28 de Janeiro de 2010 por Eric Toussaint , Igor Ojeda
ENTREVISTA Na opinião do cientista político Éric Toussaint, um dos idealizadores do evento que se encontra em sua décima edição, é preciso criar uma frente permanente de partidos, movimentos sociais e redes internacionais para executar ações políticas comuns
O cientista político Éric Toussaint, um dos integrantes do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial (FSM), é um dos defensores da proposta de que o espaço se torne uma plataforma de maior incidência política nas lutas sociais pelo mundo. No entanto, ele não se preocupa muito com a resistência de certos setores integrantes do FSM (leia matéria sobre o assunto na página 3), que querem manter o evento no seu formato original. Para ele, a solução é simples. “Se o Fórum não permite isso, deve-se construir outro instrumento, não eliminando o Fórum”.
Em conversa com o Brasil de Fato, Toussaint, presidente do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da Bélgica, defende um diálogo entre movimentos e partidos sobre o chamado do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, para a criação de uma Quinta Internacional. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a crise econômica mundial, iniciativas de integração do continente latino-americano e a ascensão dos Brics
BRICS
O termo BRICS (acrónimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi utilizado pela primeira vez em 2001 por Jim O’Neill, na altura economista da Goldman Sachs. O forte crescimento económico destes países, combinado com a sua importante posição geopolítica (estes 5 países reúnem quase metade da população mundial em 4 continentes e quase um quarto do PIB mundial), fazem dos BRICS actores importantes nas actividades económicas e financeiras internacionais.
(Brasil, Rússia, Índia e China) no cenário internacional, potências que, na sua avaliação, não são uma alternativa progressista à antiga ordem. “O que buscam é negociar com os velhos imperialismos seu lugar na divisão internacional dos poderes, do trabalho, da economia mundial e do acesso aos recursos naturais”.
ENTREVISTA
Brasil de Fato – Como o senhor avalia as duas visões distintas expostas no debate de abertura do Fórum Social Mundial, ou seja, em que um lado propôs o “uso” do Fórum como uma plataforma política com mais poder de ação e de incidência política, e o outro lado defendeu que o evento se mantenha com seu formato original, como espaço de troca de ideias?
Eric Toussaint – Precisamos de um instrumento internacional para determinar prioridades em termos de demandas, objetivos. Um calendário comum de ação, um elemento de estratégia comum. Se o Fórum não permite isso, deve-se construir outro instrumento, não eliminando o Fórum. Penso que ele tem sua razão de existir, tem suas vantagens, mas se um setor não quer uma evolução rumo a transformá-lo em um instrumento de mobilização, é melhor constituir outro instrumento entre as organizações e indivíduos que estão convencidos que precisamos disso. Isso não impediria continuar parte ativa do Fórum. Digo isso para evitar uma cisão, um debate sem fim que paralisa mais que ajuda. Está claro que há um setor que prefere manter o caráter de Fórum de discussão, de debate, e não de instrumento de ação.
E é um setor bastante forte, não?
Sim. De algum modo, é uma parte do núcleo histórico que convocou a criação do Fórum. Mas nem todos do núcleo histórico, porque o MST também fez parte dele. Nós também: o CADTM é parte do Conselho Internacional do Fórum desde sua criação, em junho de 2001. Mas é evidente que as organizações como o Ibase, e personalidades como Chico Whitaker e Oded Grajew se opõem à evolução rumo a um instrumento de luta. A coisa que me preocupa é chegar em Porto Alegre e ver que o seminário “10 anos depois” é patrocinado por Petrobras, Caixa, Banco do Brasil, Itaipu Binacional, e com forte presença de governos. Isso obviamente me preocupa. Eu preferiria muito mais um Fórum com muito menos apoio financeiro e mais militante. Podemos nos apoiar nas forças voluntárias militantes, alojamento em casa de militantes, ou no campo, com sua infra-estrutura, escolas...
E que novo instrumento seria esse a que o senhor se refere?
Há uma proposta que, na verdade, teve relativamente pouca repercussão. É o chamado que o Hugo Chávez fez no fim de novembro para a criação de uma Quinta Internacional reunindo movimentos sociais e partidos de esquerda. Penso que a proposta é, em princípio, muito interessante. Poderá ser uma perspectiva se houver uma reflexão, um diálogo entre partidos e movimentos sociais: uma Quinta Internacional como instrumento de convergências para a ação e para a elaboração de um modelo alternativo. Mas, do meu ponto de vista, não seria uma organização como as internacionais anteriores, que eram – ou ainda são, pois a Quarta Internacional continua existindo – organizações de partidos com um nível de centralização bastante elevado. Acho que a Quinta Internacional não deveria ter um grande nível de centralização e não deveria implicar na auto-dissolução das redes internacionais. Estas poderiam aderir a uma Quinta Internacional mantendo suas características, mas tal adesão seria uma mostra de todas as redes ou grandes movimentos nacionais de que têm vontade de irem mais além de frentes pontuais como a Cúpula do Clima de Copenhague, soberania alimentar, dívida... Temos bandeiras comuns entre muitas redes, e isso é positivo. Mas, se fosse possível conseguir se chegar a um nível de frente permanente... Com essa expressão, talvez eu esteja dando um elemento de definição. Para mim, a Quinta Internacional seria, na situação atual, uma frente permanente de partidos, movimentos sociais e redes internacionais. O termo “frente” implica, claramente, que cada um manteria sua identidade, mas daria prioridade ao que une para alcançar determinados objetivos em comum e fazer avançar a luta. Os últimos meses foram uma nova demonstração da necessidade de aumentar a capacidade de mobilização, porque a mobilização contra o golpe de Honduras foi totalmente insuficiente. É preocupante, porque, como os EUA apoiaram o golpe, legitimando as eleições, forças golpistas de todo o mundo estão considerando que essa é novamente uma opção razoável. No Paraguai, por exemplo, a discussão dos golpistas é “para quando? Como?”. Mas estão convencidos de que é preciso executar um golpe a partir do Congresso Nacional contra Lugo. Então, isso mostra que a mobilização em relação à Honduras foi insuficiente, mas também em relação à Copenhague e, agora, ao Haiti. A resposta à intervenção dos EUA no Haiti é totalmente insuficiente.
Então o senhor acredita que é possível, em uma Quinta Internacional, conciliar em torno de ações políticas comuns as distintas correntes de esquerda que formariam essa nova organização?
Sim, penso que é necessário começar com um diálogo consultivo para tentar chegar a esse resultado. Não podemos nos precipitar. A Quinta Internacional, para ser algo realmente efetivo, tem que ouvir e reunir uma quantidade muito significativa de organizações. Fazer uma Quinta Internacional com uma pequena parte do movimento não valeria a pena. Seria matar o projeto ou limitá-lo. Abrir a perspectiva de debate sobre isso me parece muito necessário.
Em uma entrevista, o senhor disse que o Fórum Social de Belém, realizado em janeiro do ano passado, foi a primeira grande mobilização internacional contra a crise econômica mundial. Mas, agora, o senhor diz que não houve uma resposta satisfatória contra o ocorrido em Honduras e no Haiti. O que aconteceu? O que está faltando?
Sim, você tem toda a razão de apontar a defasagem entre o grande êxito de Belém e o que ocorreu depois. O balanço de 2009 é preocupante. Não houve, nas maiores economias industrializadas, o epicentro da crise, maiores movimentos sociais. Só na França e na Alemanha, onde ocorreram movimentos bastante fortes, em particular na França: mais de 1,5 milhão de manifestantes foram às ruas em duas marchas no primeiro trimestre. Nos EUA, houve algumas greves, mas poucas. Então, a situação é de uma grande dificuldade dos setores de massas – os que sofrem mais com a crise – de se mobilizarem. É como se as pessoas estivessem grogues. O desemprego aumentou de maneira muito forte no Norte do planeta. Na Espanha, passou de 10% para 20% da população economicamente ativa. Na Espanha, é algo que não se havia vivido nos últimos 30 anos. Em relação ao Sul, governos como o de Lula passam a impressão de que um país como o Brasil e outros países do Sul não vão ser afetados pela crise do Norte porque tomaram medidas financeiras e econômicas que lhes permitem estar blindados. Então, no Sul há também um baixo nível de mobilização em relação ao tema da crise internacional. Mas quero fazer uma comparação da história. Depois da crise de 1929 em Wall Street, as grandes lutas sociais radicais a nível internacional começaram em 1933, 1934 e 1935. Então, vemos que, historicamente, as reações de massas não são imediatas. Se a crise se mantiver, e seus efeitos continuarem muito fortes, no final as pessoas começarão a se mobilizar massivamente.
Mas, além dessa análise mais histórica, o senhor acredita que a esquerda tampouco soube se preparar para uma resposta adequada?
Esse é outro aspecto. Vimos, por exemplo, que a juventude brasileira do Estado do Pará estava muito interessada, foi em massa ao Fórum Social de Belém. E participava nos debates nos quais se falava de alternativas radicais. Mas, como o Fórum Social Mundial não é um instrumento de mobilização... Além disso, as direções sindicais são muito burocratizadas. Democracia sindical é esperar que a decisão do governo vá evitar maior choque, acompanhar e apoiar as políticas governamentais que limitam um pouco o custo da crise para os oprimidos. É uma falta de vontade das direções dos sindicatos, dos partidos de esquerda ou de partidos socialistas, entre aspas, que continuam nos governos a aplicar, nos países do Norte, soluções sociais-liberais. Não há vontade de implementar nem sequer uma política neo-keynesiana. O New Deal do Roosevelt [Franklin Delano Roosevelt, então presidente estadunidense], de 1933, em comparação com as políticas do democrata Barack Obama, ou dos governos como do Zapatero [José Luis Zapatero, primeiro-ministro espanhol, do Partido Socialista Operário Espanhol] e Gordon Brown [primeiro-ministro britânico, do Partido Trabalhista] parece de esquerda radical. Então, sim, é evidente que há alguma responsabilidade tremenda das direções dos partidos de esquerda tradicional, dos sindicatos, e uma debilidade muito forte do Fórum Social Mundial para enfrentar a crise. Por isso, volto ao meu primeiro ponto da entrevista: é necessário termos um novo instrumento.
O senhor acredita que, com esta crise, definitivamente se inaugurou ou pode se inaugurar em um futuro próximo uma nova era de multipolaridade?
É evidente que a dominação econômica dos EUA não é a mesma de há 20 anos. Os EUA perderam o domínio econômico, mas é o único país que combina dominação industrial – embora nesse aspecto esteja se debilitando –, uma moeda internacional – também debilitada, mas que continua sendo a moeda internacional – e uma presença militar permanente em mais de cem países. E com uma capacidade de invadir. Há cinco meses publiquei um artigo no qual eu interpretava o golpe em Honduras e as setes bases na Colômbia como uma demonstração evidente da agressividade dos EUA contra a América Latina. Alguns jornalistas reagiram dizendo que eu estava exagerando, que os EUA não são capazes de fazer uma intervenção militar na América Latina, que não têm mais capacidade militar por estarem presos no Afeganistão, Paquistão e Iraque. Mas, agora, em dois dias eles mandaram 15 mil soldados para o Haiti. Portanto, sim, eles continuam sendo uma potência capaz de agredir, de mandar equipamentos, materiais militares a várias partes. O caso do Haiti é muito emblemático, pois mostra que continuam com uma capacidade grande de reação muito rápida. A potência estadunidense segue sendo a principal no mundo em termos geoestratégicos. Claro, estão surgindo novas potências, como China, União Europeia, e, depois, Rússia, Índia e Brasil, que são potências regionais. O conceito para mim que define a atuação internacional do Brasil é o “imperialismo periférico”. Imperialismo por quê? Porque o Brasil considera os países vizinhos como uma nação imperialista tradicional considera as outras. Considera-nos países destino de investimento de suas empresas transnacionais, e a política externa do governo brasileiro tende a apoiar a estratégia de extensão dessas corporações: Petrobras, Vale do Rio Doce, Odebrecht etc, que estão presentes na Bolívia, Equador, Peru, Venezuela, Chile, Argentina e, inclusive, na África, onde possuem investimentos importantes. Então, existe um caráter multipolar no sentido de que não há um super-imperialismo, mas potências imperialistas entre as quais existem imperialismos periféricos como Brasil e Rússia. Os chamados Brics [acrônimo para Brasil, Rússia, Índia e China] não se constituem em uma alternativa progressista aos velhos imperialismos. O que buscam é negociar com estes velhos imperialismos seu lugar na divisão internacional dos poderes, do trabalho, da economia mundial e do acesso aos recursos naturais. Então, considero que não há nenhuma potência que jogue um papel progressista e que poderíamos apoiar. O que existe é uma iniciativa como a Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas, proposta pelo presidente venezuelano Hugo Chávez], cujos integrantes, felizmente, não são países imperialistas. Alternativas regionais como a Alba são muito importantes. Minha preocupação a respeito é que se deveria acelerar o processo e ir mais além dos discursos, aumentando muito mais a integração entre estes países. Mas é preciso destacar coisas positivas: na reunião da Alba do dia 25 de janeiro decidiu-se anular a dívida do Haiti com seus países membros, dando uma lição às potências que se reuniram em Montreal no mesmo dia, que discutem o alívio da dívida condicionado a medidas de ajuste estrutural.
Neste contexto, como o senhor avalia o avanço de iniciativas como o Banco do Sul. Acredita que tal projeto esteja em um estagio satisfatório?
Em 2007, eu participei, a pedido do governo de Rafael Correa e de seu ministro de Economia e Finanças, da redação da posição do Equador sobre o Banco do Sul. O projeto que o país defendia é um modelo de Banco do Sul para financiar projetos públicos ou de comunidades tradicionais, nativas etc. Por exemplo, financiar, a nível regional, uma política de soberania alimentar, potencializar as reformas agrárias necessárias, as reformas urbanas, a interconexão ferroviária – e não rodoviária. Esta é uma das opções possíveis para o Banco do Sul. O Brasil e a Argentina têm outro projeto. O querem para financiar projetos nos países mais pobres que fazem parte da iniciativa, projetos de obras públicas no marco da IIRSA [Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana], através da contratação de empresas brasileiras ou argentinas. Ou seja, dinheiro público outra vez para contratar empresas privadas. E para grandes projetos que não respeitam o meio ambiente, que não dão prioridade a melhorar a situação das massas. E a opção do Brasil e da Argentina é a que começa a dominar as negociações no Banco do Sul. É necessário que os governos de esquerda de verdade optem por uma integração dos povos, e não uma favorável a grandes empresas transnacionais, sejam do Sul ou do Norte. Uma integração que não tome como modelo a construção europeia. Na Europa, temos uma integração, mas dominada totalmente pela lógica da acumulação do capital privado, a lógica liberal, ou neoliberal. Com os governos que existem na America Latina, com a força dos movimentos sociais e a tradição de lutas radicais, esse é o lugar do mundo onde se pode implementar um modelo alternativo, e não o mais do mesmo.
O senhor costuma dizer que existem duas esquerdas: a ecossocialista e a social-liberal. Como se explica que apesar do modelo neoliberal ter sido posto em xeque em consequência da crise, tenha sido o presidente Lula – que o senhor posiciona entre os sociais-liberais – um dos que saíram mais fortalecidos dela?
Fundamentalmente, o que define a sorte de um país são as mobilizações sociais, as experiências que as massas acumulam através de sua mobilização. E vemos que os países onde os governos, na política, são mais avançados, são aqueles onde houve os movimentos mais radicais. Esse nível de mobilização social exerce uma pressão sobre os governos para os empurra rumo a medidas políticas e sociais mais coerentes com a opção de esquerda. No Brasil, infelizmente, não houve, nos últimos cinco ou seis anos, esse nível de mobilização. E o governo, além disso, começou em uma situação econômica internacional favorável. Entre 2003 e 2007, houve um aumento no preço internacional de matérias-primas, um crescimento com bolha especulativa Bolha especulativa A bolha económica, bolha financeira ou bolha especulativa forma-se quando o nível dos preços de troca num mercado (mercado de activos financeiros, mercado de câmbios, mercado imobiliário, mercado de matérias-primas, etc.) se estabelece muito acima do valor financeiro intrínseco (ou fundamental) dos bens ou activos trocados. Neste tipo de situação, os preços afastam-se da valorização económica habitual, com base numa crença manifestada pelos compradores. no Norte que gerava mais exportações para o país. E, até agora, como comentamos antes, a crise internacional não afetou imediatamente o Brasil. Assim, o governo pode apresentar como o resultado de sua política uma situação econômica que não depende exatamente de sua política. A não ser o fato de manter taxas de juros muito altas, o que fez com que os bancos privados brasileiros não tivessem que investir tanto nos subprimes dos EUA para obterem lucros muito altos, porque já os tinham aqui. É claro que não apoio a política de taxa de juros alta, mas, em um mundo onde os bancos podem mover seu capital facilmente, essa medida protegeu, de algum modo, o sistema bancário brasileiro.
Mas por quais razões, além das altas taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. , o Brasil não foi afetado tanto pela crise?
Porque a redução dos preços das matérias-primas que houve no segundo semestre de 2008 foi seguida por uma nova alta dos preços. Os ingressos de exportação se mantiveram e o colchão social representado pelo programa Bolsa Família proporciona aos setores pobres um certo nível de consumo que mantém o mercado interno. A questão é: o que vai acontecer nos próximos anos? O que vai acontecer com a questão do crescimento da China? Ela pode ou não continuar com esse crescimento. Sabemos que, na China, há uma bolha imobiliária Bolha imobiliária A bolha imobiliária é uma bolha especulativa que afecta o mercado imobiliário, caracterizada por uma subida rápida do valor dos bens imobiliários. Traduz-se num afastamento pronunciado e persistente entre o preço dos imóveis e a variação das suas determinantes fundamentais económicas, como os salários ou o rendimento dos arrendamentos. , uma bolha na Bolsa, uma explosão de dívidas. O crescimento da China se deve à injeção muito forte de gastos públicos por parte do governo para contra-atacar a perda de mercados exteriores com a crise dos EUA, Europa e Japão. Mantém-se um nível de crescimento, mas de maneira artificial, por meio dessas bolhas. Na situação mundial atual, a China é a locomotiva do que resta de crescimento econômico. Sem a China, estaríamos em um nível de pura recessão mundial. A situação do Brasil está relacionada com a China por meio das exportações de minerais etc, mas também porque a situação da China mantém a situação da economia mundial em certo nível de crescimento. Se ela cair, o que para mim não é uma certeza, mas é uma possibilidade, vai afetar o Brasil, que também sofrerá consequências se ocorrerem outras explosões financeiras internacionais, porque existem outras bombas, como os preços das matérias-primas, que são mais elevados do que a atividade econômica mundial justifica. Há um investimento especulativo em matérias-primas de vários produtos alimentares exportados pelo Brasil, como a soja. Se a bomba dessa bolha especulativa explodir, teremos uma redução dos preços destes produtos, e isso vai afetar o Brasil. Por isso que a ideia de que o Brasil é uma economia blindada é falsa. Depende da evolução internacional sobre a qual o Brasil não tem controle. O que o Brasil poderia fazer para consertar isso é aumentar muito mais seu mercado interno, proteger-se, exercer mais controle sobre movimentos de capital, implementar outro modelo econômico redistributivo, atacar os monopólios, os lobistas, fazer uma reforma agrária e urbana radical. Isso poderia ser um modelo dentro de um marco de integração regional. Mas isso implicaria em outra opção de governo.
Como o senhor avalia as respostas à crise por parte dos governos mais progressistas, como Venezuela, Bolívia e Equador?
Houve um aspecto positivo não apenas nesses três governos, mas também, de algum modo, nas gestões de Lula, Cristina Kirchner [presidente da Argentina] e Michelle Bachelet [presidente do Chile]. Ou seja, apesar das recomendações do FMI, de reduzir o gasto público, os governos aplicaram políticas heterodoxas, inclusive o governo do Alan García, do Peru, que é um governo de direita. Isso permitiu a estes governos manterem certo nível de crescimento econômico. A reação da Bolívia, Equador e Venezuela foi por outro governos que não têm as mesmas características. Dos três, o governo que radicalizou na política econômica foi o de Hugo Chávez, com mais nacionalizações. Mas, francamente, as políticas de Correa, Chávez e Evo Morales [presidente da Bolívia] não são tão diferentes das dos demais governos da região. Não há uma diferença radical no aspecto econômico. Penso que há diferenças fortes em termos de anti-imperialismo, de reformas constitucionais, de recuperação do controle sobre os recursos naturais. Mas seria simplificador dizer que há diferenças astronômicas entre as experiências econômicas da região. Pessoalmente, eu preferiria poder dizer que os governos do Equador, Venezuela e Bolívia estão implementando modelo realmente alternativo. Mas ainda não é o caso. Há anúncios e perspectivas que podem ser muito interessantes, mas não se deve confundir discursos e intenções com fatos da vida real.
Como está hoje o debate acerca da dívida pública Dívida pública Conjunto dos empréstimos contraídos pelo Estado, autarquias e empresas públicas e organizações de segurança social. ?
A questão da divida tem seus altos e baixos. O tema era super candente nos anos 1980, voltou a ser muito forte com o default da Argentina no final de 2001. Agora voltamos a uma situação de tensão nesse terreno, mas é somente o início. Entre 2007 e 2008, o Equador constituiu uma comissão de auditoria da qual eu fiz parte. E, a partir de nossas conclusões, o governo de Correa decidiu suspender o pagamento de 3,2 bilhões de dívidas em títulos comerciais, vendidos em Wall Street e que se encerravam entre 2012 e 2030. Correa suspendeu o pagamento a partir de novembro de 2008 e enfrentou os credores, os detentores de títulos. E conseguiu, em 10 de junho de 2009, que 91 destes títulos fossem vendidos por seus donos ao governo do Equador com um desconto de 65%. Ou seja, o Equador recomprou 3,2 bilhões de dólares pagando 1 bilhão. Economizou 2,2 bilhões de dólares. E todos os juros, porque, claro, até 2030 o país teria que pagar juros. Isso demonstra que inclusive um pequeno país pode enfrentar os detentores de títulos e lhes impor um “sacrifício”. Eles, que sempre ganharam, tiveram que abandonar a perspectiva de continuar ganhando muito dinheiro com títulos. A lição é que, se o Equador conseguiu fazer, países como o Brasil, Argentina e outros poderiam fazer. A Argentina havia suspendido o pagamento em 2001, mas, em 2005, cometeu o erro fundamental de intercambiar títulos, e não de recomprá-los ou anulá-los totalmente. Intercambiaram com desconto, mas tendo que continuar a pagar os juros, a uma taxa alta. A dívida da Argentina hoje é do mesmo volume do de 2001. A questão do pagamento da dívida voltará à cena internacional devido a dois fatores fundamentais. Primeiro, a crise financeira-econômica, que diminui as exportações do Sul e os ingressos fiscais oriundos destas, tornando mais difícil reembolsar a dívida pública interna e externa. O segundo fator é o aumento do custo de refinanciamento da dívida. Como os banqueiros do Norte entraram em crise, sua tendência é exigir mais dos países do Sul que querem se endividar a nível internacional.
QUEM É
O belga Éric Toussaint é presidente do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da Bélgica. Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Lieja e de Paris VIII, é membro do conselho científico da Attac (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos) da França, da rede científica da Atacc da Bélgica, do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e do Comitê Internacional da Quarta Internacional
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.
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