Do Líbano ao Sri Lanka, passando pela América Latina e Egipto: o papel da dívida pública actualmente e na história do capitalismo

23 de Janeiro por Eric Toussaint , Anis Germany


Foto: Éric Toussaint

Esta conversa com Éric Toussaint visa construir uma posição sobre a dívida e seu reembolso. Ajuda também a compreender o papel da dívida e seus mecanismos na extracção de recursos do Sul para o Norte ao nível internacional, e nas transferências de recursos dos pobres para os ricos no seio de cada sociedade. Esta conversa não tem a ver apenas com o Líbano, a não ser na medida em que a situação libanesa representa um modelo do que se passa em numerosos lugares do mundo e da história.
O Líbano sofre há quase três anos de um sistema bancário falido, de um declínio contínuo do valor da sua moeda, de uma inflação de três dígitos e de um grave abrandamento económico. Há quem considere que a crise é o resultado da corrupção, da despesa pública excessiva e da acumulação de dívida soberana, enquanto outros apontam a paragem dos pagamentos da dívida em moeda estrangeira desde Março de 2020 como a causa do início e do aprofundamento da crise. Apesar da prevalência destas duas narrativas, o facto é que os bancos estão a falir e continuam os esforços para culpar a população libanesa pelas perdas.



Esta entrevista foi originalmente publicada em árabe pela revista libanesa Projecto Zero. O vídeo da entrevista está disponível em francês, com legendas em árabe: https://alsifr.org/eric-toussaint.

Ver também https://assawra.blogspot.com/2023/01/retour-avec-eric-toussaint-sur-les.html

Ver também no sítio em árabe do CADTM

 A dívida como arma

Anis Germany: Descreve a dívida como uma arma contra a propriedade pública e diz que o capital vive da dívida soberana que utiliza para se livrar das formas mais básicas de governo social-democrata e para forçar os países a liberalizar a economia, abrir mercados e impor a austeridade à população. Estamos a testemunhar isto aqui no Líbano, no Egipto e em muitos países do Sul. Pode explicar-nos como funcionam os mecanismos da dívida, e a favor de quem?

o FMI e o modelo económico e social que ele defende e perpetua são a causa do problema. O FMI não pode, portanto, parte da solução

Éric Toussaint: Estas duas narrativas que dominam a cena política libanesa recordam-me a situação actual no Sri Lanka, onde muitas pessoas se concentram na corrupção, que é certamente um fenómeno hediondo, perigoso e escandaloso. Contudo, é evidente que as crises da magnitude das do Líbano, Tunísia e Sri Lanka não podem ser reduzidas ao fenómeno da corrupção ou incompetência da classe política. Esta forma de pensar é utilizada pelo sistema capitalista global e seus instrumentos, para apresentar a corrupção como a fonte do problema e um acordo com o Fundo Monetário Internacional como a solução. No entanto, o FMI e o modelo económico e social que ele defende e perpetua são a causa do problema, não um dos seus sintomas. O FMI não pode, portanto, de forma alguma, fazer parte da solução.

A análise clássica da economia política, em particular a de Karl Marx e Friedrich Engels (e também a de Adam Smith), explora vários tipos de acumulação primitiva. No capítulo 31 do seu livro O Capital, Marx argumenta que a dívida pública, entre todas as formas de acumulação primitiva, desempenha um papel importante e explica em parte a vitória do sistema capitalista sobre os modos de produção anteriores. De facto, não se pode explicar a hegemonia da Europa sobre o processo de globalização capitalista a partir do século XVI, nem a sua vitória sobre outros continentes e potências económicas, incluindo a China no século XIX, sem abordar a questão da dívida.

Em primeiro lugar, é importante saber que a dívida é um dos mecanismos que permitiu aos poderes dominantes e ao seu capital financeiro extrair uma grande parte da riqueza, especialmente a riqueza produzida nas minas de ouro e prata da América Latina nos séculos XVI e XVII, e acelerar o fortalecimento da Europa Ocidental. Esta acumulação permitiu à Europa dar um salto decisivo para o capitalismo, e depois dominar o resto do mundo a partir da primeira metade do século XIX, na sequência da Revolução Industrial.

Mencionei a China, porque ela era tão poderosa como quase todos os países da Europa Ocidental juntos até ao início do século XIX. Mas caiu por terra depois de recorrer a empréstimos externos, o que permitiu às potências financeiras controlar a China, até ao ponto de usar a força (as famosas «guerras do ópio») para obter uma parte do seu território, cuja propriedade foi transferida para os seus credores. No seu livro The Accumulation of Capital, publicado em 1913, Rosa Luxemburgo, após a morte de Karl Marx na década de 1880, alargou a análise que este tinha iniciado, sem a concluir, sobre os acontecimentos na Índia e na China.

Não é possível explicar a hegemonia da Europa no processo de mundialização sem ter em conta a questão da dívida

Em segundo lugar, durante o século XIX, a arma da dívida foi utilizada pelo capital financeiro, que dominou a economia internacional através dos grandes bancos credores de Londres, e em segundo grau em Paris e mais tarde em Berlim. Foram concedidos empréstimos injustos e odiosos a devedores em diferentes partes do mundo, tais como o Egipto e a Tunísia, que na altura faziam parte do Império Otomano. Foram também concedidas dívidas aos governos do Império Otomano em Istambul, o que acabou por conduzir à sua queda. No meu livro, The Debt System, que foi traduzido para o árabe, explico os desenvolvimentos internos que o Egipto passou nos primeiros cinquenta anos do século XIX. O khedive (= chefe de estado) tinha importado as mais recentes tecnologias industriais britânicas enquanto se recusava a assinar acordos de comércio livre com a Grã-Bretanha ou a contrair empréstimos do estrangeiro. Explorou a classe camponesa egípcia, industrializou o país de uma forma excepcional, e exportou os seus produtos, importando relativamente pouco e sem recurso à dívida externa. Contudo, a partir da década de 1850, credores britânicos e franceses conseguiram persuadir o sucessor do khedive a contrair empréstimos maciços para desenvolver o Canal de Suez e aumentar a produção de algodão, sobrecarregando assim o país com dívidas estrangeiras a partir da década de 1870 e subjugando completamente o Egipto aos seus credores. Rosa Luxemburgo dedicou dezenas de páginas à subjugação do Egipto e à exploração e acumulação de capital pelas potências imperiais dominantes que foram estabelecidas na segunda metade do século XIX. Esta subordinação do Egipto permitiu à Grã-Bretanha obter o controlo total do Egipto a partir de 1882 e enfraquecer o Império Otomano de forma muito significativa, a partir da década de 1870. No meu livro, analiso também a hegemonia francesa sobre a Tunísia e a transformação desta província otomana num protectorado francês a partir de 1881. Todas estas subjugações e conquistas foram realizadas através do endividamento externo e das suas condições arbitrárias, o que impossibilitou o reembolso normal e deu aos credores um pretexto para declarar guerra aos países devedores, a fim de recuperar o dinheiro pela força. O Império Otomano não sofreu o mesmo destino que o Egipto e a Tunísia – foi subjugado tardiamente, porque um ataque militar directo contra ele era difícil. De facto, o Império Otomano não caiu directamente nas mãos das potências europeias, a sua derrota e desintegração final só foi alcançada no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. No entanto, o regime de Kemal Atatürk (fundador e primeiro presidente da República da Turquia de 1923 a 1938) e a sua aliança com a Rússia soviética voltaram a complicar os desígnios das potências ocidentais.

“Mapa de Oriente Medio” de GrandEscogriffe tiene licencia CC BY-SA 4.0. Para ver una copia de esta licencia, visitehttps://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/? ref=openverse.

Por outro lado, o Japão é um exemplo típico do papel da dívida externa como instrumento de dominação. No início do século XIX, o Japão era uma potência económica secundária em comparação com a China, mas recusou-se a pedir empréstimos ao estrangeiro, enquanto assistia a uma revolução burguesa baseada na acumulação interna, chamada revolução Meiji. A exploração das classes sociais pelas classes dirigentes levou à transformação do Japão numa potência imperial que invadiu a Formosa (hoje Taiwan) e a Coreia do Sul – então províncias chinesas – entre o final do século XIX e o início do século XX, bem como as Filipinas e partes da China durante a Segunda Guerra Mundial, antes da sua derrota. Estes acontecimentos mostram que uma potência menor foi capaz de se estabelecer como potência imperial porque se manteve livre do domínio de credores estrangeiros. Em contraste, a China, que poderia ter-se desenvolvido muito significativamente como alguns autores demonstraram, não o fez porque concordou em contrair empréstimos do estrangeiro e assinar acordos de comércio livre.

 A cumplicidade das classes dirigentes locais

Ao analisar o sistema da dívida, temos de considerar as elites locais e as classes dirigentes tradicionais. Serão favoráveis a um desenvolvimento específico, como foi o caso do khedive no Egipto na primeira metade do século XIX? Ou dependerão de financiadores estrangeiros para os enriquecer, como foi o caso das classes dominantes no Egipto, na Turquia e na Tunísia na segunda metade do século XIX? O domínio dos credores estrangeiros não pode ser explicado sem a cooperação das classes dominantes locais. O Líbano é um exemplo típico. A classe dominante libanesa não tinha planos para o desenvolvimento industrial, nem para converter um produto agrícola como o algodão em têxteis, nem para desenvolver uma produção industrial mais desenvolvida e diversificada.

Não é possível explicar o domínio dos credores estrangeiros sem a cooperação das classes dominantes locais

Desde o século XIX até aos nossos dias, esta classe especializou-se numa secção específica da divisão internacional do trabalho e do capital, nomeadamente o comércio e as finanças, e desempenhou um papel subordinado e secundário. Esta dependência não significa que não tenha enriquecido: pelo contrário, a classe dominante local aceitou a subordinação ao sistema imperial e às suas autoridades centrais, e obteve dela posições que lhe permitiram enriquecer, quer explorando a população local, quer explorando as vantagens comparativas do Líbano, tais como a sua localização geográfica estratégica e a sua capacidade de desempenhar um papel no comércio e finanças internacionais.

Tendo feito esta referência ao passado e tendo chegado à situação actual, volto à situação actual, porque se não compreendermos o contexto histórico, continuaremos a falar simplesmente de corrupção, e de uma classe política incapaz de se posicionar dentro do sistema, enquanto que o que está a acontecer hoje no Líbano é funcional ao sistema por excelência e está no centro das crises do sistema capitalista mundial.

 O papel da dívida interna

Anis Germany: Nos exemplos que deu, concentrou-se principalmente na dívida externa. O problema está exclusivamente relacionado com a dívida externa e o posicionamento da classe dominante local em relação a essa dívida? Ou é um problema que deriva dos mecanismos de funcionamento da própria dívida, seja ela externa ou interna?

A classe dominante libanesa obtém parte dos seus recursos através de empréstimos ao Estado e compra títulos da dívida externa libanesa a fim de beneficiar dela também em moeda estrangeira

Éric Toussaint: Desde a primeira metade do século XIX, o uso da dívida interna é mencionado em toda a literatura económica do Império Otomano. O Bey of Tunis (isto é, o chefe de Estado) recorreu a credores residentes na Tunísia, sejam eles comerciantes ou financeiros tunisinos, libaneses, italianos, franceses ou britânicos (todos residentes na Tunísia) que lhe emprestaram dinheiro a taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. usurárias. Este fenómeno de uma classe dominante local emprestar dinheiro ao governo a taxas de juro elevadas, a fim de obter rendas, existiu sob o Império Otomano desde o início do século XIX, e continuou durante o domínio colonial ocidental, bem como após a independência.

De facto, a classe dominante libanesa obtém parte dos seus recursos através de empréstimos ao Estado, e isto também é verdade para outros países da região. Por outro lado, esta classe investe no estrangeiro parte do capital que recolhe através de vários mecanismos, muitas vezes sem o declarar, e compra títulos da dívida externa libanesa a fim de beneficiar dela também em moeda estrangeira.

Manifestaciones contra el gobierno libanés en 2019, en Beirut, Lebanese protests Beirut 22 November 2019, Freimut Bahlo, Wikimedia Commons, CC, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lebanese_protests_Beirut_22_November_2019_64.jpg

 Os diversos tipos de credores

Ao descrever as características do sistema de dívida, é preciso ter em conta os diferentes tipos de credores. Primeiro, mutuantes privados estrangeiros, que podem ser grandes bancos estrangeiros ou fundos de investimento estrangeiros como o BlackRock. Em segundo lugar, o Fundo Monetário Internacional e outras instituições multilaterais, que obtêm lucros através de empréstimos a países como o Líbano e recomendam a continuação do modelo neoliberal, incluindo obrigar o povo a pagar a conta da dívida. Terceiro, outros governos através de dívidas bilaterais (nomeadamente os países do Clube de Paris ou a China), que constituem apenas uma pequena percentagem no caso da dívida libanesa. Quarto, a dívida interna criada pela classe dirigente local através de instituições bancárias locais.

 As dívidas odiosas

Anis Germany: A pandemia covid-19 exacerbou a situação de muitas economias que já sofriam o fardo da dívida, e restringiu a capacidade da maioria destes países de gastar para proteger as suas sociedades da pandemia, para dar prioridade ao pagamento do serviço da dívida pública. É o porta-voz internacional do Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas, que está a liderar uma campanha internacional para cancelar as dívidas do Sul, a que chama «dívidas odiosas». A maioria das pessoas pensa que cada país é responsável pelo pagamento das suas dívidas porque optou por pedir emprestado e gastar estes fundos. Pode explicar o que é uma dívida odiosa Dívida odiosa Segundo a doutrina, para que uma dívida seja considerada odiosa, e portanto nula, tem de preencher as seguintes condições:

1. Foi contraída contra os interesses da Nação ou contra os interesses do povo ou contra os interesses do Estado.
2. Os credores não conseguem demonstrar que não podiam saber que a dívida foi contraída contra os interesses da Nação.

É preciso sublinhar que, segundo a doutrina da dívida odiosa, a natureza do regime ou do governo que contraiu a dívida não é particularmente importante, pois o que conta é a utilização dada à dívida. Se um governo democrático se endividar contra o interesse da população, a dívida pode ser qualificada odiosa, desde que preencha igualmente a segunda condição. Por consequência, e contrariamente a uma interpretação errada desta doutrina, a dívida odiosa não se aplica apenas aos regimes ditatoriais. (Ver Éric Toussaint, «A Dívida Odiosa Segundo Alexandre Sack e Segundo o CADTM»)

O pai da doutrina da dívida odiosa, Alexander Nahum Sack, diz claramente que as dívidas odiosas podem ser atribuídas a um governo regular. Sack considera que uma dívida contraída por um governo regular pode ser considerada incontestavelmente odiosa, desde que preencha os dois critérios acima apontados.

E acrescenta: «Se estes dois pontos forem confirmados, cabe aos credores o ónus de provar que os fundos envolvidos nos referidos empréstimos foram utilizados não para fins odiosos, prejudiciais à população do Estado, no seu todo ou em parte, mas sim para as necessidades gerais ou especiais desse Estado, e não apresentam carácter odioso».
Sack definiu um governo regular da seguinte forma:
«Deve ser considerado regular o poder supremo que existe efectivamente nos limites de um dado território. É indiferente ao problema em foco que esse poder seja monárquico (absoluto ou limitado) ou republicano; que proceda da “graça de Deus” ou da “vontade do povo”; que exprima a “vontade do povo” ou não, do povo inteiro ou apenas de uma parte deste; que tenha sido estabelecido legalmente ou não.»

Portanto não restam dúvidas sobre a posição de Sack, todos os governos regulares, sejam eles despóticos ou democráticos, em todas as suas variantes, são susceptíveis de contraírem dívidas odiosas.
e porque é importante cancelá-la?

Éric Toussaint: Existe uma definição de dívida odiosa que faz parte da jurisprudência do direito internacional. Esta definição foi desenvolvida nos anos 20 e publicada em Paris em 1927 por Alexander Sack, um conservador jurista russo, antigo professor de direito no Império czarista em São Petersburgo, exilado em Paris após a Revolução Russa. Menciono isto para dizer que ele não era comunista nem simpatizante dos soviéticos ou bolcheviques, mas que ficou chocado com a recusa dos soviéticos em honrar a dívida czarista. Este jurista analisou todas as disputas que encontrou sobre dívidas soberanas desde a Revolução Francesa de 1789, e formulou uma doutrina de direito internacional onde estipula que, em caso de sucessão ou mudança de regime, as obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. anteriores são transferidas para o novo regime independentemente da natureza do regime em questão - democrático, tirânico, religioso ou republicano popular – excepto quando a dívida é odiosa. Se a dívida for contraída contra o interesse dos residentes de um Estado, ou contra o interesse objectivo do Estado – e portanto a favor de uma minoria privilegiada - e se os credores não puderem provar que não o sabiam, então a dívida pode ser qualificada como odiosa. Assim, segundo esta doutrina, é a utilização da dívida que a torna odiosa ou não, nula ou não.

No caso do Líbano, a maior parte da dívida não serviu os interesses dos Libaneses ou mesmo do Estado libanês – se se considerar o Estado como um actor que deve agir para o bem dos seus cidadãos – mas serviu antes os interesses particulares de uma minoria privilegiada, seja a classe política, a classe capitalista libanesa ou os interesses estrangeiros. Por outro lado, os credores que emprestaram dinheiro ao governo libanês sabiam disso, especialmente os banqueiros que emprestaram ao governo libanês sabendo que parte do dinheiro ia para a classe política e para as elites locais. Os banqueiros permitiram à classe política local colocar algum deste dinheiro emprestado em contas numeradas na Suíça, Mónaco, Londres e noutros locais, em troca de emprestar dinheiro ao Estado libanês a taxas de juro elevadas. Se aplicarmos os critérios da doutrina da dívida odiosa, podemos provar, após exame, que as dívidas internas e externas do Líbano são dívidas odiosas e, portanto, nulas ao abrigo do direito internacional. Esta é uma batalha a ser travada, porque simplesmente chamar a dívida «odiosa» não convencerá os credores a renunciar ao pagamento da dívida. Em vez disso, um governo com legitimidade popular pode conduzir uma auditoria da dívida com a participação dos cidadãos do Líbano, tomar uma decisão soberana e unilateral para cancelar dívidas odiosas de acordo com o direito internacional, e defender a sua posição contra os credores e a opinião pública internacional.

 Os benefícos da resistência e os malefícios da submissão

Anis Germany: Qual a importância do repúdio dessas dívidas para as economias locais, seja no Líbano ou noutros lugares?

Os diversos países que anularam as suas dívidas ao longo da história não caíram numa situação nefasta, contrariamente aos países que continuaram a pagar

Éric Toussaint: Estou actualmente a analisar uma série de repudiações de dívidas que tiveram lugar ao longo da história, e quanto mais estudo a história, mais descubro. Em 1933, o Presidente e o Congresso dos EUA decidiram cancelar o pagamento em ouro de todas as dívidas públicas e privadas. De um dia para o outro, o governo dos EUA desvalorizou o dólar em 69 % em relação ao ouro e pagou as suas dívidas apenas em dólares. Este é efectivamente um acto de repúdio da dívida, que foi debatido no Congresso dos EUA e indignou os senadores que temiam que os EUA perdessem a sua capacidade de contrair empréstimos nos mercados financeiros. Mas estavam errados: os EUA saíram vitoriosos, tal como os soviéticos que cancelaram as dívidas do Império Czarista e do Governo Provisório em 1918. De acordo com a minha análise, muitos dos países que cancelaram as suas dívidas não acabaram por ser levados a uma situação má, ao contrário dos países que continuaram a pagar. Em alguns casos, os poderes credores utilizaram a força, mas no final, os países que resistiram venceram, e os países que se submeteram ou não resistiram até ao fim – como a Tunísia em 1881, o Egipto em 1882 e uma série de países que se submeteram aos termos dos acordos ditados pelo Fundo Monetário Internacional – tiveram de aceitar o seu papel de Estados subordinados aos credores sem conseguirem livrar-se da dívida. Estes países sofreram um destino desfavorável, em vez de terem a coragem de resistir.

Anis Germany: Os exemplos que mencionou, como a Rússia bolchevique e os Estados Unidos, eram duas grandes potências quando cancelaram as suas dívidas. Não seria necessário um mínimo de força militar e económica para se poder resistir aos credores?

Ao resistir, não se tem a certeza absoluta de ganhar, mas ao submeter-se, é certo que se perde

Eric Toussaint: O México cancelou as suas dívidas várias vezes (1861, 1867, 1913), o que levou a que fosse invadido por um contingente francês de 35.000 homens em 1862, para o forçar a pagar as suas dívidas. O México resistiu e ganhou. Entre 2007 e 2008, o Equador, um país de 17 milhões de habitantes que não é nem uma potência militar nem uma potência económica, realizou uma auditoria da dívida sob o governo progressista de Rafael Correa, decidiu suspender o pagamento de parte das suas dívidas ilegítimas e obteve uma vitória sobre os seus credores. A Islândia – um país do norte com uma população de 350.000 habitantes – ripostou e ganhou em 2008 contra a Grã-Bretanha e os Países Baixos, que exigiam uma compensação financeira de 3,5 mil milhões de euros. Em contraste, a Grécia – um país de 11 milhões de pessoas – foi humilhada pelo seu próprio governo perante os seus credores em 2015. Apesar da promessa do seu governo de resistir, ele capitulou quando o povo exigiu que fizesse frente aos credores. Ao resistir, não se tem a certeza absoluta de ganhar, mas ao submeter-se, é certo que se perde.

Manifestación contra la política del gobierno y contra los años de presidencia de Gotabaya Rajapaksa en Colombo, en 2022. Sri Lanka Protests, Nazly Ahmed, Flickr, CC, https://www.flickr.com/photos/nazly/52039806724

 Aumento da vulnerabilidade das economias frágeis

Anis Germany: Estamos à beira de uma crise de dívida soberana global? O Banco Mundial estima que 60 % dos países de baixo e médio rendimento necessitam de reestruturar as suas dívidas e manifestou a preocupação de que muitos países suspendam os pagamentos de uma forma não regulamentada? Pensa que chegou o momento de fazer da anulação da dívida uma solução inevitável?

Éric Toussaint: Gostaria de ver todas as dívidas ilegítimas canceladas, mas sou realista e consciente do equilíbrio de poder. Neste momento, não há nenhum governo realmente pronto a resistir, por isso prevejo que os governos tenham dificuldade em financiar as suas dívidas após choques internos e externos, apesar (e, de facto, por causa) da sua submissão ao modelo neoliberal. No caso do Sri Lanka, a perda de receitas do turismo devido à pandemia de covid-19, bem como a falta de recursos petrolíferos e a dependência das importações de cereais – que aumentou a factura de importação de mercadorias – minaram a capacidade de pagamento do país. O Gana e a Zâmbia estão no meio de uma crise por falta de pagamento.

Gostaria de ver todas as dívidas ilegítimas canceladas, mas sou realista e consciente do equilíbrio de poder. Neste momento, não há nenhum governo realmente pronto a resistir

Outros países não estão longe da suspensão de pagamento, tais como o Paquistão, Bangladesh e Tunísia, e só a evitam assumindo novas dívidas, nomeadamente ao FMI. Portanto, sim, como diz o Banco Mundial, haverá grandes dificuldades em pagar as dívidas. Mas de acordo com o modelo que aplica, juntamente com o Fundo Monetário Internacional e o Clube de Paris, o Banco Mundial não está a falar em cancelar dívidas, mas sim em reestruturá-las ao abrigo de acordos de ajuda de emergência com o FMI em termos que aprofundarão e prolongarão o modelo neoliberal, e assim aumentar a vulnerabilidade das economias frágeis. Este é o cenário do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, e infelizmente é provável que se torne realidade. Portanto, se movimentos populares como os observados no Líbano em 2019 não sensibilizarem para o facto de o FMI não fazer parte da solução, mas ser antes um dos inimigos, então não haverá outra alternativa senão um governo que declare uma ruptura com este modelo, de acordo com o método descrito pelo pensador egípcio Samir Amin, ou seja, declarando uma desconexão a uma série de mecanismos e acordos que são prejudiciais ao país. Mas uma tal ruptura requer coragem.

Anis Germany: Infelizmente, não há uma oposição séria aos programas do FMI no Líbano, mas o FMI é apresentado como o único salvador para obter mais financiamento em moeda estrangeira, face à incapacidade de contrair empréstimos nos mercados. Qual é então o papel do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial na manutenção dos países na armadilha da dívida e na imposição de condições de austeridade às sociedades?

O FMI instrumentaliza o endividamento para liberalizar as economias, para as desregulamentar e as privatizar, em detrimento da sua estabilidade

Éric Toussaint: Desempenham um papel central. O Fundo Monetário Internacional espera até que um país fortemente endividado esteja em crise e peça um empréstimo de emergência de alguns milhares de milhões de dólares para impor medidas para abrir ainda mais as economias, para reduzir a despesa pública, para remover subsídios a bens básicos e combustíveis. Impõe também aumentos nos impostos indirectos, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, para aumentar as receitas governamentais, que por sua vez serão utilizadas para pagar dívidas, bem como alterações nas leis mineiras, florestais e laborais. Estas medidas visam liberalizar, desregulamentar e privatizar as economias à custa da sua estabilidade. Por conseguinte, todos aqueles que dizem que o Fundo Monetário é necessário, e todos aqueles que se agarram à narrativa anti-corrupção, ou são honestos mas ingénuos, ou são cúmplices do regime. A estes juntam-se os conselheiros económicos que se apresentam como defensores do interesse geral, quando na realidade são parceiros dos credores. De facto, por trás do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial estão os grandes credores privados, a classe dominante local e/ou estrangeira, assim como os principais accionistas de empresas financeiras, fundos de investimento ou bancos; todos eles beneficiam da aplicação do modelo neoliberal e pedem a estas duas instituições que imponham as suas receitas para preservar este modelo. Por conseguinte, o papel do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional é essencial para manter o sistema de dominação.

 A barbárie do futuro

Anis Germany: Se olharmos para o conjunto da situação económica mundial, constatamos que as sociedades dos países do Sul e a maioria das sociedades do Norte sofrem. Os relatórios do FMI, do Banco Mundial, dos bancos centrais e das ONG advertem que estamos a entrar numa crise mundial agravada e de longa duração. As dívidas públicas e privadas parecem cada vez mais difíceis de pagar, a inflação generaliza-se, as taxas de pobreza e desigualdade atingem recordes históricos, e a terra caminha para um descalabro ambiental pelo qual os seus responsáveis se recusam a responder. Face a esta cena trágica, qual é o projecto político alternativo, ou quais são os meios à disposição para mudarmos de rumo?

Qualquer mudança radical deve começar pela anulação das dívidas e pela ruptura dos laços com os credores. É uma condição básica para devolver a soberania sobre as suas próprias escolhas, os seus recursos naturais e financeiros e sobretudo sobre o seu futuro

Éric Toussaint: À partida existem dois pontos principais. Primeiro, agir; segundo, agir com um programa e uma estratégia precisas. Quanto ao primeiro aspecto, não restam dúvidas de que é necessário um movimento de mobilização popular para obrigar os governos a tomar decisões diferentes das que tomam na ausência de pressões e mobilizações. Mas isto não basta e pode não mudar grande coisa, donde resulta o segundo aspecto, que consiste em evoluir segundo um programa e uma estratégia precisa. De facto, existe uma necessidade real de elaborar um programa e de agir em função dele. Sendo assim, o programa começa com a anulação das dívidas e a ruptura de laços com os credores. É a condição básica para que um país reencontre a sua soberania sobre as suas próprias escolhas, os seus recursos naturais e financeiros, e sobretudo o seu futuro, em vez de delegar o seu presente e o seu futuro nos credores. O programa é depois completado por cada país definindo os sectores estratégicos sobre os quais os poderes públicos, com o apoio dos cidadãos, devem retomar o controlo. No Líbano, o sector financeiro é considerado estratégico e os poderes públicos devem retomar o seu controlo, além do controlo sobre o comércio externo. Devem também impor mecanismos de controlo sobre os movimentos de capitais, para impedirem a sua fuga e evitarem desestabilizar a economia e controlarem a sua moeda. Por consequência, temos de estar preparados e ser ambiciosos, para pôr em marcha um programa de mudanças estruturais que inclua reformas radicais contra o capitalismo profundamente enraizado.

Precisamos de um sistema mundial socialista, ecológico, feminista e anti-racista, para dar resposta a todos os problemas com os quais a humanidade se defronta

Por outro lado, é preciso tomar cuidado para não cair na ilusão de que um a adopção de um comportamento sadio em relação à natureza por parte de milhões de lares para um sistema económico alternativo permitiria mudar o curso do desenvolvimento catastrófico e trágico do planeta, enquanto as grandes companhias petrolíferas, os fundos de investimento, os bancos e as empresas agrícolas continuarem a dominar a economia mundial. Temos, sem dúvida, de mudar o que podemos à nossa volta no nosso modo de vida, mas sem nos iludirmos que esta é a solução para salvar a humanidade. Recordo aqui o que Rosa Luxemburgo escreveu durante a Primeira Guerra Mundial no seu livro intitulado Socialismo ou Barbárie, porque é válido hoje mais do que nunca. Primeiro, porque muitos países têm os meios nucleares para destruir toda a humanidade, e segundo, porque as alterações climáticas e a crise ecológica estão a tomar um rumo catastrófico. Precisamos de um sistema mundial socialista, ecológico, feminista e anti-racista para abordar todos os problemas que a humanidade enfrenta. Portanto, se os/as cidadãs/os não fizerem uma escolha consciente para romper com o modelo capitalista e avançar para outro modelo, a barbárie e a morte dominarão o futuro.

Os autores agradecem a revisão de Maxime Perriot.


Traduzido para pt-pt por Rui Viana Pereira

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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