Génova: 15 anos após as manifestações em massa contra o G8 e a repressão sangrenta desencadeada por Berlusconi

28 de Julho de 2016 por Eric Toussaint


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Em Génova, de 18 a 23 de julho de 2016, assinalaram-se as ações que marcaram a cimeira do G8 (EUA, Rússia, Reino Unido, Alemanha, Itália, França, Japão, Canadá), que tiveram lugar nesta cidade há 15 anos exatamente. A 19 de julho, o CADTM (Comité para a Anulação das Dívidas ilegíTiMas) [1] coorganizou com a Fondazione Palazzo ducale di Genova, ATTAC, Pax Christi e Comité Praça Carlo Giuliani, uma jornada dedicada à anulação das dívidas ilegítimas. Mais de 200 pessoas participaram provenientes de toda a Itália. A participação foi particularmente plural tanto entre os/as conferencistas (já que usaram da palavra um arcebispo, um bispo, ativistas de esquerda radical, ativistas altermundialistas) como entre os/as participantes, onde se encontravam militantes de extrema esquerda, sindicalistas, ativistas, representantes da ONG Fair Trade, etc. Ver:
http://genova.repubblica.it/cronaca/2016/07/19/foto/padre_zanotelli_dal_g8_alla_laudato_si_-144451520/1/



Recorde-se que, para protestar contra a reunião do G8 em Génova, de 20 a 22 Julho de 2001, encontraram-se mais de 300 000 manifestantes provenientes de toda a Europa. Berlusconi, chefe do governo, transformou a cidade num campo armado. A maior parte da cidade estava vedada à circulação; barreiras de vários metros de altura foram colocadas num perímetro de vários quilómetros. Um autêntico dispositivo de guerra civil foi acionado pelo governo de Berlusconi. Milhares de carabinieri e de agentes foram preparados psicológica e fisicamente para confrontar violentamente os manifestantes. G. W. Bush foi hospedado num navio de guerra da Marinha dos Estados Unidos.


Houve manifestações durante três dias consecutivos

Lembro-me muito bem da manhã de 20 de Julho. Tivemos uma reunião de organizadores, às 9H00 da manhã, em que participaram Raffaella Bollini da ARCI e do Genova Social Forum, Christophe Aguiton, ex-secretário-geral da ATTAC França, Chris Nineham da Globalize Resistance (Grã-Bretanha), Denise Comanne e eu pelo CADTM e outros mais. Tínhamos acabado de receber, das autoridades, informações sobre a presença da polícia e sobre o percurso autorizado para as manifestações. Olhando para o mapa desse dispositivo, percebemos logo que a sua intenção era claramente provocar o derramamento de sangue, especialmente porque a manifestação dos «Tutti bianchis» terminava numa autêntica armadilha. Era impossível mudar os planos; não havia negociações em curso. E, de facto, naquele dia à tarde, Carlo Giuliani, um jovem manifestante de 23 anos, foi abatido pela polícia; um veículo da polícia passou deliberadamente sobre o seu corpo, quando Carlo Giuliani, vítima de dois tiros, jazia já no chão.

No dia seguinte, a 21 de julho, 300 000 manifestantes marcharam pela protecção dos direitos dos migrantes. As forças da repressão usaram gás lacrimogéneo massivamente e agrediram, de novo, numerosas vezes, os manifestantes.

Na noite de 22 para 23 de julho, os carabinieri invadiram uma escola que servia de dormitório a alguns dos manifestantes (ver artigo do Le Monde). Lembro-me também muito bem desse momento dramático, porque estava na rua, a 80 metros da escola em questão, perto do mediacenter do Genova Social Forum. Estava com Walden Bello, um ativista filipino, dirigente na época do Focus on the Global South, com base em Banguecoque. Vimos os carabinieri impedirem as ambulâncias, pelo menos durante meia hora, de chegarem perto do lugar onde eles estavam a atacar dezenas de ativistas. Vimos passar macas que transportavam corpos inertes. Pensámos de imediato que haveria outra vez mortes naquela noite. Felizmente, não foi o caso. Eram, provavelmente, manifestantes inconscientes momentaneamente. Os ataques continuaram no dia seguinte num quartel onde os detidos eram manifestantes que foram espancados e obrigados a entoar cânticos fascistas.

Como escrevia o jornal Le Monde, em abril de 2015, «Foi preciso esperar quatorze anos para ver uma condenação. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenou, na terça-feira, 7 janeiro, a Itália por nunca ter levado a tribunal, nem mesmo identificado, os autores da violência policial contra activistas altermundialistas à margem da cimeira do G8, em Génova, em 2001. Maus tratos comparáveis, no entanto, a “atos de tortura”, segundo o TEDH.» (Ver artigo do Le Monde)

Nessas manifestações participaram delegações vindas de toda a Europa. Grande parte da delegação grega, na qual se incluía Alexis Tsipras (27 anos de idade na altura), não conseguiu chegar a Génova porque o comboio especial que a transportava foi bloqueado pela polícia de Berlusconi. Pablo Iglesias, o atual líder do Podemos, que tinha na altura de 22 anos, fazia parte da grande delegação que vinha do Estado espanhol.

Depois da manifestação de Génova, o G8 [2] decidiu reunir-se o mais longe possível dos locais onde os ativistas pudessem afluir.

A manifestação de Génova faz parte da fase de ascensão do movimento anti-globalização, também conhecido como o movimento altermundialista. Pode situar-se aproximadamente em 1994 o início dessa fase de ascensão com a aparição pública do movimento neo-zapatista no México, em janeiro de 1994, e com a grande manifestação anti-Banco Mundial e anti-FMI em Madrid, em Outubro de 1994, no âmbito da campanha «50 anos bastam» [3]. Outros pontos de partida poderiam ser tidos em conta, como a grande manifestação de Paris anti-G7, em Julho de 1989, sobre o tema da anulação das dívidas do Terceiro Mundo.

Fazem parte também dessa fase de ascensão: o encontro «intergaláctico» convocado em Chiapas, no México, pelo movimento neo-Zapatista (EZLN), em 1996, a mobilização de Seattle (EUA, novembro de 1999) contra a OMC, a grande manifestação de Bangkok (fevereiro de 2000), a grande manifestação anti-BM e anti-FMI (abril de 2000 em Washington e setembro de 2000 em Praga), a primeira reunião do Fórum Social Mundial (janeiro de 2001, Porto Alegre),... Essa fase ascendente viveu o seu apogeu com a realização das grandes manifestações de fevereiro de 2003 contra a invasão do Iraque, que aconteceu a partir de 20 de março de 2003. Essas manifestações juntaram, à escala do planeta, quase 10 milhões de participantes [4]. O Fórum Social Mundial, o Fórum Social Europeu, o Fórum Social da América Latina, o Fórum Social Africano, o Fórum Social Asiático começaram a decair a partir de 2005-2006, nomeadamente, quando alguns dos seus participantes moderaram significativamente a sua posição, comprometendo-se no apoio a governos como o governo Lula no Brasil (desde 2003), o governo do partido do Congresso na Índia (2004-2009), o governo Prodi em Itália (2006-2008). O FSM reanimou em 2009 (Belém), também em 2012 (Dakar), 2013 (Tunis) e 2015 (Tunes), mas o declínio prosseguiu sem que outra estrutura tenha emergido.

Esta falta de estrutura de convergência mundial das resistências e alternativas é um problema muito grave. Para um balanço desse período, ver a série de cinco artigos: Eric Toussaint: «O contexto internacional de indignação global» http://www.cadtm.org/Breve-retrospectiva-dos-movimentos,7478 ; http://www.cadtm.org/A-crise-mundial-antecede-a ; http://www.cadtm.org/Da-primavera-arabe-a-Occupy-Wall ; http://www.cadtm.org/Algumas-caracteristicas-comuns-nas ; http://www.cadtm.org/Indignados-e-indignadas-de-todo-o Ver também: Eric Toussaint, «O Fórum Social em contacto com uma realidade em ebulição produz uma reação química positiva» http://www.cadtm.org/Eric-Toussaint-O-Forum-Social-em, publicado em 31 março de 2013.

A Primavera Árabe e os grandes movimentos de indignados, que começaram em 2011, não levaram à criação de uma nova estrutura internacional de luta, que é agora mais necessária do que nunca.

Durante a minha intervenção, a 19 de julho de 2016, em Génova, na conferência sobre a anulação das dívidas ilegítimas, assinalei brevemente as anulações de dívida que ocorreram ao longo dos últimos dois séculos. Sublinhei, por outro lado, como outros intervenientes o fizeram também, a tradição milenar de anulação de dívidas privadas, começando pelas anulações que aconteciam periodicamente na Mesopotâmia há mais de 3000 anos [5], passando pelo nascimento da democracia ateniense em Sólon e pela tradição bíblica. Insisti na importância de levar a cabo anulações de dívidas privadas ilegítimas, quer sejam as dívidas hipotecárias ilegítimas (lembrando que 12 milhões de famílias foram expulsas de suas casas pelos bancos nos Estados Unidos desde 2007, e mais de 300 000 famílias foram expulsas de suas casas em Espanha desde 2009), quer sejam as dívidas ilegítimas de estudantes (especialmente no Reino Unido e nos Estados Unidos), as dívidas ilegítimas de agricultores na Índia ou noutros locais, as dívidas ilegítimas relacionadas com o abuso de microcrédito em Marrocos e em muitos outros países. Insisti na obrigação de desobedecer aos credores quando fazem exigências ilegítimas e/ou incompatíveis com a salvaguarda dos direitos humanos. Voltei às lições dadas pela capitulação do governo de Alexis Tsipras em julho de 2015, devido à sua recusa em suspender o pagamento da dívida, à sua recusa em basear-se nos resultados da auditoria realizada pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega, à sua recusa em respeitar o resultado do referendo de 5 de julho de 2015, que ele mesmo tinha convocado. As lições para o futuro: a necessidade de um governo popular (ou de qualquer força de esquerda que pretenda participar num governo) resistir aos credores e desobedecer às instituições e aos tratados europeus, apoiar-se nas mobilizações populares e respeitar a vontade do povo. A necessidade de os e as de baixo manterem a máxima pressão sobre os governos considerados amigos para que estes não capitulem e ponham realmente em prática um autêntico programa alternativo.


Tradução : Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira


Notas

[1Os dois intervenientes do CADTM Internacional, a 19 de julho de 2016, foram Chiara Filoni e Eric Toussaint. De salientar que a ATTAC Itália aderiu ao CADTM internacional em abril de 2016, aquando do Encontro Mundial do CADTM em Tunes.

[2Saliente-se também que, devido às tensões com a Rússia, o G8 foi agora reduzido a G7. A última reunião realizou-se no Japão em maio de 2016. Ver : http://www.japan.go.jp/g7/summit/

[3Recorde-se que o CADTM nasceu em 1990, no âmbito da grande manifestação de Paris, em 1989, e apoiou ativamente o movimento neo-zapatista, deslocando-se regularmente ao México desde Julho de 1994 e coorganizando a manifestação anti-BM e anti-FMI de Outubro de 1994 em Madrid.

[5Ver Eric Toussaint, «A longa tradição de anulação de dívidas na Mesopotâmia e no Egito entre o 3º e o 1º milénios a. C.», http://www.cadtm.org/A-longa-tradicao-de-anulacao-de, publicado a 27 de agosto de 2012.

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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