Entrevista a Cristiane Sampaio
Fundadora da Auditoria Cidadã da Dívida critica o discurso que legitima proposta de reforma da Previdência de Bolsonaro
11 de Março de 2019 por Maria Lucia Fattorelli
Maria Lucia Fatorelli durante audiência pública no Senado Federal, em Brasília (DF) / Ana Volpe/Agência Senado
O cenário de crise econômica que se alastra pelo país nos últimos anos toma fôlego com a política monetária do Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). , ponta de lança do processo que vem provocando a quebra da economia e os altos índices de desemprego em cadeia nacional. A leitura é da auditora fiscal Maria Lucia Fattorelli, fundadora e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, movimento que atua em prol da transparência nas finanças públicas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a auditora destaca a preocupação com a supremacia dos bancos ao longo de diferentes governos, critica o discurso oficial de defesa da reforma da Previdência e sustenta: “Querem deixar o nosso povo acreditando nas sombras. A gente tem que sair da caverna e enxergar nossas potencialidades”.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Cristiane Sampaio: dando um panorama da crise econômica atual, quais fatores teriam sido primordiais pra colocar o país nesse caminho?
Maria Lucia Fattorelli: Na nossa opinião, foi a política monetária do Banco Central (BC). A partir de 2013, ele começou a subir as taxas de juros em todas as reuniões até chegar em 14,25%, que é um absurdo, uma taxa extremamente alta e, quando chegou nesse valor, ficou nesse patamar por mais de um ano. Em março de 2013, estava 7,25%; em abril, foi pra 7,50%; em maio, pra 8%; em julho, pra 8,50%; em agosto, pra 9%; em novembro pra 10%; em abril de 2014, 11%; em janeiro de 2015, já estava em 12,25%; abril, 13,25%; e julho, 14,25% [novamente]. Veja bem, ficou em 14,25% até outubro de 2016.
Demorou muito pra cair também, então, ao mesmo tempo em que o BC começou a acelerar a taxa básica, ele aumentou as compromissadas [modalidade de operação de investimento em que o BC vende ou compra títulos públicos com a responsabilidade de recomprá-los ou revendê-los em uma data futura], o que é, na prática, a remuneração da sobra de caixa dos bancos, em que ele enxuga moeda e entrega título da dívida.
As compromissadas atingiram R$ 1 trilhão no início de 2016, então, uma coisa combinada com a outra significou uma escassez de moeda brutal no mercado. E qual a consequência disso? Os bancos, com toda a sobra que têm pra emprestar, em vez de emprestarem pras indústrias, para o comércio, pras pessoas, para a atividade econômica do país, preferiram colocar no BC, porque a taxa de juros estava alta demais e no BC eles não perdem um dia. Então, eles preferiram pôr essa montanha de dinheiro no BC do que remunerar diariamente, e a indústria, o comércio, todas as empresas, que precisam de crédito, começaram a quebrar porque o crédito ficou alto demais.
Os juros de mercado foram pra mais de 220%, 300% ao ano, e aí a quebradeira de indústria, de estabelecimentos comerciais jogou o povo no desemprego. Em 2015, tivemos um desemprego recorde. E aí o governo, pra não enfrentar a benesse do mercado financeiro Mercado financeiro Mercado de capitais a longo prazo. Inclui um mercado primário (o das emissões) e um mercado secundário (o da revenda). A par dos mercados regulamentados encontramos mercados fora da bolsa, onde não existe a obrigação de satisfazer regras e condições mínimas. , a política monetária do BC, ainda veio com as desonerações [incentivos fiscais para produtos ou operações], ainda no tempo da Dilma. Isso aí agravou mais porque diminui mais ainda a arrecadação e não resolveu o problema das empresas porque elas precisavam de crédito pra financiar sua atividade. A desoneração beneficiou só algumas que já estavam no ponto de vender e distribuir seus produtos.
Então, o que provocou a crise aqui no Brasil foi essa política monetária, e ninguém olha pra ela. Ela não é ensinada nas escolas. Enquanto estavam todos os jornais todo dia dando notícias de Lava Jato, de impeachment da Dilma, o BC estava fazendo essa política, que transferiu um valor brutal de recursos pro setor financeiro.
Além desses fatores que você mencionou, tem alguma outra coisa que ajuda a mover a engrenagem da crise econômica?
Isso daí é o principal. A partir daí, vai desorganizando. Um outro fator é o modelo tributário no Brasil, que penaliza muito a classe trabalhadora, as classes média e baixa, e são as pessoas que tudo que ganham volta pra economia. O salário aqui no Brasil é tão baixo que classes média e baixa têm muito pouca capacidade de fazer poupança. E como que é o nosso modelo tributário? Ele não tributa as grandes rendas, as grandes faixas de renda, e aí isso desorganiza mais ainda a economia, abre mão de uma arrecadação enorme, de arrecadação dos tributos que poderiam incidir sobre o lucro Lucro Resultado contabilístico líquido resultante da actividade duma sociedade. O lucro líquido representa o lucro após impostos. O lucro redistribuído é a parte do lucro que é distribuída pelos accionistas (dividendos). distribuído, sobre as heranças, as fortunas, e isso também desorganiza muito a economia.
Por que o Brasil, que é conhecido mundialmente como um país de grandes riquezas, amarga esta crise econômica atual? Que tipo de ideologia econômica nos trouxe a esse processo?
Olha, está acima das ideologias conhecidas, acima de qualquer coisa. É uma ganância do mercado financeiro. Isso está acima dos governos, de partidos. Nós temos que ver em que fase da história estamos vivendo, que é a do capitalismo financeirizado. O grande capital está entrando aqui no Brasil de uma forma que há anos domina os diferentes governos que vivemos. Você vê que, no governo do PT, quem dirigia o BC? O Meirelles [Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e atual secretário da Fazenda do Estado de São Paulo], banqueiro.
Então, não mudou nada. Isso está acima de ideologia e é um domínio, um poder mundial. E, infelizmente, aqui no Brasil as forças políticas não prestam a devida atenção nisso. Você vê, por exemplo, a pouca atenção que tem a demanda por uma auditoria cidadã da dívida, que é a ferramenta que poderia mostrar, por exemplo, esse escândalo das compromissadas, porque isso daí tem a dívida por trás.
Essa pouca visão, esse turvamento da visão em relação às finanças está fazendo esse domínio financeiro chegar num ponto em que agora [eles afirmam que] a dívida justifica a contrarreforma da Previdência, justifica a entrega da Casa da Moeda, da Eletrobras, da Petrobras, e querem entregar até Banco do Brasil e Caixa Econômica, criando outro mecanismo, o da securitização de créditos, em que os bancos já vão se apoderar diretamente da arrecadação tributária, que nem vai alcançar o orçamento público. Então, ou a população acorda ou não vai ter jeito. Estamos perdendo o país.
A economia nacional iniciou este ano de 2019 sem fôlego e alguns atores sustentam que uma alavancagem só seria possível com a reforma da Previdência. O que tem de armadilha nesse discurso?
A reforma da Previdência vai fazer o contrário. Quando o governo fala em fazer uma economia de R$ 1 trilhão – que os analistas já falaram que não é isso, e sim R$ 700 bilhões –, que economia é essa? É dinheiro que vai deixar de chegar às mãos da classe trabalhadora através de aposentadorias e benefícios assistenciais. O que acontece quando a população tem menos recursos em suas mãos? Ela não tem recursos pra consumir nem pra comprar alimento direito e aumenta até o [nível de] adoecimento. Então, é um tiro no pé, e mais de 70% dos municípios brasileiros têm a sua economia movimentada pelos recursos da Seguridade Social…
Você mencionou aqui o fato de a população não ter conhecimento sobre o que realmente acontece com a economia do país. Uma educação mais voltada para esse tipo de esclarecimento poderia ser o caminho pra tirar o Brasil desta situação?
Sim, e esse tem sido, inclusive, o esforço da Auditoria Cidadã da Dívida ao longo dos anos, popularizando o conhecimento sobre a realidade financeira porque, veja bem, essa propaganda de que o Brasil está quebrado, de que o país não tem saída, junto com esse menosprezo pelo povo brasileiro, com essas piadinhas de mau gosto de chamar o nosso povo de ‘povinho’, colocando no chão a autoestima [nacional], essa coisa de não valorizarmos a nossas lideranças que existem no Brasil, de que só sai notícia de corrupção, tudo isso tem uma estratégia por trás de reduzir a autoestima das pessoas, e quem está com autoestima baixa está humilhado, desencorajado e aceita entregar tudo.
A gente tem que fazer o contrário. As pessoas nem sabem o quanto o Brasil é rico, nem sabem das nossas potencialidades, da nossa história, de quanta luta já teve, de quantas pessoas foram desprezadas e moralizadas ao longo da história porque traziam essas informações [de esclarecimento]. Querem deixar o nosso povo dentro da caverna, acreditando nas sombras. A gente tem que sair da caverna e enxergar o nosso país, enxergar as nossas potencialidades. Eu espero que esse ataque agora, esse roubo da Previdência social que representa essa PEC 6/2019 [Proposta de reforma da Previdência do governo de Jair Bolsonaro] sirva pra sacudir as pessoas.
Edição: Guilherme Henrique
Fonte: Brasil de Fato
Coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB. Atuou na Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana (2007/2008) e na Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia realizada pelo Parlamento Helênico (2015). Assessorou a CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010), e a CPI da PBH Ativos S/A realizada pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, na investigação do esquema de Securitização de Créditos Públicos (2017).
11 de Abril, por Maria Lucia Fattorelli
15 de Janeiro, por Maria Lucia Fattorelli
17 de Maio de 2021, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
Fattorelli: “A ausência da auditoria é que tem levado o país ao caos”28 de Abril de 2021, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
Ganham acima de 320 salários mínimos ao mês e quase não pagam imposto7 de Abril de 2021, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
Gastos com a dívida pública cresceram 33% em 202027 de Janeiro de 2021, por Maria Lucia Fattorelli , Rodrigo Ávila , Rafael Muller
Video
Latitud Brasil : Entrevista com Maria Lucia Fattorelli7 de Janeiro de 2021, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
Fontes de recursos recursos para a saúde: onde buscar14 de Dezembro de 2020, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
PEC 32: A destruição do Estado Social concebido na Constituição de 8821 de Outubro de 2020, por Maria Lucia Fattorelli
Brasil
Qual reforma tributária queremos16 de Setembro de 2020, por Maria Lucia Fattorelli