Brasil: golpe de Estado institucional à laia de destituição

11 de Janeiro de 2019 por Jérôme Duval


Lançando mão de um golpe de Estado institucional, a oligarquia brasileira conseguiu destituir a presidente em exercício, Dilma Rousseff, e colocar no poder o vice-presidente Michel Temer, sem passar pelas urnas. Temer tornou-se o presidente mais impopular da história do Brasil, mas logo a seguir foi tempo de esquecer essas proezas e deixar falar as urnas … para legitimar o ilegitimável: a ascensão progressiva, desde 2015, de um regime autoritário, acompanhado do ressurgimento do papel político dos militares, no seguimento de um golpe de Estado parlamentar.

Para compreendermos o contexto no qual se desenrola a eleição de Outubro de 2018, que levou o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro à Presidência da República, pelo Partido Social-Liberal (PSL), teremos de recuar um pouco.




Procedimento de destituição ilegítimo e golpe de Estado parlamentar

A 2 de Dezembro de 2015 foi desencadeado um processo de destituição (impeachment) [1] controverso, por iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, centro), contra a presidente em funções, Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT, centro-esquerda), democraticamente eleita em 2010 e reeleita em 2014 com 51,64 % dos votos na segunda volta do escrutínio. Este processo de destituição surgiu poucas horas depois de os deputados do PT terem votado a favor de um inquérito sobre Eduardo Cunha no Conselho de Ética da Câmara de Deputados. O arquitecto da destituição de Dilma Rousseff – evangélico, ultraconservador e adversário encarniçado da despenalização do aborto – era suspeito de ter desempenhado um papel no negócio da Petrobras e de ter contas secretas na Suíça, alimentadas por luvas, onde teria dissimulado 5 milhões de dólares, dos quais são beneficiários ele próprio e a sua esposa Cláudia Cruz. O Supremo Tribunal acabaria por suspendê-lo das suas funções e, a 12 Setembro 2016, uma maioria esmagadora de deputados declarou-o inelegível até Janeiro de 2027.

Apesar disso, o procedimento contra Dilma Rousseff prosseguiu e a 17 de Abril de 2016, após uma maratona de quase 43 horas num clima de ódio, os deputados decidiram pela destituição da presidente. Jair Bolsonaro pronuncia então um breve discurso [2] no qual agradece calorosamente a Eduardo Cunha «pela forma como conduziu os trabalhos [que levaram à destituição]» e presta homenagem a um dos piores responsáveis pela repressão política sob a ditadura: «Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pela nossas forças armadas, por Brasil acima de tudo e por deus acima de todos, o meu voto é sim» [3]. O seu sim à destituição da presidente, dedicado ao extorsionário responsável pela tortura de Dilma Rousseff, ecoou na sala da Câmara como uma declaração de guerra susceptível de fazer ressurgir os demónios do passado e escandalizou a opinião brasileira e internacional. De Setembro 1970 a Janeiro 1974, sob o comando do coronel Ustra, um dos personagens mais temidos da ditadura militar, quase 500 pessoas foram torturadas no principal órgão da repressão armada em São Paulo (a sede DOI-CODI), por onde passou a própria Dilma Rousseff. Mais de 50 pessoas foram dadas como desaparecidas ou assassinadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade – CNV).

Nesse dia, mais de dois terços dos deputados pronunciaram-se pela destituição, abrindo a via ao seguimento do processo. Finalmente, após uma votação no Senado a 13 Agosto 2016, Dilma Rousseff foi oficialmente destituída. Os políticos corruptos, uma justiça reaccionária, o grande patronato brasileiro e os meios de comunicação dominados pelas altas famílias da oligarquia conseguiram a proeza de instalar Michel Temer (PMDB) no poder, sem passar pelas urnas. É preciso notar que a destituição de Dilma Rousseff não foi justificada por actos de corrupção mas sim por irregularidades contabilísticas, a famosa «pedalada fiscal», delito frequentemente cometido pelos predecessores de Dilma Rousseff e por numerosos governadores dos Estados e cuja gravidade não é suficiente para justificar uma destituição presidencial. Ou seja, Dilma Rousseff não estava implicada em nenhum escândalo de corrupção.

A contrario, os parlamentares putschistas (deputados e senadores), a começar pelos membros do PMDB de Temer, estão profundamente implicados em actos de corrupção. Vários ministros do presidente interino também estavam envolvidos em escândalos e tiveram de abandonar o governo. Apenas onze dias após a entrada em funções, o ministro do Planejamento, Romero Juca (PMDB), foi demitido a 23 Maio 2016, após ter sido condenado por abafar o escândalo Petrobras, no qual ele próprio estava implicado; Fabiano Silveira, ministro da Transparência, pasta recém-criada para lutar contra a corrupção (!), demite-se a 30 Maio 2016; o ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves (PMDB), suspeito de corrupção, demite-se a 16 Junho 2016. Por fim é a vez do secretário do Governo, Geddel Vieira Lima (PMDB), ser acusado de tráfico de influências no quadro de um projecto imobiliário; demite-se a 25 Novembro 2016. José Serra (PSDB [4]), que sofreu duas derrotas eleitorais na segunda volta – primeiro contra Lula em 2002, depois contra Dilma Rousseff em 2010 –, foi nomeado ministro das Relações Exteriores a 12 Maio 2016. Formalmente acusado pela Justiça brasileira de corrupção, demite-se do Governo de Temer a 22 Fevereiro 2017, invocando razões de saúde. Ao todo, o governo interino foi recomposto seis vezes.

E Michel Temer, caído de pára-quedas no topo do aparelho de Estado após a operação de destituição? Trata-se de um personagem mafioso manchado por acusações de desfalques, muitos delas assentes em provas esmagadoras [5], alvo de dois inquéritos públicos por corrupção e associação criminosa. Apesar desta situação, incompatível com o cargo que exercia, beneficiou de impunidade até ao fim do mandato e continuará a beneficiar até 1 Janeiro 2019, pelo que não pode cumprir pena. E para garantir a impunidade pagou luvas a Eduardo Cunha, presidente do Parlamento que tinha lançado o processo de destituição, a fim de comprar o seu silêncio [6].

É difícil resumir toda a literatura sobre a operação Lava Jato (o escândalo da Petrobras) em poucas linhas, mas deve assinalar-se que o PT está longe de ser o único partido afectado pela corrupção [7]. Desde sempre a corrupção foi uma gangrena na política brasileira, mas subitamente ganhou foros de ribalta como nunca tinha tido, graças à diligência dos grandes meios de comunicação e da oposição, depois de ter sido denunciada pela esquerda aquando das acções do Movimento Passe Livre [8] contra o aumento dos preços dos transportes públicos em 2013. A oposição a Dilma Rousseff serviu-se disso como arma para legitimar o processo de destituição. Paradoxalmente, os responsáveis políticos que apontaram o dedo encarniçadament ao PT são eles próprios em muitos casos responsáveis por desfalques … O exemplo mais flagrante é o do arquitecto da destituição de Dilma Rousseff, Eduardo Cunha, que apanhou uma pena de 15 anos e 4 meses de prisão por corrupção, branqueamento de dinheiros e evasão ilegal de divisas [9].


Tradução: Rui Viana Pereira

Artigo publicado no blog Un monde sans dette do jornal Politis. O autor agradece calorosamente a Joaquín de Santos Barbosa, Rémi Chatain, Matthias Sant’Ana, Joaldo Dominguez, Deborah Cavalcante, Mats Lucia Bayer e Yvette Krolikowski.

Notas

[1Fernando Collor de Mello, primeiro presidente após a queda do regime de ditadura militar, foi também o primeiro presidente a ser destituído no Parlamento, a 29 Setembro 1992. José Sarney é considerado o primeiro presidente pós-ditadura, apesar de ter sido designado por um parlamento eleito sob a ditadura…

[2«Jair Bolsonaro Voto Sim Impeachment 2016 HD»: https://www.youtube.com/watch?v=SroqvAT71o0, consultado a 26 novembre 2018: «Para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para historia nessa data, pela forma como conduziu os trabalhos nessa casa. Parabéns presidente Eduardo Cunha! Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família, pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo exército de Caxias. Pela nossas forças armadas, por Brasil acima de tudo e por deus acima de todos, o meu voto é sim.»

[3Mariana Della Barba e Marina Wentzel «Discurso de Bolsonaro Deixa Ativistas “estarrecidos” e Leva OAB a Pedir Sua Cassação», BBC Brasil, 20 Abril 2016.

[4PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira.

[5Marina Lopes, «Brazilian President Temer survives a vote to suspend him on corruption charges»The Washington Post, 2 Agosto 2017.

[6«Au Brésil, la fabrique des démagogues», Glenn Greenwald & Victor Pougy, Le Monde Diplomatique, Outubro 2018.

[7Em 2013, o PT estava classificado no nono lugar da lista dos partidos mais corruptos do Brasil. « Um Ranking da Corrupção por Partido », 21 Junho2013. http://opiniaoenoticia.com.br/brasil/um-ranking-da-corrupcao-por-partido/

[8O Movimento Passe Livre foi constituído no Foro Social Mundial de Porto Alegre, em 2005. Teve um desenvolvimento importante aquando das manifestações espectaculares de Junho 2013. Ler: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jornadas_de_Junho

[9Glenn Greenwald, Victor Pougy, op. cit.

Jérôme Duval

membro do CADTM (www.cadtm.org) e da PACD (Plataforma de auditoria cidadã da dívida em Espanha, http://auditoriaciudadana.net/). Autor, com Fátima Martín, do livro Construcción europea al servicio de los mercados financieros, Icaria Editorial 2016; é também co-autor da obra La Dette ou la Vie (Aden-CADTM, 2011), livro colectivo coordenado por Damien Millet e Eric Toussaint que recebeu o Prémio do Livro Político na Feira do Livro Político de Liège em 2011.

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