8 de Julho de 2016 por Eric Toussaint
Don Quijote, Jose Guadalupe Posada (1852 - 1913)
Veremos neste texto como as crises das dívidas na periferia estão ligadas às crises capitalistas que ocorrem no epicentro capitalista, onde estão os países mais ricos. Estas crises, por sua vez, são usadas para subordinar muitos estados subdesenvolvidos. Mais a frente veremos uma perspectiva histórica das crises das dívidas na periferia desde o século XIX ao século XXI. Desde a América Latina à China, passando pela Grécia, Tunísia, Egito e o império otomano, a dívida tem sido usada como uma arma de dominação política e um meio de acumulação de riqueza em beneficio das classes dominantes. Este estudo constitui uma introdução a uma serie de seis artigos que tratam sobre «A dívida como instrumento de subordinação da América Latina». Completa quatro artigos recentes, já publicados: “A Grécia independente nasceu com uma dívida odiosa” , «Grécia: a continuidade da servidão mediante a dívida, desde finais do século XIX até a Segunda Guerra Mundial», “A dívida como instrumento para a conquista colonial do Egito”, “França se apoderou de Tunísia usando a dívida como arma”.
A partir dos anos 1820, os governos dos países latino-americanos recém-saídos das guerras da independência se lançaram numa onda de empréstimos externos. Os banqueiros europeus buscavam com entusiasmo ocasiões para endividar estes novos estados, pois era altamente rentável para eles [1]. Num primeiro momento, os empréstimos serviam para os esforços de guerra para garantir e reforçar a independência. Nos anos 1820 os empréstimos externos tomavam a forma de títulos de dívida emitidos por estados por meio de banqueiros ou por corretores de bolsa em Londres. Logo após os anos 1830, motivados pelos altos rendimentos, os banqueiros franceses, com muitos ativos, passaram a disputar com a praça financeira de Londres. No curso das décadas seguintes outras praças financeiras se somaram na concorrência: Frankfurt, Berlim, Anvers, Amsterdam, Milão, Viena… A forma usada pelos banqueiros para emprestar aos estados limitava os riscos aos que se expunham em caso de suspensão dos pagamentos aos possuidores destes títulos. Seria diferente se os empréstimos fossem feitos diretamente aos estados [2]. Não obstante, quando estes banqueiros compravam estes títulos acabavam assumindo risco em caso de suspensão de pagamentos. Por outro lado, a existência de um mercado de títulos ao portador permitia aos banqueiros levar a cabo múltiplas manipulações para buscarem um rendimento elevado.
O recurso ao financiamento externo foi revelado contraproducente para os países em causa, em particular, porque esses empréstimos foram contratados com condições muito favoráveis para os credores. Suspensões de pagamentos eram numerosas e levavam a retaliações pelos países credores que repetidamente usavam a intervenção armada para obter o reembolso. As reestruturações de dívidas serviam normalmente aos interesses dos credores e das grandes potências que os apoiaram e colocavam os países devedores em um círculo vicioso de endividamento, dependência e «desenvolvimento do subdesenvolvimento», para usar uma expressão do economista André Gunder Frank [3].
omo um meio de pressão e subordinação dos países endividados. Tal como sublinha Rosa Luxemburgo em 1913, os empréstimos «são os meios mais seguros dos velhos países capitalistas para manter sob sua tutela os jovens países, controlar suas finanças e colocar pressão sobre a política exterior, alfandegária e o comercial» [4]. Felizmente, o México, em duas ocasiões, saiu forma vitoriosa do confronto com os seus credores (em 1867 sob a presidência de Benito Juarez e, mais tarde, na onda da revolução mexicana liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa, que ordenou a suspensão da dívida em 1914).
O Brasil também enfrentou com sucesso os seus credores, entre 1933 e 1943, bem como o Equador em 2007-2009, sem esquecer Cuba sobre o Clube de Paris de 1986. Quando uma nova crise da dívida na América Latina está em andamento é hora de aprendermos com as lições ocorridas nos dois últimos séculos. Não fazer isso é condenar-se a reviver as tragédias do passado.
A dívida externa como arma de dominação e subordinação
O uso de dívida externa como arma de dominação desempenhou um papel fundamental nas políticas imperialistas dos países desenvolvidos ao longo do século XIX e continua cada vez mais forte no século XXI. Grécia, desde início dos anos de 1820-1830, foi completamente submetida aos ditames das potências credoras (especialmente Grã-Bretanha e França) [5]. O Haiti, que tinha se libertado da França durante a Revolução Francesa e tinha proclamado a independência em 1804, foi novamente submetido a ela em 1825 pela dívida [6]. A Tunísia endividada foi invadida pela França em 1881 e transformada em uma colônia [7]. O Império Otomano, de 1881, foi submetido diretamente aos credores (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália ...) [8], o que acelerou sua quebra. A China foi forçada pelos credores a fazer concessões territoriais e abrir totalmente seu mercado no século XIX. A altamente endividada Rússia czarista também poderia ter se tornado presa aos poderes dos credores se a revolução bolchevique não tivesse repudiado a dívida em 1917-1918.
Das diferentes potências periféricas [9] que poderiam potencialmente acessar o papel de potências capitalistas imperialistas na segunda metade do século XIX, ou seja, o Império Otomano, no Egito, o Império Russo, China e Japão, apenas o Japão conseguiu esta mudança [10]. Na verdade, o Japão não recorreu praticamente a nenhuma dívida externa para o desenvolvimento econômico significativo e se tornar uma potência capitalista imperialista, na segunda metade do século XIX. O Japão experimentou um grande desenvolvimento capitalista autônomo, como resultado das reformas do período Meiji (iniciado em 1868). Importou as técnicas industriais ocidentais mais avançadas, porém evitando a penetração financeira estrangeira no seu território, recusando-se a recorrer a empréstimos estrangeiros no país. Desta forma removeu os obstáculos à circulação de técnicas de produção ocidentais no seu parque industrial. No final do século XIX, o Japão passou de autarquia secular a uma expansão imperialista vigorosa. É claro, a ausência de dívida externa não foi o único fator que permitiu ao Japão saltar para um desenvolvimento capitalista vigorosa e perseguir uma política externa agressiva, entrando no ranking das grandes potências imperialistas. Outros fatores que seria demasiado longo listar aqui operaram igualmente, mas, obviamente, a ausência de dívida externa desempenhou um papel fundamental [11].
Ao contrário China, que até os anos de 1830 levava a cabo um desenvolvimento muito importante e se pretendia uma potência econômica de primeiro nível [12], ao recorrer a empréstimos externos permitiu que as potências europeias e os Estados Unidos gradualmente a marginalizassem e a submetessem. Outros fatores somaram a este processo, tais como guerras lançadas pela Grã-Bretanha e França para impor o livre comércio e as exportações de ópio para China, mas o uso de dívida externa e as suas consequências desastrosas desempenharam um papel muito importante.
Na verdade, para pagar os empréstimos estrangeiros, a China teve que sacrificar e conceder áreas territoriais portuárias para potências estrangeiras. Rosa Luxemburgo menciona, entre os métodos utilizados pelo Ocidente para dominar de «sistema da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. , empréstimos europeus, controle financeiro europeu com o resultado da ocupação das forças chinesas, abertura forçada de portos livres e concessão ferroviária obtida sob a pressão dos capitalistas europeus» [13]. Joseph Stiglitz, quase um século depois de Rosa Luxemburgo, também se refere a isso em sua obra «A Grande Decepção».
As crises da dívida externa da América Latina do século XIX ao século XXI
Desde a independência em 1820, os países latino-americanos tiveram quatro crises da dívida.
A primeira crise ocorreu em 1826, produzida pela primeira grande crise capitalista internacional, que começou em Londres em Dezembro de 1825. Esta crise da dívida durou até os anos 1840-1850.
A segunda começou em 1876 e terminou nos primeiros anos do século XX [14].
A terceira começou em 1931 como desdobramento da crise que havia surgido em 1929 nos Estados Unidos. Seu término ocorre no final dos anos 1940.
A quarta explodiu em 1982, ligada com a elevação da taxa de juros praticada pela Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed) e a queda dos preços das matérias primas. Esta quarta crise terminou em 2003-2004, quando ocorreu um aumento dos preços das matérias-primas e uma queda na taxa de juros. A América Latina também se aproveitou da queda da taxa de juros internacionais como resultado das decisões da Fed, seguidas pelo BCE
Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
e pelo Banco da Inglaterra, a partir da crise bancária no Norte que começou em 2008-2009.
Uma quinta se anuncia como resultado da queda acentuada nos preços das commodities
Commodities
O termo commodities designa, do ponto de vista da produção, os mercados de matérias-primas (produtos agrícolas, minerais, metais e metais preciosos, petróleo, gás, etc.); do ponto de vista financeiro designa os bens susceptíveis de serem transaccionados no mercado financeiro.
, que começou em 2013-2014, e da evolução da economia das principais potências imperialistas, que hoje incluem China (perspectiva de taxas crescentes de juros determinada pela Fed, a bolha do mercado de ações explodiu… causando um retorno de capital para os Estados Unidos, Europa e talvez China). A crise já afeta em cheio Porto Rico [15]. É um prenúncio, mas são especialmente Venezuela e Argentina que correm o risco de dar maior amplitude a crise quando ela estourar, com a particularidade de que uma parte de sua dívida foi contraída com a China, novo grande emprestador na América Latina.
As origens destas crises e sua expansão estão intimamente relacionadas com o ritmo da economia mundial e, especialmente, dos países mais industrializados. Cada crise da dívida foi precedida por uma fase de sobreacumulação do capital nos países industrializados. Neste processo de expansão de capital fictício marcado por uma superabundância do capital, uma grande parte passa a ser reciclado nas economias subdesenvolvidas, seja em títulos ou aplicados em ações.
As origens destas crises e seus momentos de estão intimamente ligados ao ritmo da economia mundial, em especial dos países industrializados. Cada crise da dívida é precedida por uma fase de sobreaquecimento da economia dos países mais industrializados do Centro, durante a qual ocorre superabundância de capitais. Uma parte destes capitais é reciclada em direção às economias da Periferia. As fases que antecedem a eclosão da crise, durante as quais a dívida cresce fortemente, correspondem ao fim de um ciclo longo expansivo dos países mais industrializados, salvo no caso presente, porque dessa vez não se pode falar de ciclo longo expansivo, exceto em relação à China (e outros BRICS). A crise é geralmente causada por fatores externos aos países endividados: uma recessão ou um krach financeiro que atinge um ou vários países industrializados; uma mudança da política de taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. decidida pelos bancos centrais das grandes potências dessa época.
O dito acima está em desacordo com a narrativa da crise que domina o pensamento econômico-histórico dominante [16] que é divulgado pela grande média e pelos governos ligados ao sistema da dívida. De acordo com a narrativa dominante, a crise que eclodiu em Londres, em dezembro de 1825, e se espalhou para outras potências capitalistas, resultou do sobre-endividamento dos Estados latino-americanos; na década de 1870, o sobre-endividamento da América Latina, do Egito e do Império Otomano; na década de 1890, quase causando a falência de um grande banco britânico, o endividamento da Argentina; na década de 2010, o endividamento da Grécia e, mais genericamente, dos PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).
A crise da dívida e as ondas longas da economia capitalista internacional
Há uma relação entre o estouro dessas quatro crises e as ondas longas do capitalismo. Este conceito de ondas longas do desenvolvimento capitalista, desde o início do século XIX, teve a contribuição de vários autores, incluindo Ernest Mandel. Estes deram uma contribuição importante, nomeadamente quanto ao impacto do fator político sobre o desenvolvimento e os resultados de ondas longas nas economias periféricas [17]. Ernest Mandel propôs a periodização seguinte para as ondas longas desde o final do século XVIII até inicio do século XX [18]:
As fases de expansão forte, assim como as fases de expansão lenta, estão subdivididas em ciclos mais curtos que variam entre 7 a 10 anos e que acabam em crise.
Depois de uma crise financeira da Bolsa de Valores em 1825, a primeira crise moderna da superprodução de mercadorias (1826) abriu o caminho para uma longa onda de crescimento lento (1826-1847) e para a primeira crise da dívida na América Latina (que começa em 1826-1827).
A segunda crise eclodiu em 1873 como resultado de uma quebra na Bolsa de Viena, seguida pela quebra da Bolsa de Nova York. Este fato foi marcado por uma longa depressão nas economias industrializadas 1873-1893. Na América latina sua consequência foi uma crise da dívida na década de 1870.
Como resultado da crise em Wall Street, em 1929, a depressão da década de 1930 na economia global provoca a crise da dívida na América Latina. Todavia, suas consequências geraram um cenário diferente da fase anterior. De fato, como resultado notadamente da decisão de não pagar a dívida de quatorze países latino-americanos, a crise da dívida levou um boom industrial de longa duração nos principais países (notadamente Brasil e México) em contradição com a crise dos países do Centro.
A quarta crise começou em 1982 e foi causada pelo efeito combinado da segunda recessão econômica global (1980-1982) no pós Segunda Guerra, marcada pela queda dos preços das matérias-primas (que estava ligado à recessão) e a elevação da taxa de juros pelo Fed (banco central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). dos EUA) de 5% para 20% em 1979, visando à retomada da hegemonia do dólar.
As quatro primeiras crises duraram de 15 a 30 anos. A quinta crise já está nos seus primeiros passos e afeta o conjunto dos estados independentes da América Latina e do Caribe, quase sem exceção.
No decorrer dessas crises, foram frequentes suspensões de pagamento da dívida. Entre 1826 e 1850, durante a primeira crise, a maioria dos países suspendeu o seu pagamento. Em 1876, onze países latino-americanos suspenderam seus pagamentos. Em 1930, onze países do continente decretaram moratórias. Entre 1982 e 2003, México, Bolívia, Peru, Equador, Brasil, Argentina, Cuba tiveram suspensão de pagamento, por um período de vários meses ou vários anos. A suspensão decretada pela Argentina entre o fim de 2001 e Março de 2005, num montante de cerca de US$ 90 bilhões permitiu um crescimento econômico sustentado.
Na maioria dos casos, as suspensões de pagamentos foram seguidas por reestruturação favorável aos interesses dos credores. Exemplos de estados periféricos que vitoriosamente repudiam as suas dívidas são muito raros, mas eles existem. Este é o caso do México durante o mandato do liberal Benito Juarez, o primeiro presidente indígena da América Latina [19].O México, que suspendeu o pagamento da dívida odiosa
Dívida odiosa
Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:
1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.
É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)
O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.
E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»
Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
, em 1861, conseguiu expulsar o Corpo expedicionário Francês em 1866 após quatro anos de combates pesados e a imposição de um imperador Europeu, Maximiliano da Áustria. Em 1867, o México repudiou a dívida reclamada pela França. Igualmente raros são os casos em que um Estado organizou uma auditoria da dívida, a fim de questionar o seu pagamento. Foi em especial o caso do Equador, em 2007-2008. Seus exemplos são ricos em ensinamentos.
As ondas longas de evolução do capitalismo Vamos ver o que diz Michel Husson: «A teoria das ondas longas já tinha sido objeto do Capítulo 4 do capitalismo tardio (Mandel, 1972) antes de ser desenvolvido durante uma série de palestras dadas em Cambridge em 1978, o que levou a publicação de «As Ondas Longas do Desenvolvimento Capitalista em 1980». Uma das propostas essenciais desta teoria é que o capitalismo tem uma história, e que esta história não obedece a um funcionamento cíclico. Isso leva a uma sucessão de períodos históricos, marcada por características específicas, com momentos de auge e recessões. Essa alternância não é mecânica: não basta esperar 25 ou 30 anos. Se Mandel fala onda em vez de ciclo, é claramente porque a sua abordagem não está localizada em um esquema, geralmente atribuído – talvez erroneamente – a Kondratieff, de movimentos regulares e alternados de preços e de produção. Um dos aspectos importantes da teoria de ondas longas é quebrar a simetria das inflexões: a passagem da fase de expansão para a fase depressiva é «endógena», no sentido de que ela é o jogo do funcionamento interno do sistema. Pelo contrário, a passagem da fase depressiva para a fase de expansão é exógena, não automática, e envolve uma reconfiguração do ambiente social e institucional. A ideia-chave aqui é que a transição para a fase de expansão não é dada com antecedência e exige reconstituir uma nova «ordem produtiva». Isto leva tempo, e não há, portanto, um ciclo semelhante ao ciclo econômico, cuja duração pode ser relacionada com a vida do capital fixo. Esta é a razão pela qual esta abordagem não dá qualquer prioridade às inovações tecnológicas: na definição desta nova ordem de produção as transformações sociais desempenham um papel essencial (correlação de forças entre capital e trabalho, o grau de socialização, as condições de trabalho, etc.). (Ver Michel Husson: http://www.contretemps.eu/lectures/ e http://www.vientosur.info/IMG/pdf/O). Adaptando um pouco a apresentação cronológica de Ernest Mandel: 1. 1789-1848: Período da Revolução Industrial, as grandes revoluções burguesas das guerras napoleônicas e a constituição do mercado mundial de bens manufaturados. Fase ascendente da onda 1789-1825; fase de crescimento lento 1826-1848. 2. 1848-1893: Período do capitalismo industrial de «livre concorrência», com uma ascensão de 1848-1873 e uma fase descendente de 1873-1893 (longa depressão do capitalismo no capitalismo de «livre concorrência»). 3. 1893-1913: Apogeu do imperialismo clássico e do capital financeiro. É uma fase ascendente com crescimento forte. 4. 1914-1940: Período de declive do capitalismo, época das guerras interimperialistas, das revoluções e das contrarrevoluções. Fase de crescimento lento com a maior crise da história capitalista. 5. Desde 1940 nos Estados Unidos e na América Latina e depois da Segunda Guerra Mundial para a Europa: forte fase de crescimento no âmbito da terceira idade do capitalismo (capitalismo tardio) seguido por derrotas sofridas pelo movimento operário na década de 1930. Esta fase de forte crescimento («os trinta gloriosos» do segundo alguns autores) acaba nos Estados Unidos na década de 1960 e na Europa durante a década de 1970. A partir do início da década de 1980, entra-se uma fase de crescimento lento. A quarta crise da dívida na América Latina (e em geral dos chamados países em desenvolvimento) começou em 1982. De acordo com Michel Husson, «Desde a publicação do livro de Mandel, a economia mundial mudou drasticamente. Com a ascensão dos países chamados “emergentes”, estamos testemunhando uma verdadeira “mudança radical no mundo” cuja medida pode ser tomada com a ajuda de alguns números. Assim, os países emergentes realizaram em 2012 metade das exportações industriais do mundo, quando sua parte foi de apenas 30% no início da década de 1990. Desde o início de 2000, a totalidade da progressão da produção industrial mundial tem sido feita nos países emergentes. O capitalismo parece assim encontrar um segundo fôlego na deslocalização da produção em países com significativos ganhos de produtividade, e onde o nível salarial é muito baixo (…)» «O raciocínio sobre os “velhos países capitalistas” ou a totalidade da economia global, já não é o mesmo: o crescimento da produção (incluindo a produção industrial), os ganhos de produtividade e o desenvolvimento da classe trabalhadora encontram-se desde o início do século XXI em países do Sul. Existe mais que uma dessincronização que poderia ser colocada na conta de fatores específicos (...)» «Em última análise, o que é verdadeiro para os velhos países capitalistas do Norte, ou seja, a incapacidade de pôr em prática as bases de uma nova “onda longa expansiva” não parece ser totalmente aplicável a um número de países que se agruparam uma fração significativa da população mundial. Pode-se, no limite, falar de uma onda longa expansiva com respeito a eles. Se é um modo de crescimento que aumenta as desigualdades e bárbaro (pois evoca o auge da Inglaterra do século XIX) é outra questão: o ponto decisivo é que nos países em causa, a acumulação de capital e o crescimento do emprego assalariado dão provas de um dinamismo impressionante.» Acrescento de minha parte que a fase de forte expansão nos países emergentes (com a China à cabeça) e um grande número de países em desenvolvimento mostra sinais de perda de energia ou exaustão a partir de 2014 a 2015, enquanto as economias dos antigos países industrializados permanecem atoladas em crescimento lento. Uma das ideias apresentada neste artigo, é que existe uma estreita relação entre as fases de forte expansão do capitalismo global e a acumulação de dívida nos países periféricos (e, neste caso, a América Latina) estimuladas em particular pela vontade das economias capitalistas mais fortes para aumentar os fluxos de capitais para a periferia (destaco que temos que colocar a China como economia capitalista forte). A mudança da fase de forte crescimento geralmente leva a uma crise da dívida nos países periféricos. Pode-se afirmar sem exagero que tal processo leva a uma crise da dívida na periferia. No presente período histórico, vivemos em um momento sem um forte crescimento nas antigas economias capitalistas, que poderia levar a uma nova crise da dívida na América Latina e outros países periféricos (na África e Ásia). Os primeiros a serem afetados serão os países que dependem fortemente da exportação de matérias-primas para pagar a sua dívida; além destes, os países periféricos dentro ou nas margens da Europa (Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, Chipre, Ucrânia, outros países do antigo bloco de Leste, etc.) ou na esfera dos Estados Unidos (onde Porto Rico dá o exemplo). |
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Agradecimentos: O autor agradece a Brigitte Ponet, Damien Millet, Claude e Pierre Salama que releu e fez as suas sugestões e Pierre Gottiniaux por ilustrações. O autor é o único responsável por quaisquer erros contidos neste trabalho.
Tradução para português: José Menezes Gomes. Revisão: Rui Viana Pereira
[1] Eles fizeram o mesmo com a Grécia em 1824-1825 com a concessão de dois empréstimos de um montante igual a 100% do PIB desse país, que estava se formando. Ver: http://cadtm.org/Grecia-nacio-con-u
[2] Foi o que aconteceu em 1960-1970. Durante esse período, os banqueiros concederam diretamente os empréstimos. Quando eclodiu a crise da dívida do Terceiro Mundo, em 1982, eles escaparam graças à intervenção dos estados imperialistas e a dupla do Banco Mundial / FMI autorizado a regressar à securitização da dívida como era praticada em todo do século XIX até a década de 1930. Voltaremos a isso mais tarde. Eu abordei a questão no livro A Bolsa ou a Vida de 1998, reedição revista e ampliada em 2004. http://cadtm.org/La-bolsa-o- e http://bibliotecavirtual.clacso.org/
[3] Gunder Frank, André. 1972. Le développement du sous-développement: l’Amérique latine, Maspero, Paris, 399 p. https://books.google.es/books/about
El desarrollo del subdesarrollo. IEPALA Editorial, 1992 - 179 páginas
[4] Rosa Luxemburg, L’accumulation du capital, Maspero, París, Vol II, p. 89. Em espanhol: La acumulación del capital, http://grupgerminal.org/?q=system/f
[6] Sophie Perchellet, Haïti. Entre colonisation, dette et domination, CADTM-PAPDA, Liège-Puerto Principe, 2010 http://cadtm.org/Haiti-Entre-coloni. A ordenança do rei da França 1825 «Artigo 2: Os habitantes atuais da parte francesa de Santo Domingo entregue ao Depósito e remessas de France em cinco parcelas, ano a ano, a primeira em 01 de dezembro de 1825 a soma de cento e cinquenta milhões de francos, destinado a compensar os ex-colonos que exigirá uma compensação.» Este montante foi reduzido para 90 milhões de francos alguns anos mais tarde.
[7] «Francia se apoderó de Túnez usando la deuda como arma», http://cadtm.org/Francia-se-apodero-de-Tunez-usando
[9] Periféricas em relação as principais potências capitalistas europeias (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Países Baixos, Itália, Bélgica) e em relação aos Estados Unidos.
[10] Jacques Adda é um dos autores que chama a atenção sobre isto. Ver Jacques Adda. 1996. La Mondialistation de l´économie, tomo 1, p. 57-58.
[11] Para saber mais sobre os fatores que não recorrem a dívida externa, ler Perry Anderson, 1979, El Estado absolutista (Siglo XXI Editores), sobre a passagem do feudalismo ao capitalismo no Japão. Por outo lado, Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch assinalam que efetivamente o Japão não recorreu ao endividamento externo e se saiu melhor que os demais. Ver Carmen M. REINHART et Christoph TREBESCH, «The Pitfalls of External Dependence: Greece, 1829-2015», Brookings Papers.
[12] Kenneth Pomeranz, que trabalha para pôr em evidência os fatores que impediram a China de se converter numa das grandes potências capitalistas, não atribui importância a dívida externa, enquanto centra seu estudo no período que precede a 1830-1840. Sua análise é muito rica e sugestiva. Ver Kenneth Pomeranz (2000), The Great Divergence, Princeton University Press, 2000, 382 páginas.
[13] Rosa Luxemburg, La acumulación del capital http://grupgerminal.org/?q=system/f
[14] A Venezuela se recusou a pagar sua dívida e entrou em um verdadeiro teste de força com os imperialistas EUA, alemão, britânicos e franceses, que enviaram em 1902 uma frota militar multilateral para bloquear o porto de Caracas e obter, pela diplomacia das canhoneiras, o compromisso da Venezuela para retomar pagamento de dívidas. Venezuela terminou de pagar essa dívida em 1943. Ver Pablo Medina et al. 1996 «ABC de la deuda externa», p. 21-22, p. 37, p. 50.
[16] Ver em especial os escritos de Sismondi e Tugan Baranovsky sobre como as grandes manchetes da época e discursos por parte dos governos europeus da época.
[17] Mandel, Ernest, Las ondas largas del desarrollo capitalista: una interpretación marxista. Madrid: Siglo XXI Editores, 1980/1986. ISBN 84-323-0558-3. Também disponível aqui: http://digamo.free.fr/
[18] Ver E. Mandel, El capitalismo tardio. México: Ediciones Era, 1972/1979. ISBN 968-411-009-0
[19] Benito Juárez (1806-1872) era zapoteca, uma das populações nativas de México (região de Oaxaca).
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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