Flammarion), o «liberalismo económico, com a sua promessa de abundância para a maioria, acaba sempre por engendrar o seu próprio fim: esbarra na constatação da sua própria finitude». Quem tanto beneficiou do sistema está agora disposto a acabar com ele, para preservar o poder e a riqueza de que dispõe.

Nos últimos meses, o Banco de Compensações Internacionais (BRI), que é o banco central dos bancos centrais, desdobrou-se em advertências sobre os perigos de questionar a independência dos bancos centrais. Abundam as referências históricas sobre as catástrofes provocadas pelos poderes políticos que quiseram manipular o poder monetário. Tudo isto em vão. Ao não querer mudar o curso das coisas após a crise de 2008, ao não decidir ou não poder lançar, para além de declarações genéricas, um novo sistema para responder às mudanças e pôr em marcha as ferramentas que lhes permitam desenvolver-se, os bancos centrais participaram no nascimento de novos monstros. Perante a inexorável ascensão do capitalismo predador e extorcionista, chegou o crepúsculo dos bancos centrais.


Fonte: sinpermiso.info, extraída de Mediapart

Tradução: Rui Viana Pereira, a partir da tradução para castelhano de G. Buster

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