Discurso de Zoe Konstantopoulou na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque

5 de Setembro de 2015 por Zoe Konstantopoulou


Discurso de Zoe Konstantopoulou durante 4.ª Conferência Mundial de Presidentes Parlamentares, a 2/09/2015, em Nova Iorque.

«A dívida soberana está a ser usada contra a população grega e o Parlamento helénico para restringir a democracia»



Minhas senhoras e meus senhores, líderes dos parlamentos de todo o mundo, por ocasião do 70.º aniversário das Nações Unidas, que assinala também 70 anos após o final da II Guerra Mundial, nesta 4ª Conferência Mundial de Presidentes de Parlamentos [1], colocando a democracia ao serviço da paz, do desenvolvimento sustentável e da construção dum mundo tal como pretendido pelos povos, estou perante vós e entre vós como Presidente do Parlamento Helénico, dissolvido recentemente, para vos lançar um apelo de solidariedade com o povo grego e com a Grécia, a terra onde a democracia nasceu e onde é hoje brutalmente atacada e violada. A Grécia e seu povo são vítimas, desde há cinco anos, de políticas que supostamente ofereceriam uma solução duradoura para o sobre-endividamento do país e seriam uma via de saída para a crise económica. Essas políticas previstas pelos acordos denominados «Memorandos – Protocolos de Acordo», celebrados pelo governo grego e por um trio de instituições internacionais, nomeadamente, o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Banco central Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE). Europeu, conhecido por Troika Troika A Troika é uma expressão de apodo popular que designa a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. , actuando na qualidade de credores da Grécia, tiveram como resultado graves violações dos direitos humanos e, em particular, dos direitos sociais, das liberdades fundamentais e do próprio Estado de direito.

Aquilo que foi anunciado como sendo um acordo de ajuda teve como efeito a miséria, o desemprego a níveis jamais vistos, 72% entre as mulheres jovens e 60% entre os homens jovens, centenas de milhares de jovens foram empurrados para a emigração, uma explosão de suicídios, a marginalização dos jovens, dos idosos, dos mais fracos, dos imigrantes, dos refugiados; metade das crianças do país vivem abaixo do limiar da pobreza – uma crise humanitária documentada em relatórios e declarações de especialistas independentes da ONU sobre a dívida e sobre os direitos humanos, bem como numa série de decisões judiciais e relatórios.

A 25 de janeiro, 2015, há sete meses, o povo grego, através de uma votação nacional, deu ao governo e ao parlamento um mandato claro e inequívoco no sentido de se desembaraçar dessas políticas assassinas. As negociações começaram, uma comissão parlamentar especial foi formada, batizada como Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública, com a missão de realizar uma auditoria e uma avaliação jurídica à dívida grega. Essa comissão elaborou um relatório preliminar em junho (http://cadtm.org/Rapport-preliminaire-de-la).

O relatório concluiu que a dívida soberana Dívida soberana Dívida de um Estado ou garantida por um Estado. do Estado é ilegal, ilegítima, odiosa e insustentável. Concluiu que essa dívida soberana foi contratada através de procedimentos que constituem uma violação flagrante do direito constitucional, o que justifica, por essa razão, a denuncia da dívida. Concluiu que os credores agiram de má-fé ao deliberadamente fazerem com que a Grécia carregasse o fardo de empréstimos insustentáveis com vista a salvar os bancos privados franceses, alemães e gregos. Apesar dessas conclusões, os credores da Grécia exigiram que se negligenciasse o mandato do povo.

A 25 de junho, foi feito um ultimato de 48 horas ao governo grego, pedindo que aceitasse, contrariamente ao mandato popular, uma série de medidas de desmantelamento do direito do trabalho, abolindo garantias da segurança social e a protecção jurídica para os cidadãos endividados e exigindo, ao mesmo tempo, a venda de bens e de preciosas empresas públicas, mas também dos principais portos, aeroportos e infraestruturas que deviam ser vendidos ou cedidos para pagar uma dívida odiosa Dívida odiosa Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:

1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.

É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)

O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.

E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»

Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
e insustentável.

O Parlamento grego aprovou a proposta do governo de realizar um referendo sobre o ultimato e o povo grego, numa larga maioria de 62%, rejeitou as medidas.
 
Durante a semana do referendo, representantes de instâncias internacionais e governos estrangeiros tentaram influenciar o resultado do referendo, através de declarações destinadas a aterrorizar a população, de tal forma que o referendo foi realizado com os bancos fechados e com controlo de capitais, que foi imposto devido à recusa do BCE Banco central europeu
BCE
O Banco Central Europeu é uma instituição europeia sediada em Francoforte e criada em 1998. Os países da zona euro transferiram para o BCE as suas competências em matéria monetária e o seu papel oficial de assegurar a estabilidade dos preços (lutar contra a inflação) em toda a zona. Os seus três órgãos de decisão (o conselho de governadores, o directório e o conselho geral) são todos eles compostos por governadores dos bancos centrais dos países membros ou por especialistas «reconhecidos». Segundo os estatutos, pretende ser «independente» politicamente, mas é directamente influenciado pelo mundo financeiro.
de fornecer liquidez após o anúncio da realização do referendo. E, no entanto, a democracia prevaleceu; o povo pronunciou-se claramente e 62% disseram NÃO às medidas assassinas.

O que se seguiu foi um pesadelo em termos de consciência democrática, e uma vergonha. Os credores recusaram examinar o resultado do referendo. Insistiram, usando a ameaça do colapso do sistema bancário e do desastre humanitário, que fossem adoptadas medidas ainda mais severas do que as que tinham sido rejeitadas.

O governo foi forçado a aceitar que o Parlamento legislasse sobre textos pré- preparados, com centenas de páginas, sem deliberação, e em datas pré-determinadas, seguindo um procedimento de urgência. E com os bancos sempre fechados. Essa extorsão foi baptizada de «pré-requisito para um acordo» e o Parlamento foi chamado a abolir as leis que tinham sido aprovadas durante os quatro meses anteriores e a não tomar iniciativas legislativas sem a aprovação prévia dos credores.

Um projecto-lei de cem páginas, apresentado como artigo único, foi aprovado a 15 de julho em menos de 24 horas; um outro, com cerca de 1000 páginas e composto por 3 artigos, foi adoptado em menos de 24 horas a 22 de julho; quase 400 páginas foram adoptadas a 14 de agosto em 24 horas. O parlamento legislou três vezes sob coação e coerção e isso foi feito quando uma parte significativa dos deputados do principal partido do governo, incluindo a Presidente do Parlamento, recusou votar um tal texto. O Parlamento foi dissolvido de forma súbita com vista a garantir uma maioria mais estável para implementar o que o povo rejeitou.

Minhas senhoras e meus senhores, a dívida soberana está a ser usada contra a população grega e o Parlamento Helénico para restringir a democracia, mas a democracia é um valor supremo e o Parlamento não pode ser reduzido a um carimbo, aprovando normas ditadas, rejeitadas pelo povo e concebidas para destruir as sociedades e as gerações futuras.

Lanço-vos o apelo, parlamentares de todo o mundo: apoiem a exigência de democracia e de soberania parlamentar contra a coerção da dívida; apoiem as iniciativas da Assembleia Geral das Nações Unidas e da comissão ad hoc de auditoria à dívida soberana, assim como as iniciativas de peritos independentes da ONU sobre a dívida e os direitos humanos.

Não permitam que a democracia seja aniquilada na terra onde nasceu. Não permitam que outro parlamento seja obrigado a votar contra a vontade do povo e contra o mandato dos seus deputados. Não permitam que os direitos humanos, as vidas humanas, a dignidade humana e os princípios mais preciosos das Nações Unidas sejam espezinhados para servir o sistema bancário.

O mundo que as pessoas querem não pode ser construído sem os povos do mundo. Obrigada.


Tradução: CADTM
Revisão: Rui Viana Pereira


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