Estados Unidos: Champanhe para Wall Street e esmolas para as classes trabalhadoras

29 de Junho de 2020 por Eric Toussaint


Enquanto alguns usam a expressão «dinheiro de helicóptero para o povo» para designar a política da administração Trump e do Fed face à crise atual, temos que denunciar o «dinheiro de helicóptero para Wall Street» pelos impressionantes e generosos montantes colocados a disposição do grande capital norte americano.



Enquanto os Estados Unidos estão assolados desde duas semanas por inúmeras manifestações antirracistas e em que as vítimas do Covid-19 se encontram principalmente entre as mais pobres das camadas populares, os dados económicos recolhidos desde o início da crise sanitária mostram muito claramente a direção tomada por Washington durante a crise social e económica mais grave desde os anos 30. É uma continuação das medidas tomadas desde a crise de 2008 e não é de modo algum acompanhada por contrapartidas e avanços sociais indispensáveis para o bem-estar da população, como foi o caso do New Deal a partir de 1933.

Entre meados de Março e o início de Junho de 2020, 44 milhões de residentes inscreveram-se como desempregados. A taxa de desemprego oficial, que subestima grosseiramente a situação real, alcançou 13,3%, contra 3,5% no início do ano.

Como parte das medidas tomadas pelo Congresso com o apoio dos Republicanos e dos Democratas, parte dos desempregado(a)s recebem prestações que são apresentadas como generosas. Na realidade, no entanto, é o 1% que beneficia dos favores de Washington. Esta ajuda alivia o fluxo de caixa das empresas, mantém um certo nível de consumo, assegura a sobrevivência das pessoas mais pobres (e, portanto, a reprodução da força de trabalho que foi forçada a abandonar o trabalho) e visa evitar que estas se revoltem. Estes subsídios são apenas as migalhas no bolo oferecido aos mais ricos. Alexandria Ocasio-Cortez não se deixou enganar e foi a única democrata a votar contra o ”stimulus package«(pacote de estímulos. Ela denunciou»a maior ajuda para as empresas«da»história americana«enquanto oferece apenas»migalhas para as nossas famílias".

Além deste plano de mais de 2 triliões de dólares, o Fed interveio ainda mais maciçamente. Depois de Wall Street ter mergulhado mais de 20% entre o 17 de Fevereiro e 17 de Março de 2020, e enquanto o mercado de obrigações empresariais dos EUA (corporate bond market) estar à beira da implosão, a Reserva Federal gastou $3 triliões entre o final de Março e o início de Junho para trazer Wall Street de volta ao nível anterior a 17 de Fevereiro.

De facto, a partir de 17 de Fevereiro de 2020, a bolha da bolsa que se tinha formado nos anos anteriores murchou a um ritmo impressionante. O declínio foi desencadeado por grandes acionistas que decidiram vender lotes muito grandes de ações. Deve notar-se que enquanto os preços das ações baixavam, os grandes bancos obtinham receitas significativas porque, como principais intermediários na venda e compra de ações, recebem uma comissão em cada transação em bolsa. O rendimento das suas comissões aumentou 30% em Fevereiro-Março de 2020.

Os grandes capitalistas também apostaram maciçamente na queda: em Abril de 2020, por exemplo, o bilionário Akman ganhou 2,6 mil milhões de dólares no meio da queda da bolsa de valores. Explicou que tinha exercido um seguro pago 27 milhões de dólares para se proteger da queda da bolsa de valores. Segundo ele, ganhou 100 vezes mais do que a sua aposta inicial.

Graças ao aporte de 3 triliões de dólares do Fed, grandes empresas em dificuldades conseguiram continuar a contrair empréstimos nos mercados sob a forma de venda de obrigações que emitem. É o caso de grandes bancos como o Citigroup (3º maior banco dos EUA em termos de dimensão), Wells Fargo (4º maior banco), Morgan Stanley (6º maior banco). O Citigroup e a Wells Fargo emitiram obrigações com vencimento em 2051.

Estes títulos são vendidos facilmente porque ofereciam rendimentos muito mais elevados do que os títulos de dívida pública, que estão perto de 0%. Tornaram-se mesmo muito atrativos... Quando os grandes fundos de investimento foram definitivamente tranquilizados quanto às intenções do Fed, que lhes mostrou que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para salvar o mercado de obrigações, começaram a comprar no mercado secundário obrigações recentemente emitidas, aceitando pagar mais caro que o preço de emissão.

Por exemplo, as obrigações vendidas pela Morgan Stanley o 19 de Março (em plena queda da bolsa de valores) por um total de 2 mil milhões de dólares, estavam sendo negociadas 50% a mais no 12 de Junho de 2020. Em termos simples, um título Morgan Stanley com um valor facial de $100 vendido no 19 de Março por $98 estava vendido no 12 de Junho por $148.

Ainda mais marcante como indicação da natureza fictícia deste tipo de capital: os títulos podres (junk bonds) vendidos pela Avis Budget Car Rentals, que está à beira da falência, estão sendo negociados 15% a mais do que o seu valor facial.

Esta é uma prova clara da continuação em muito grande escala da especulação no mercado de obrigações, com uma sobrevalorização impressionante do preço dos títulos financeiros. Os grandes compradores nos mercados financeiros preocupam-se muito pouco com a solidez das empresas que contraem empréstimos, é uma questão de obter lucros a curto prazo. Consideram que poderão sempre revender a tempo os títulos emitidos por empresas em dificuldades.

Enquanto algumas pessoas usam a expressão «dinheiro de helicóptero para o povo» para designar a política da administração Trump e do Fed face à crise atual, o «dinheiro de helicóptero para Wall Street» deve ser denunciado devido aos montantes impressionantes e generosos disponibilizados para o grande capital norte-americano.

Esta política não tem nada a ver com o New Deal de Franklin Roosevelt aplicado a partir de 1933. Desta vez: nenhum aumento dos direitos sociais; nenhuma imposição de forte disciplina financeira aos bancos; nenhum esforço fiscal imposto aos mais ricos, para considerar apenas três critérios. Como parte do New Deal, foi introduzida uma proteção social substancial, os bancos de investimentos foram separados dos bancos de depósito e a taxa de imposto sobre os rendimentos mais elevados chegou a 80%.

Nada disto está na agenda dos governantes e dos proprietários das grandes empresas. Pelo contrário, eles veem esta crise como uma nova oportunidade para aumentar a precariedade dos contratos de trabalho e baixar os custos laborais. O programa para salvar a economia é financiado pela dívida pública e nenhun imposto de crise atinge os mais ricos.


Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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