Intervenção do CADTM na ONU sobre a resolução das crises da dívida soberana

22 de Janeiro de 2019 por Eric Toussaint


Na sequência da Assembleia Geral das Nações Unidas, que adotou em 10 de setembro, em Nova Iorque, por larga maioria (136 votos a favor, 6 contra - Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Japão, Canadá e Israel - e 41 abstenções - os países da UE, exceto os dois países que votaram contra) uma resolução que estabelece nove princípios a seguir para se proceder à restruturação das dívidas dos estados [1], fui convidado pela Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), uma agência especializada da ONU, por ocasião da sua 62ª Assembleia Mundial, a 14 de setembro, em Genebra, a apresentar o ponto de vista do CADTM.



Publicamos pela primeira vez em português a tradução deste artigo escrito em setembro de 2015 por Eric Toussaint. Não foram feitas alterações ao texto. As propostas do CADTM apresentadas na sessão geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), na presença de delegados de todos os países membros da ONU, mantêm a atualidade.

No Palácio das Nações éramos cinco oradores: Vu Van Ninh, vice-primeiro-ministro do Vietname; Cristina Duarte, Ministra das Finanças de Cabo Verde; Carlos Bianco, embaixador da Argentina; Gary Dymski, professor da Universidade de Leeds, e eu próprio. A sala, quase cheia, estava ocupada por delegados das principais potências e de numerosos países.

O vice-primeiro-ministro vietnamita fez um discurso dúbio. Disse que o Vietname gere perfeitamente a sua dívida, e atrai investidores devido à sua seriedade. A ministra de Cabo Verde começou num tom idêntico, insistindo depois no facto de, nos últimos anos, o seu país ter resistido à pressão do FMI e ter evitado a ajuda financeira para levar a cabo uma política de relançamento económico. Explicou que, devido à recusa em aceitar as imposições do FMI, o seu país obteve bons resultados. Carlos Bianco, embaixador argentino nas Nações Unidas, foi o terceiro orador. Explicou a razão de a Argentina ter apelado às Nações Unidas para tentar definir um mecanismo multilateral de resolução das dívidas soberanas. E criticou a justiça dos Estados Unidos, que deu razão aos fundos abutre contra a Argentina.


Eu falei sobre os seguintes pontos:

A. As tentativas de definir um mecanismo multilateral para resolver crises de dívida soberana remontam aos anos trinta no sentido de dar resposta à crise generalizada de pagamento das dívidas. Recorde-se que a Alemanha suspendeu o pagamento da sua dívida soberana a partir de 1932 e foi seguida pela França, Bélgica, Itália, Reino Unido e 14 países latino-americanos. A Liga das Nações (que antecedeu as Nações Unidas) procurou em vão chegar a acordo sobre um mecanismo multilateral.


B. A crise da dívida nos anos oitenta
relançou o debate, mas foi sobretudo a suspensão do pagamento da dívida argentina, a partir de 2001, que colocou na agenda o tema da criação de um mecanismo multilateral para a resolução de crises de dívida soberana. O FMI tentou liderar o assunto, mas acabou por abandonar o jogo. Não foi encontrada nenhuma solução multilateral.


C. O balanço do FMI e do Banco Mundial nesta matéria é desastroso.
É inaceitável que a União Europeia e os Estados Unidos afirmem que o FMI é o organismo mais bem colocado (juntamente com o Clube de Paris) para desenvolver um mecanismo de resolução de crises de dívida soberana [2], quando este é juiz em causa própria por ser credor. Além disso, o FMI apresenta-se como um credor privilegiado. Por outras palavras, o FMI reivindica o direito de recusar participar na redução das dívidas, apesar de pedir, por vezes, a outros credores para aliviarem a dívida. A gestão pelo FMI da crise argentina de 2000-2001, e depois da crise grega desde 2010, é catastrófica. O mesmo poderia ser dito da sua atitude em relação à Tunísia e ao Egito, porque o FMI apoiou até à sua queda, em 2011, as ditaduras de Ben Ali e Mubarak. Por seu turno, a UE acaba de mostrar na crise grega, que recusa adoptar uma atitude positiva para chegar a uma solução. A UE tentou humilhar a Grécia e o seu governo, e impôs a queda do primeiro-ministro Alexis Tsipras, em julho de 2015. Trata-se duma violação muito grave da democracia.


D. O CADTM considera positivo que a Assembleia Geral da ONU discuta um mecanismo para a resolução multilateral de crises de dívida.
O CADTM opõe-se à posição adotada pela UE, pelos governos dos Estados Unidos, do Japão, do Canadá e de Israel. O CADTM denuncia também a justiça dos Estados Unidos, que favorece a política agressiva dos fundos abutre, nomeadamente contra a Argentina.


E. O CADTM considera que uma nova crise da dívida dos chamados países em desenvolvimento pode rebentar a todo o momento
porque os preços das matérias primas caíram muito. O que poderia desencadear uma crise brutal seria a decisão unilateral de aumentar as taxas de juro Juro Quantia paga em retribuição de um investimento ou um empréstimo. O juro é calculado em função do montante do capital investido ou emprestado, da duração da operação e de uma taxa acordada. , que a Reserva Federal dos Estados Unidos pode tomar nos próximos dias, semanas ou meses. Isso traz à memória o que aconteceu no início dos anos oitenta, quando a combinação do aumento das taxas de juro com a queda dos preços das receitas da exportação de matérias-primas desencadeou a crise da dívida do Terceiro Mundo.


F. Sobre a resolução aprovada a 10 de setembro
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, o CADTM propõe acrescentar três princípios aos 9 que foram adotados:

1. A obrigação de os Estados realizarem uma auditoria à dívida soberana com participação cidadã para identificar as dívidas ilegítimas, ilegais, insustentáveis e/ou odiosas.

2.O direito de os Estados devedores declararem unilateralmente uma moratória sobre o pagamento da dívida, se os credores não levarem em conta as suas reivindicações legítimas. Os Estados devedores devem poder tomar medidas de autodefesa contra os credores, no sentido de dar prioridade ao cumprimento das suas obrigações Obrigações Parte de um empréstimo emitido por uma sociedade ou uma coletividade pública. O detentor da obrigação, ou obrigacionista, tem direito a um juro* e ao reembolso do montante subscrito. Obrigações também podem serem negociadas no mercado secundário. de proteção dos direitos humanos.

3. A proibição de transferir dívidas do setor privado para o setor público.

De seguida, acrescentei as seguintes explicações:


G. No caso de os credores adotarem um comportamento abusivo
, atos soberanos unilaterais são perfeitamente compatíveis com o direito internacional e devem permitir aos Estados soberanos respeitarem as suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Do mesmo modo, se o pagamento da dívida se tornar insustentável, porque impede os Estados devedores de garantir aos seus cidadãos o exercício dos seus direitos fundamentais, os Estados podem suspender o pagamento da dívida invocando o estado de necessidade.

Como indica o relatório preliminar da Comissão para a Verdade sobre a Dívida Grega: "De acordo com o Artigo 25 do projeto de artigos da Comissão do Direito Internacional (CDI), o termo “necessidade” refere-se a casos excecionais em que a única maneira de um Estado proteger um interesse vital contra um perigo grave e iminente é suspender, momentaneamente, a execução de uma obrigação internacional cujo peso ou urgência é menor. No caso que nos ocupa, tendo em conta a crise económica e social da Grécia, as condições exigidas para invocar o estado de necessidade estão reunidas.O segundo argumento diz respeito ao direito de insolvência. Embora os credores se oponham geralmente a tal opção, uma vez que os priva do reembolso, a insolvência soberana é uma realidade nos assuntos internacionais, reconhecida tanto na teoria como na prática. Se um Estado tem o direito de se tornar insolvente, é claro que a insolvência declarada unilateralmente é uma condição que exclui a ilicitude do não cumprimento das obrigações internacionais do devedor, neste caso a obrigação de reembolsar uma dívida. [3]

Além disso, “de acordo com o direito internacional consuetudinário e os artigos 49 e seguintes do projeto de artigos sobre a responsabilidade do Estado relativa a atos internacionalmente ilícitos, adotado pela Comissão do Direito Internacional (CDI), um Estado lesado pode não executar uma obrigação internacional, que seria vinculativa em relação a outro Estado, se esse outro Estado se tiver tornado responsável por um ato internacionalmente ilícito. A violação do direito cometida pelo Estado lesado tem por objetivo fazer com que o Estado responsável respeite as suas obrigações. [4]


H. Na história recente, vários países agiram com sucesso de forma unilateral
com base no direito internacional e no direito interno.

O Equador em 2007-2008 realizou uma auditoria integral à sua dívida soberana e, com base no trabalho da comissão de auditoria em que participei como representante do CADTM, o governo do país suspendeu o pagamento de parte da dívida considerada ilegal e ilegítima ... e conseguiu impor aos detentores de títulos equatorianos, que expiravam em 2012 e 2030, a revenda desses títulos ao Estado equatoriano com uma redução de 70% do seu valor.

Em 2005-2006, a Noruega decidiu unilateralmente anular os seus créditos ao Equador, Peru, Egito, Jamaica e Serra Leoa. As autoridades norueguesas consideraram que essas dívidas não eram legítimas.

A Islândia a partir de 2008-2009 recusou unilateralmente pagar uma dívida ilegítima e ilegal, que o Reino Unido e os Países Baixos exigiam. Um tribunal arbitral acabou por dar-lhe razão.

A 1 de julho de 2015, a Bélgica adotou unilateralmente uma lei para combater os fundos abutre [5].

No final da minha apresentação, o representante argentino agradeceu-me calorosamente, não concordando necessariamente com as minhas opiniões. Por seu turno, o representante da Venezuela interveio a partir da assembleia apoiando a exposição do CADTM.


Conclusão:
É muito importante tornar público o debate que está a ser realizado no âmbito das Nações Unidas sobre os mecanismos a serem implementados para resolver as crises da dívida soberana. Os movimentos sociais e os partidos políticos devem pronunciar-se sobre o assunto. É fundamental mostrar que atos soberanos constituem uma resposta legítima face ao abuso dos credores.

Tradução: Maria da Liberdade


Notas

[2Ver o registro oficial do debate na AG da ONU na página 9 http://www.un.org/fr/documents/view_doc.asp?symbol=A/69/PV.102 Ver nomeadamente a declaração de Lucas, UE: “Consideramos que o Fundo Monetário Internacional (FMI) é a instituição adequada para acolher discussões a nível mundial sobre esta matéria e que os trabalhos sobre a reestruturação da dívida soberana devem permanecer no seio do FMI.”

Eric Toussaint

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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