14 de Maio de 2011 por Eric Toussaint
Desde Setembro de 2010 que está em curso o feliz encadeamento de um processo de convergência entre o CADTM e outros movimentos sobre as formas de fazer face aos problemas da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. e à sua utilização por parte dos governos para porem em marcha verdadeiros programas de ajustamento estrutural. Eis alguns exemplos:
1. No Manifesto dos Economistas Aterrados lançado em Setembro de 2010 e subscrito por mais de 2700 economistas e diversos militantes, pode ler-se, entre as 22 propostas concretas para a saída da crise, duas que vão parcialmente ao encontro das propostas avançadas pelo CADTM: [1]
« Medida n.º 9: Realizar uma auditoria pública e cívica às dívidas soberanas, para determinar a sua origem e conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os montantes que possuem.»
«Medida n.º 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, limitando por exemplo o seu peso a determinado valor percentual do PIB
PIB
Produto interno bruto
O produto interno bruto é um agregado económico que mede a produção total num determinado território, calculado pela soma dos valores acrescentados. Esta fórmula de medida é notoriamente incompleta; não leva em conta, por exemplo, todas as actividades que não são objecto de trocas mercantis. O PIB contabiliza tanto a produção de bens como a de serviços. Chama-se crescimento económico à variação do PIB entre dois períodos.
e estabelecendo uma discriminação entre os credores segundo o volume de títulos que possuam: os grandes financeiros (particulares ou instituições) deverão aceitar um prolongamento considerável da dívida, senão mesmo anulações parciais ou totais. É igualmente necessário renegociar as exorbitantes taxas de juro
Juro
Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada.
dos títulos emitidos pelos países que entraram em dificuldade na sequência da crise.»
2. A 24 de Novembro de 2010, a ATTAC espanhola avança a seguinte posição acerca da Grécia: «Na Grécia, a associação obscura, secreta e delituosa entre a Goldman Sachs e o governo conservador precedente intrujou os cidadãos gregos e europeus, com o apoio cúmplice da banca privada alemã e francesa. O plano de resgate europeu permitiu a esses bancos alemães e franceses recuperar as suas perdas, enquanto a Goldman Sachs e os responsáveis políticos precedentes desfrutam livremente o seu festim. A resposta justa consistia e consiste, em primeiro lugar, em emitir um mandato de captura contra os responsáveis, levando-os a tribunal pelos seus delitos; em segundo lugar, em exigir uma auditoria à dívida, a fim de determinar e reconhecer unicamente a parte justa da mesma; e por fim, em dar prioridade aos interesses sociais dos Gregos sobre os da banca internacional, reponderando os orçamentos e compromissos referentes à compra de novos submarinos à Alemanha.» No caso da Irlanda, a ATTAC espanhola afirma: «Neste caso específico, existem também numerosas razões para acusar os dirigentes actuais e os membros dos conselhos de administração dos bancos privados pelos delitos cometidos. Recusar a continuação do pagamento da dívida até que se faça uma auditoria e pôr os interesses da população à frente dos interesses dos especuladores fundamentalistas de mercado, que nos mentem e nos ludibriam.» [2]
3. A coligação irlandesa «Dívida e Desenvolvimento» agrupa uma série de ONGs de desenvolvimento e de organizações de solidariedade Norte¬/Sul com base numa plataforma bastante moderada e essencialmente focada numa melhor gestão dos empréstimos concedidos aos países do Sul. Ela produziu um documento de 24 páginas sobre a crise irlandesa, nas quais apela ao governo irlandês para que «ponha em questão a política do FMI, nomeadamente ao reclamar o fim das condições acrescentadas aos acordos de empréstimo do FMI». [3]
Por seu lado, a principal confederação sindical irlandesa exige que os detentores de títulos da dívida pública sejam sujeitos a uma redução de 10% do seu valor [4]
4. Num comunicado datado de 30 de Novembro de 2010, a ATTAC francesa avança 6 propostas / reivindicações que o CADTM pode subscrever na generalidade:
« – taxação e regulação estrita das transacções financeiras, a começar pelas transacções sobre o euro; proibição da especulação
Especulação
Operação que consiste em tomar posição no mercado, frequentemente contracorrente, na esperança de obter um lucro.
sobre as dívidas públicas; encerramento progressivo dos mercados;
– declaração de falência para os bancos demasiado endividados, sem indemnização dos credores e accionistas que acumularam lucros brincando com o fogo;
– nacionalização dos bancos salvos pelos fundos públicos; estes bancos devem ser rapidamente socializados, ou seja, postos sob controle democrático dos assalariados, dos cidadãos e dos poderes públicos;
– interdição aos bancos comerciais (de depósitos), que gerem as poupanças privadas, de encetarem acções especulativas e de terem filiais nos paraísos fiscais;
– reestruturação da dívida, com redução parcial para os Estados estrangulados pela carga da dívida pública; a dívida agravada pelos benefícios fiscais dos ricos, nutrida pela crise financeira e pelo auxílio financeiro aos bancos, é uma dívida ilegítima;
– Em paralelo, monetarização parcial da dívida pública, devendo o Banco Central
Banco central
Estabelecimento que, num Estado, tem a seu cargo em geral a emissão de papel-moeda e o controlo do volume de dinheiro e de crédito. Em Portugal, como em vários outros países da zona euro, é o banco central que assume esse papel, sob controlo do Banco Central Europeu (BCE).
Europeu comprar as suas obrigações
Obrigações
Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário.
directamente aos Estados.»
5. A 5 de Dezembro de 2010, um jornal grego de grande tiragem publicou um artigo de opinião do economista grego Costas Lapavitsas intitulado Comissão Internacional de Auditoria da Dívida Grega: Uma Exigência Imperativa. Concluindo o artigo, o autor afirma: «A Comissão internacional de auditoria terá um campo de acção privilegiado no nosso país. Basta pensar nos contratos de dívida celebrados com a intermediação da Goldman Sachs ou destinados a financiar a compra de armas para concluir a necessidade de uma auditoria independente. Se se revelarem odiosas ou ilegais, essas dívidas serão então declaradas nulas e o nosso país poderá recusar o seu reembolso, pedindo ajuste judicial de contas a quem as contraiu».
6. A 17 de Dezembro de 2010, a rede europeia da ATTAC publicou uma declaração comum [5]
propondo verdadeiras medidas alternativas, entre as quais:
« – desencadear um mecanismo de suspensão, pelo qual os Estados repudiariam o todo ou parte da sua dívida pública, provocada pelos benefícios fiscais aos ricos, pela crise financeira e pelas taxas de juro exorbitantes impostas pelos mercados financeiros;
– fazer uma reforma fiscal para restabelecer as receitas públicas e torná-la mais justa, taxando os movimentos de capitais, os rendimentos mais elevados, os lucros das empresas, tendo em vista a maximização da receita.»
Também aqui verificamos uma larga convergência destes dois pontos entre a rede das ATTAC europeias e a rede do CADTM europeu.
7. Alguns dias mais tarde, Jean-Marie Harribey, ex-co-presidente da ATTAC francesa e membro do seu conselho científico, publicou um artigo intitulado «É Preciso Encurralar os Serial Killers», no qual propõe «a colectivização-socialização de todo o sistema bancário à escala europeia». No que respeita à dívida, consagra dois parágrafos que não podemos deixar de subscrever:
«Anular a parte ilegítima da dívida pública
Toda a gente sabe que a subida dos défices públicos e, consequentemente, do endividamento público não resulta duma deriva das despesas públicas. Resulta de dois factores: um que está em curso de forma ascendente desde há várias décadas, exemplarmente ilustrado pelo caso francês: a fiscalidade foi reduzida de todas as formas, em particular a fiscalidade progressiva, sem que os sucessivos governos tenham conseguido cercear proporcionalmente as despesas públicas e sociais, das quais uma grande parte é incompreensível. O segundo factor é recente e mais violento: o endossamento da dívidas privadas para o colectivo público, na sequência da crise bancária e financeira.
Não há justificação possível para que as populações sejam obrigadas a acarretar todas as consequências duma situação da qual não são responsáveis. A quase totalidade da dívida pública é ilegítima.»
8. A 3 de Março de 2011, mais de uma centena de personalidades gregas e internacionais lançaram um apelo público a favor da criação duma comissão de auditoria. Declaram: «Nós, abaixo assinados, pensamos que há necessidade urgente de constituir uma Comissão de Auditoria para examinar a dívida pública grega. A actual política relativa à dívida pública levada a cabo pela União Europeia e pelo FMI acarretou custos sociais gravíssimos para a Grécia. Por conseguinte, o povo grego tem o direito democrático de ser cabalmente informado sobre a dívida pública e a dívida privada que beneficia de garantias públicas. O objectivo desta comissão será o de investigar as razões que levaram a que esta dívida fosse contraída, os termos nos quais tal foi feito e o destino dado aos fundos emprestados. Com base no resultado destas indagações, a Comissão deverá produzir recomendações relativas à dívida, incluindo as partes reconhecidas como ilegais, ilegítimas ou odiosas. O objectivo da Comissão será ajudar a Grécia a tomar todas as medidas necessárias para fazer frente ao fardo da dívida. A Comissão tentará igualmente apurar as responsabilidades.» [6]
9. A 10 e 11 de Março de 2011, representantes de sindicatos belgas e europeus, de ONGs e de redes de 15 países europeus (de Oeste a Leste) reuniram-se na primeira Joint Social Conference de Primavera. Eis um extracto da declaração final aprovada nesse encontro:
«Os trabalhadores não são responsáveis pela crise, mas foram e continuam a ser as primeiras vítimas. O que é demais basta! A situação crítica dos orçamentos dos países da União Europeia tem de ser regulada doutra maneira:
a. por um sistema fiscal justo que, ao invés das tendências actuais, tribute mais os ricos e os lucros financeiros do que os trabalhadores (nomeadamente regressando à progressividade dos impostos, introduzindo um tributo europeu sobre as transacções financeiras, abolindo os paraísos fiscais, introduzindo um imposto mínimo sobre as empresas à escala europeia);
b. por uma auditoria às dívidas públicas nos países da União Europeia; não podemos aceitar que o futuro de uma ou várias gerações seja hipotecado por causa duma dívida que de facto é, na sua maior parte, a dívida dos especuladores e do sistema financeiro.» [7]
10. Em Maio de 2011, num livro sobre a dívida pública elaborado pela ATTAC francesa, a associação altermundialista destaca diversas alternativas que constituem um conjunto coerente para sair da crise [8] ...e que são largamente partilhadas pelo CADTM, designadamente no que se refere à necessidade da auditoria da dívida e à anulação das dívidas públicas ilegítimas.
11. A 4 de Maio de 2011, uma coligação irlandesa (constituída pela Action from Ireland –Afri-, pelo sindicato UNITE e pela campanha Dette et développement) dá inicio a uma auditoria independente da dívida irlandesa.
12. Do 6 ao 8 de Maio 2011 teve lugar em Atenas uma conferência internacional em favor da auditoria da dívida e da anulação da parte ilegítima da dívida. Quase 3 000 pessoas tomaram parte.
É incontestável que o tema da dívida pública irrompeu no Norte por ocasião da grave crise que o mundo atravessa desde 2007-2008. Os ensinamentos de 30 anos de ajustamentos estruturais no Sul devem ser aproveitados e os povos europeus devem mobilizar-se em força, para que as decisões tomadas no Norte não sejam um símile das decisões impostas ao Sul no decurso das três últimas décadas. Numerosos movimentos começam já a pôr a questão da legitimidade dessa dívida e da sua auditoria integral, tendo em vista a anulação da parte ilegítima. Este combate é essencial para estabelecer as bases duma lógica económica e financeira radicalmente diferente. A dívida pública é o ferrolho que é preciso fazer saltar no interesse dos povos. Para começar a pôr em prática uma política económica e social ao serviço das populações e para lutar contra as mudanças climáticas, a redução radical da dívida pública é uma condição necessária más insuficiente. É apenas o primeiro passo. Deverá ser acompanhada por uma série de reformas radicais a propósito das quais o CADTM trabalha há anos para fornecer pistas eficazes e coerentes. Só uma mobilização popular maciça, com objectivos claros, permitirá alcançar esta meta.
Eric Toussaint é Doutor em Ciências Políticas pelas Universidades de Liège e Paris VIII, Presidente da CADTM Bélgica, membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e da Comissão presidencial de auditoria da dívida (CAIC) do Equador, membro do Conselho Científico da ATTAC França, autor do livro: A Bolsa ou a Vida – As finanças contra os povos, Perseu Abramo, São Paulo, 2002; co-autor do livro: 50 perguntas / 50 respostas sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial, Boitempo Editorial, São Paulo, 2006. Próximo livro a ser publicado em Junho de 2011: La Dette ou la Vie, Aden-CADTM, 2011 (obra colectiva coordenada por Damien Millet e Eric Toussaint).
Tradução de Rui Viana Pereira, revisão de Noémie Josse.
[3] Debt and Development Coalition Ireland, «A Global Justice Perspective on the Irish EU¬IMF Loans: Lessons from the Wider World», Novembro 2010, http://www.cadtm.org/A-Global-Justi....
[6] Texto integral do apelo e lista de signatários: http://www.cadtm.org/Appel-pour-une...
[8] Ver ATTAC, «Le piège de la dette publique, comment s’en sortir, Les liens qui libèrent», Paris, 2011, chapitre 6. http://www.france.attac.org/livres/
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 16)
A armadilha do endividamento30 de Junho de 2020, por Eric Toussaint
29 de Junho de 2020, por Eric Toussaint , Philippe Poutou
29 de Junho de 2020, por Eric Toussaint
16 de Junho de 2020, por Eric Toussaint , Susan George , Catherine Samary , Miguel Urbán Crespo , Colectivo de signatários
Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 15)
Coreia do Sul e o milagre desvendado15 de Junho de 2020, por Eric Toussaint
4 de Junho de 2020, por Eric Toussaint , La Izquierda Diario
Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 14)
As mentiras teóricas do Banco Mundial4 de Junho de 2020, por Eric Toussaint
26 de Maio de 2020, por Eric Toussaint , Olivier Bonfond , Eva Betavatzi
Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 13)
O Banco Mundial e o FMI na Indonésia: Uma intervenção emblemática13 de Maio de 2020, por Eric Toussaint
Série: 1944-2020, 76 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI (parte 12)
O apoio do Banco Mundial à ditadura turca (1980-1983)24 de Abril de 2020, por Eric Toussaint
0 | ... | 30 | 40 | 50 | 60 | 70 | 80 | 90 | 100 | 110 | ... | 320