2 de Março de 2020 por Helena Hirata , Rachel Gouveia , Daniel Groisman
A pesquisa de Helena Hirata é voltada para a área de Sociologia do Trabalho e do Gênero, tendo como temas específicos: gênero e globalização; divisão sexual do trabalho; relações de desemprego; polarização entre trabalho produtivo e improdutivo; análises do trabalho de cuidado em uma perspectiva comparada internacional. A entrevista foi realizada por Daniel Groisman [1] e Rachel Gouveia [2], após a roda de conversa «Formação, Trabalho e Cuidados: experiências e perspectivas» [3], ocorrida em setembro de 2018, no auditório da EPSJV/Fiocruz. O evento foi organizado pela Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (ACIERJ), junto com a Coordenação do Curso para Cuidadores de Pessoa Idosa da EPSJV/Fiocruz e a Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ).
Revista Trabalho, Educação e Saúde: Em 2006, a senhora concedeu uma entrevista para a Revista Trabalho, Educação e Saúde na qual abordava, entre outros assuntos, a relação entre os estudos de gênero e a sociologia do trabalho. Como a senhora identifica hoje o panorama dos estudos direcionados para o gênero e o trabalho no cenário brasileiro? E quais as principais tendências das jovens pesquisadoras na área?
Helena Hirata: As jovens pesquisadoras têm deixado de se interessar por pensar as relações entre gênero e trabalho para se concentrarem em outros temas. Diferentemente do que ocorria no período inicial, digamos, da sociologia do trabalho, dos anos 1950, 1960 e 1970, quando houve uma concentração do interesse das feministas sobre essa temática, o tema do gênero e trabalho deixou de ser um ponto importante na reflexão feminista e passou a estar ao lado de outros temas, como a sexualidade, o corpo e a arte. Infelizmente, tenho impressão de que a geração mais antiga de pesquisadoras como eu e Danièle Kergoat, não tivemos, digamos, sucessoras que continuassem a trabalhar essas questões, sobretudo na França, porque aqui no Brasil encontramos pesquisadoras dedica das a essa temática. Houve uma espécie de mudança, digamos, do eixo temático dos anos 2006 até hoje. No que chamamos de ’gender studies’ (estudos de gênero), dos Estados Unidos, da França ou dos demais países capitalistas ditos do centro, as questões que te têm sido mais estudadas não estão diretamente ligadas ao trabalho. Entretanto, a questão da divisão sexual do trabalho permanece com uma importância muito grande, sobretudo para as feministas materialistas ou para o materialismo feminista, que continua a considerar o trabalho como sendo central nessa análise do gênero.
Na América Latina hoje temos observado um crescimento das articulações entre pesquisadoras dos estudos de gênero e trabalho, em especial nas ciências sociais. Apesar dos estudos ainda estarem concentrados na sociologia, seria possível dizer que ampliamos as pesquisas e o debate para as outras áreas? Essa aproximação das pesquisadoras latino-americanas estaria ligada ao debate da interseccionalidade?
HH: Acho que sim. A questão da interseccionalidade ampliou muito o escopo das análises já feitas anteriormente, porque até então a questão do gênero estava relacionada principalmente ao trabalho e à questão da classe. Muitas vezes se falava da relação entre classe e gênero, mas a imbricação entre gênero, classe e raça, sob o nome de interseccionalidade é uma questão que hoje tem uma atualidade científica e social que não existia na época em que falávamos em gênero e trabalho, ou em classe e gênero, sem abarcar a questão da raça, que hoje em dia é considerada tão central e importante do ponto de vista das relações de dominação quanto a questão da classe. As pesquisas no Brasil tendem a mostrar que se pensamos só em gênero em relação às classes sociais ou ao trabalho, vamos ter um resultado que é muito diferente daquele obtido se consideramos também raça e gênero, raça e classe. As pesquisas que foram feitas por várias autoras, entre as quais Ângela Araújo (Unicamp), Maria Rosa Lombardi (Fundação Carlos Chagas) e Nadya Araújo Guimarães (USP), têm mostrado que se você olha do ponto de vista interseccional, vai ver que quem ganha mais, na realidade, são os homens brancos, em seguida, as mulheres brancas, os homens negros, e por último as mulheres negras. Se você não faz esse corte interseccional, você vai dizer que os homens ganham mais do que as mulheres. Mas não é tão simples, porque não é apenas que os homens ganham mais do que as mulheres. É que as mulheres negras, por exemplo, ganham menos do que as mulheres brancas, do que os homens brancos e do que os homens negros. E não é tão recente esse tipo de resultado, porque há pesquisas dos anos 1970 nos Estados Unidos, de pessoas como Frances M. Beal, que é uma socióloga, que mostraram que se você considera o ângulo raça, gênero e classe, você vai ver que as mulheres negras ganham menos e são muito mais exploradas na sociedade (Beal, 2005). Não é uma pesquisa recente, são trabalhos que atualmente estão sendo reeditados em função desse interesse que nós temos tido pela interseccionalidade.
A senhora tem desenvolvido estudos sobre as características do trabalho que se estrutura em torno do cuidado (care). Esse objeto traz peculiaridades às pesquisas?
HH: A interdisciplinaridade entre sociologia, demografia, ciência política e antropologia, entre outras disciplinas, começou a se desenvolver em função das pesquisas sobre cuidados; porque o cuidado, assim como o trabalho, é uma questão nitidamente interdisciplinar. Você precisa da confluência entre diferentes disciplinas para poder pensar a questão do cuidado. Hoje, há demógrafos, antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos e filósofos da questão da ética e da moral relacionada ao queer, que estão trabalhando conjuntamente para poder pensar melhor as questões envolvidas pelo trabalho do care. A questão do cuidado realmente trouxe essa preocupação interdisciplinar nas ciências sociais.
Em diversos países e particularmente no Brasil, assistimos a um fortalecimento do conservadorismo em relação aos costumes e valores familiares, muitas vezes combinados com um cenário de austeridade fiscal e retraimento das políticas voltadas para o bem-estar social. Frente a esse cenário, o que podemos pensar sobre as perspectivas de trabalho e de conformação a papeis de gênero para as mulheres para os próximos anos no Brasil?
HH: Tanto no Brasil quanto em países como a França, os Estados Unidos ou o Canadá, existe um contexto de desenvolvimento das políticas neoliberais, o que é bastante negativo, do ponto de vista da democracia e da situação política geral, e isso pode, realmente, ter consequências sobre o emprego e o trabalho feminino. O emprego feminino está numa situação bastante ruim, porque a maior parte dos empregos de tipo industrial tem diminuído bastante e o que existe, hoje em dia, é o crescimento muito grande dos empregos de serviço. São trabalhos mal remunerados, com pouco reconhecimento social, como o das professoras de escola primária, as vendedoras, as profissionais da rede de saúde, as cuidadoras, além de todo o contingente de trabalhadoras domésticas. Esse tipo de emprego que está se desenvolvendo, não é um emprego favorável às mulheres. Mas, ao mesmo tempo, existe o que denominamos a bipolarização do emprego feminino. Há um desenvolvimento dos empregos considerados femininos que são poucos valorizados socialmente, mas ao mesmo tempo, existem mulheres que estão numa situação bem melhor, do ponto de vista de salário e posição de trabalho e que assumem papeis de liderança ao nível das empresas, ocupando cargos de executivas, e que são mais reconhecidas, embora estejam competindo com os homens. Ao mesmo tempo só conseguem ter esse tipo de trabalho porque existem as mulheres que, no outro polo da bipolarização, fazem o trabalho doméstico e de cuidado para que essas mulheres consigam trabalhar fora, voltar tarde para casa, viajar devido às suas responsabilidades profissionais, deixando os filhos, o marido, a casa, a cargo das cuidadoras e demais trabalhadoras domésticas, que cuidam da casa e das pessoas da família. Então, é muito difícil ter uma resposta unívoca a essa questão. Primeiro, porque existem tendências contraditórias em relação à situação atual e, ao mesmo tempo, porque existe essa bipolarização, que torna as coisas mais complexas, fazendo com que haja, no interior do grupo de mulheres, dois grupos que têm interesses bastante divergentes. É um pouco o que a Danièle Kergoat [4] analisa quando fala desses grupos de mulheres que têm posições e interesses contraditórios, porque um precisa do outro para sobreviver, mas, ao mesmo tempo, há uma relação de exploração.
No campo da educação profissional em saúde, é consenso a percepção de que a qualificação profissional deva ser um direito de todo trabalhador. Entretanto, diversas ocupações possuem pouco ou, às vezes, nenhum acesso à formação inicial ou continuada, tal como ocorre com as cuidadoras de pessoa idosa ou da saúde mental, dentre outras. Há casos, inclusive, em que se identifica justificativa do saber leigo, que afirma a não profissionalização e a essencialização do trabalho do cuidado. Como a senhora enxerga essa questão?
HH: questão da qualificação profissional é um problema recorrente em relação às mulheres, porque as mulheres têm pouca chance de uma formação profissional que seja realmente boa, que realmente possa levar a um tipo de emprego qualificado e que ofereça uma perspectiva de progressão na carreira. Já existe um problema estrutural, basta ver a maneira como as modalidades de qualificação profissional se comportam diferentemente em relação aos homens e as mulheres. Os homens têm muito mais possibilidades de uma formação, inclusive do tipo tecnológico, o que sempre foi vedado às mulheres. Agora, em relação a questão dos cuidados, é um pouco diferente. Como se considera que o cuidado é alguma coisa que deve ser feita pelas mulheres, a formação, em princípio deveria ser disponibilizada também para as mulheres. Entretanto, não sei se pode se dizer que as mulheres são mais contempladas do que os homens. Na França, não existe uma quantidade significativa de serviços de formação oferecido para as mulheres nessa área de cuidados, por exemplo. O que existe é muito relacionado com o que, na França, chamam de associações, que não têm nada que ver com as associações no Brasil, onde são as próprias cuidadoras que se organizam. No caso das associações francesas, muitas vezes são empresas com profissionais, em geral homens e que não são cuidadores, e que fazem a intermediação, em função do emprego, entre a família e as cuidadoras, que são pagas seja por essas associações (sistema mandataire) ou diretamente pelas famílias (sistema prestataire). Não se pode dizer que essas associações façam uma formação sistemática das cuidadoras. Eles consideram que essas trabalhadoras, de alguma maneira, já têm essa formação, seja porque elas se formaram junto ao Estado, ou porque elas têm uma formação que a experiência já deu. Então, há uma diferença grande entre o Brasil e a França ou o Japão, pois nesses países o Estado se ocupa e se preocupa em dar essa formação. Existem centros de formação do Estado para o trabalho de cuidador, por exemplo. Não é o caso do Brasil, porque justamente os organismos estatais, as políticas públicas, não fornecem esse tipo de formação e não existe uma oferta de cursos profissionalizantes. Mas claro que aqui há uma diversidade muito grande de tipos de formação, o que na realidade acaba substituindo, de uma certa forma, uma oferta do Estado. Mas há outra diferença que mercê ser destacada: o Estado quando oferece, certifica; mas como no Brasil não existe o cuidador como profissão regulamentada pelo Estado, embora devesse existir, não dá para você dizer que dá para dar um diploma certificado pelo Ministério da Educação (MEC).
O diploma pode até ser certificado pelo MEC, mas a certificação, não tem um significado dentro da legislação, como um requisito para o exercício da ocupação de cuidador; o que é um problema, pois nesse caso a formação fica sendo algo opcional.
HH: O DEAVS (Diplôme d’Etat d’Auxiliaire de Vie Sociale) da França e o kaigo fukushihi do Japão, são diplomas fornecidos pelo governo, quer dizer, diploma do Ministério da Educação, de cada um dos respectivos países. [5]
Em relação à organização política, temos identificado um crescimento da mobilização por parte das cuidadoras, expresso principalmente através das suas associações. No Rio de Janeiro, temos a experiência da Acierj, que realiza anualmente um encontro estadual, e que conseguiu realizar em 2016 o primeiro encontro nacional de associações de cuidadores. Diante disso, como a senhora identifica o processo de politização dessas trabalhadoras através das suas associações, a luta pela regulamentação da profissão e a reivindicação por melhores condições de trabalho? No caso da França e do Japão, há alguma experiência próxima a essa?
HH: A França e o Japão estão muito atrasados. Nenhum dos dois países tem uma mobilização, um movimento social das empregadas domésticas ou das cuidadoras, que seja realmente consequente. No caso da França, a CGT, a Confederação Geral do Trabalho, que seria mais próximo da CUT em termos brasileiros, tem uma forma de organização das cuidadoras muito incipiente e também muito poucas cuidadoras se sindicalizam, inclusive porque uma parte das cuidadoras, sobretudo as cuidadoras domiciliares, não têm documentos, são ’sans papier’ e elas, portanto, não podem se sindicalizar porque são imigrantes que estão no país de forma ilegal. A CFDT tem um ’Sindicato dos assalariados do empregador particular da região parisiense’ (Ile de France), que sindicaliza as trabalhadoras domésticas, as babás e as cuidadoras de idosos (Cabais, 2013). A grande porcentagem de trabalhadoras informais e sem documentos dificulta muito uma mobilização das cuidadoras no caso da França. No caso do Japão, existe até um sindicato das cuidadoras, que é o ’sindicato das cuidadoras (care workers) de Toquio’ (Tahara, 2013). Mas também é um tipo de movimento e de organização muito periférica, com pouca visibilidade. Aqui no Brasil a mobilização é provavelmente importante, porque existe uma relação das cuidadoras com os sindicatos de trabalhadores domésticos, os quais existem há muito tempo e têm uma tradição de luta bastante grande no Brasil. Ao contrário de países como a França e o Japão onde praticamente não existem trabalhadoras domésticas, no Brasil um número muito grande de pessoas está nessa categoria. Também existe uma relação importante entre o movimento negro e o movimento das trabalhadoras domésticas e das cuidadoras, que são majoritariamente negras, porque o movimento negro tem realizado uma mobilização importante no Brasil. Louisa Acciari é uma pesquisadora franco-brasileira que fez um estudo com empregadas domésticas brasileiras, em geral negras, e o trabalho dela é sobre reivindicações, movimentos das trabalhadoras domésticas. Ela estudou o Sindicato de Campinas, o Sindicato de Empregadas Domésticas de São Paulo, a Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), entrevistou a Creuza Maria Oliveira, todas essas pessoas que estão na ponta da luta pelas reivindicações das trabalhadoras domésticas [6]. Então penso que existe de um lado um movimento que é mais forte, de outro lado, pesquisas sobre esses movimentos. As duas coisas não existem ou existem de forma marginal em países como a França ou o Japão.
O Brasil está recebendo um grande fluxo de imigrantes, em especial oriundos da América Latina e da África. Nos países de capitalismo avançado, se observa a importação de trabalhadoras para os serviços domésticos ou pessoais, funções que no Brasil ainda são muito ocupadas pelas mulheres brasileiras das classes mais baixas. Como a professora identifica esse fenômeno no Brasil?
HH: Vejo que cada vez mais estão chegando trabalhadoras, vindas da Bolívia, Peru, Paraguai e que têm entrado no emprego doméstico ou, algumas vezes, no emprego de cuidado, seja de crianças ou de idosos. Porém, ainda muito pouco nessas atividades. Entrevistei muitas pessoas, inclusive no sindicato das empregadas domésticas do município de São Paulo e não encontrei ninguém que fosse de origem latino-americana, não brasileira. E as trabalhadoras filipinas que também se diz que vieram cuidar de crianças brasileiras, é um fenômeno muito recente e insignificante em termos quantitativos. São algumas dezenas, no máximo, de trabalhadoras filipinas. Agora, tendencialmente é um fenômeno bastante importante. Tivemos também imigrantes de Moçambique, do Haiti, de outros países, que são homens em geral, e creio que existe realmente um movimento de imigração que tem mudado a situação brasileira. Desde o começo do século XX, quando vieram italianos, os japoneses e os turcos, o Brasil não tinha tantos contingentes de imigrantes. Mas agora é uma nova imigração. Tanto que os turcos vieram e fizeram uma colônia importante e hoje em dia há os sírios refugiados, e é uma nova imigração síria, que não tem nada que ver com a imigração antiga dos sírios que já estão mais do que instalados no Brasil. Em relação ao care, sempre nos referimos ao movimento global de migração de trabalhadoras para o care. A socióloga americana Arlie Russel Hochschild (2003), por exemplo, refere-se à migração de trabalhadoras das Filipinas, que saem do seu país para cuidar dos filhos dos americanos, gregos ou franceses e, ao mesmo tempo, deixam os seus próprios filhos a cargo de familiares ou de pessoas pagas para cuidarem deles. Então, essa trabalhadora acaba tendo o filho dela, longe, sem poder cuidar, e cuidando de uma outra criança, de maneira remunerada, uma criança que não tinha nada que ver com ela, mas que ela acaba se afeiçoando, inclusive por fenômeno de substituição e tendo uma relação importante sem ter relação de parentesco. Existe hoje toda uma análise sobre as redes globais de cuidado, que vem sendo feita por pesquisadoras como Rhacel Salazar Parreñas (2000), que demonstram como é importante para que o care possa se fazer, ter esse fluxo migratório das trabalhadoras do care do sul para o norte, da América Latina e do Leste Europeu para os Estados Unidos e para a Europa, e que consideram que este é um fenômeno imigratório muito importante hoje em dia no plano mundial.
O Brasil tem como marca de sua formação social as desigualdades de classe e as opressões de gênero e raça. Como conquista social, temos regulamentada a política de cotas que visa possibilitar a equidade nos acessos educacionais e também nos concursos públicos. Gostaria de saber sua opinião sobre a política de cotas e se ela contribui para uma mudança na divisão sexual e racial do trabalho.
HH: Certamente contribui, mas é preciso entender se estamos nos referindo a uma mudança estrutural ou mais de superfície na divisão social e sexual do trabalho, mas seguramente as cotas representam uma mudança. Se você tem uma política de cota racial, por exemplo, na universidade, e há pessoas que entram na universidade por conta dessa cota, isso modifica, no mínimo, a correlação de forças. Acho uma boa coisa existir cota racial, porque há injustiças que são cometidas, e uma política de cotas pode, na realidade, dar uma oportunidade mais justa para pessoas que têm menos chance, por toda uma série de razões, que não são necessariamente razões de competência, para poderem ingressar numa carreira docente numa universidade tradicional, que se não houvesse uma política de cotas, por exemplo, não iria votar pela admissão de um professor negro. Então sou a favor.
No Brasil temos inúmeras interfaces no trabalho do cuidado (care), não só na esfera doméstica, como também nas políticas públicas, políticas sociais e de saúde. Entretanto, não temos uma política ou um sistema específico que possa garantir o trabalho de cuidado como direito, ou seja, o care social. Ainda vivenciamos a experiência da centralidade da família prover o cuidado, recaindo diretamente sobre as mulheres. Entretanto, no Brasil, as famílias monoparentais, em sua maioria são chefiadas por mulheres negras e pobres, o que acaba sobrecarregando-as na provisão dos cuidados. Diante dessa realidade, como a senhora identifica a contribuição do care social?
HH: A contribuição do care social é muito importante e há pesquisadores na França, como é o caso do Claude Martin, que têm pensado as políticas públicas e as políticas sociais do care a partir do ângulo do care social (Martin, 2017). Esse autor relaciona as formas primárias de solidariedade (redes de solidariedade) com as formas socializadas e coletivas de solidariedade. É importante ressaltar esse aspecto, de análise do care via care social, e também a questão das políticas públicas do care tal como elas vêm sendo estudadas por esses pesquisadores, que vão analisar as dimensões sociais e questões relacionadas com o que é da ordem do público e da implementação das políticas públicas. Acho que no caso do Brasil, em particular, é muito importante que esses aspectos sejam levados em conta, pois o care social é, ainda, infelizmente, pouco relevante no país.
Na primeira pergunta da entrevista, a senhora respondeu que as novas gerações de pesquisadoras, com exceção das feministas materialistas, não vêm mais se interessando por estudar a questão do trabalho. Mas isso significaria que o problema de trabalho da mulher, estaria superado como problema social?
HH: Claro que não. É evidente que a questão do trabalho feminino é de uma total centralidade. Sobretudo se considerarmos que o trabalho doméstico faz parte do conceito de trabalho. É claro que há uma centralidade do trabalho, tanto doméstico quanto profissional, tanto assalariado quanto familiar, na questão do trabalho feminino, dada a sua relação com a independência, com a autonomia e também com a questão do trabalho feminino como fonte de emancipação. Certamente não dá para dizer que é uma questão superada. Os pesquisadores e pesquisadoras que não levam em conta o trabalho, na análise do lugar da mulher na sociedade têm, a meu ver, um ponto de vista equivocado.
Referências
ACCIARI, Louisa. Foi difícil, mas sempre falo que nós somos guerreiras: o movimento das trabalhadoras domésticas entre a marginalidade e o empoderamento. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 7, n. 11, p. 124-147, 2016.
BEAL, Frances M. Double jeopardy: to be black and female. In: BAMBARA, Toni C. The black woman, an anthology. New York: New American Library, 1970.
CABAIS OBRA, Zita. Organisation syndicale des assistantes de vie des personnes âgées à domicile. Actes du Colloque international Théories et pratiques du care: comparaisons internationales, MAGE, Paris, p.153-156, 2013.
GUIMARAES, Nadya A. ; HIRATA, Helena S.; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o trabalho de care no Brasil, França e Japão. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 151-180, 2011.
HIRATA, Helena S.; KERGOAT, Daniele. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, dez. 2007.
HOCHSCHILD, Arlie R. The commercialization of intimate life: notes from home and work. Berkeley : The University of California Press, 2003.
MARTIN, Claude. Comment le care s’impose-t-il à l’action publique? In: DAMAMME, Aurelie; HIRATA, Helena S.; MOLINIER, Pascale. (org.). Le travail entre public, privé et intime: comparaisons et enjeux internationaux du care. Paris, L’Harmattan, 2017. p. 195-206.
PARRENAS, Rhachel S. Migrant filipina domestic workers and the international division of reproductive labor. Gender & Society, v. 14, n. 4, p. 560-580, 2000.
PESTANA, Mauricio. Creuza Maria Oliveira: Profissão? doméstica, com muito orgulho. Revista Raça Brasil, Porto Alegre, 9 set. 2013. Disponível em: <http://themis.org.br/creuza-maria-o...> . Acesso em: 1 dez. 2018. [ Links ]
TAHARA, S. Détérioration du travail de «care» et organisation des travailleurs immigrés. Actes du Colloque international Théories et pratiques du care: comparaisons internationales, MAGE, Paris, p. 157-163, 2013.
[1] Graduado em Psicologia. Doutor em Serviço Social pela UFRJ. Professor e Pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - Fiocruz.
[2] Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela PUC/SP. Professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ
[3] Evento ocorrido em setembro de 2018, organizado pela Associação dos Cuidadores da Pessoa Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (ACIERJ,) pela Coordenação do Curso para Cuidadores de Pessoa Idosa da EPSJV/Fiocruz e pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ).
[4] Nota dos entrevistadores: no que diz respeito à divisão sexual do trabalho profissional e doméstico, pode-se destacar certa bipolarização que é resultado dos processos educacionais. As mulheres são mais instruídas do que os homens em todos os níveis de escolaridade, em diversos países. Entretanto, de um lado encontram-se mulheres formadas com nível superior e do outro lado mulheres que estão em setores tradicionalmente femininos (empregadas domésticas, auxiliares de enfermagem, professoras de ensino básico, prestadoras de serviços etc.).
[5] Nota dos entrevistadores: Em sua pesquisa comparativa sobre o processo de construção social do trabalho de care no Brasil, na França e no Japão, Guimarães et al. (2011) abordam semelhanças e diferenças nas características do mercado de trabalho de cuidados, políticas públicas para o setor e requisitos de formação profissional para os que nele atuam. No caso da França, o Diplôme d’Etat d’Auxiliaire de Vie Sociale (DEAVS) é a certificação exigida para os auxiliaires de vie sociale, termo que se assemelha ao ’cuidador’ no Brasil. No caso do Japão, as autoras identificam o kaigo fukushishi como a categoria de trabalhador equivalente ao cuidador, havendo diferentes níveis de certificação conferida pelo Estado para esses trabalhadores. No caso do Brasil, o acesso à ocupação não está ainda atrelado a uma formação específica. Nos três países a ocupação é exercida majoritariamente por mulheres e, a despeito das diferenças na organização sócio-cultural, as condições de trabalho e de escolaridade são marcadas pela precarização.
[6] Nota dos entrevistadores: para maiores informações, ver: ACCIARI (2016). Sobre Creuza Maria Oliveira, ver também: PESTANA (2013).
é diretora emérita de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), vinculada ao Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), equipe Genre, Travail, Mobilités (GTM) associado às Universidades de Paris 8-Saint-Denis e Paris 10-Nanterre.
Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela PUC/SP. Professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ
Graduado em Psicologia. Doutor em Serviço Social pela UFRJ. Professor e Pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - Fiocruz.