Michel Warschawski: «Israel está dividido entre dois projetos sociais irreconciliáveis»

31 de Outubro por Michael Warschawski


Manifestação em Liège (Belgica) dia 28 de outubro 2023. Foto CADTM.

O jornalista e figura histórica do movimento pela paz em Israel defende nesta entrevista que o princípio de igualdade entre as comunidades de Israel e Palestina é essencial para que se possa pensar numa verdadeira coexistência.



Jornalista, figura da esquerda radical e do movimento pacifista em Israel, autor de diversas obras que denunciam a ocupação e a colonização da Palestina, Michel Warschawski lançou o seu último livro em 2018 com a editora Syllepse, intitulado «Israël: chronique d’une catastrophe annoncée... et peut-être évitable».

O dia 7 de outubro constituiu o maior massacre de judeus desde a Segunda Guerra Mundial. Como se sente perante o paradoxo de um Estado que foi criado para proporcionar um refúgio seguro aos judeus ameaçados em todo o mundo, mas que se mostrou incapaz de proteger e garantir a segurança dos seus cidadãos?

Há uma imagem muito pertinente do historiador judeu inglês Isaac Deutscher. Um fugitivo é perseguido por alguém que o ameaça com uma faca. Entra na primeira casa que aparece para procurar refúgio. Mas, em vez de dizer «Desculpem, aqui fora estou a arriscar a minha vida, vou ter de ficar convosco por uns tempos», começa logo a empurrar os donos da casa do hall de entrada para a sala, da sala para a cozinha e, finalmente, para a despensa. E, no final, diz: «Isto sempre foi meu».

Não foi a escolha do asilo ou do refúgio que foi feita, mas sim a escolha do regresso e a ideologia que lhe foi enxertada. Espero que hoje sejamos capazes de nos recompor e fazer a escolha do bom senso. Herdámos dos nossos antepassados a experiência legada por séculos de vida diaspórica, o que implica um certo bom senso e a capacidade de evitar comportamentos suicidas.

Algumas pessoas em Israel defendem a troca dos reféns detidos em Gaza pelo Hamas por prisioneiros palestinianos. Qual é a sua opinião sobre este assunto?

Espero que seja possível chegar a esse acordo. Infelizmente, estas vozes estão isoladas, enquanto a classe política e uma grande parte da opinião pública são movidas pela arrogância, o que não é bom. Yonatan Ziegen, filho da ativista pacifista Vivian Silver, desaparecida desde o ataque do Hamas a 7 de outubro, repete que a vingança não é uma estratégia.

Será que isto pode ser ouvido em Israel hoje?

Isso parece-me do mais elementar bom senso... Mas o país está no limite. Há muita gente que pensa assim, mas que, para já, se mantém em silêncio. Não só porque têm medo de falar, mas também porque têm de se justificar, explicar que isto não significa apoio ao Hamas, etc.

Muitos militantes do campo da paz em Israel dizem que nunca viveram uma situação tão catastrófica. Partilha deste sentimento?

Os que dizem isso ou são jovens ou têm a memória curta. Continuo a dizer que, deste ponto de vista, o pior já passou. Entre 1967 e a guerra do Yom Kippur, vivemos um período de total consenso nacional. As vozes discordantes eram ultra-minoritárias, consideradas loucas, e foi preciso esperar até 1973 para que os olhos das pessoas se abrissem e dissessem: «Havia alguma verdade naquilo que estavas a dizer». Mas é verdade, há muito tempo que não temos momentos de isolamento de vozes de «bom senso», nem sequer são vozes radicais.

Hoje em dia, essas vozes da razão parecem ser conduzidas, em primeiro lugar, pelas famílias e entes queridos dos reféns e dos massacres perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro.

Para eles, não se trata de slogans, mas sim do concreto, de realidade. Netanyahu está a falar de vingança. E não é o único: uma grande parte da sociedade israelita subscreve estas posturas de «vamos ganhar, vamos apanhá-los», mas não são eles que pagam. Embora, na minha opinião, Netanyahu vá acabar por pagar.

Poderá ele pagar o preço político por estes acontecimentos atrozes, pela espiral a que conduziram? Onde está a sua responsabilidade?

A responsabilidade é toda dele. Não se apercebeu, não deu ouvidos aos que o avisaram: «Vai explodir». Sempre foi arrogante e cego. E ele rodeou-se mal: o seu governo de extrema-direita é composto por criminosos e loucos. Este país não é mal gerido: já não é gerido.

Com este governo, a extrema-direita religiosa, os milenaristas e os colonos ganharam um peso desmesurado. Será que agora têm o poder em Israel?

Os colonos têm muito poder, o suficiente para orientar a política governamental. Dito isto, o poder em Israel está também nas mãos da indústria de alta tecnologia, cujos interesses não são os dos colonos. Do ponto de vista do capitalismo moderno, a política que os colonos representam não é boa para os negócios. Existe uma divisão no seio das forças dominantes em Israel, que estão a ser puxadas em direções políticas diferentes.

Poderá isto conduzir a mudanças políticas num futuro próximo?

Ninguém sabe. A acreditar nas sondagens e nos jornais, as intenções de voto no partido Likud de Benyamin Netanyahu caíram a pique. Dito isto, a opinião pública israelita é extremamente volátil; eu seria cauteloso em fazer previsões.

A opinião pública israelita, mesmo que esteja politicamente dividida, é esmagadoramente a favor da guerra em Gaza. Nestas condições, como é que as vozes da paz, as que apelam a uma solução política, podem ser ouvidas?

Sem sequer mencionar os colonos, há mais do que um Israel. Há Telavive, uma cidade, uma sociedade e uma cultura que vira as costas ao conflito, olha para o mar e vê-se como uma bolha europeia com um elevado nível de vida. E depois há um outro Israel, o das cidades pobres como Sderot, que está a sentir o aperto neste momento. É aí que está instalada a maior parte dos imigrantes do Norte de África, que são mais sensíveis à retórica nacionalista, que pensam que estão a recuperar a dignidade perdida - é bastante comum. É um fenómeno que acompanha Israel quase desde tempos imemoriais.

Será que esta sociedade israelita fraturada estaria disposta a pagar o preço das perdas pesadas de soldados que uma ofensiva terrestre em Gaza implicaria, e possivelmente o de uma conflagração regional?

Em Telavive, claramente que não. A prova está nos habitantes desta cidade que hoje abandonam o país. Querem claramente livrar-se de Netanyahu. Já vivemos este fenómeno, de forma limitada, em 1967, com a emigração de vários milhares de famílias abastadas que sentiam um grande medo da guerra que estava para vir - e que veio.

O ministro da Comunicação, Schlomo Karhi, ameaçou processar e confiscar os bens daqueles que, pelas suas declarações, são suspeitos de «fazer o jogo do inimigo». O deputado Ofer Cassif foi suspenso do Knesset devido à sua oposição à guerra em Gaza. Como analisa estes novos excessos autoritários?

Para dar outro exemplo, um advogado palestiniano acaba de ser excluído da Ordem dos Advogados sem qualquer procedimento, simplesmente por ter colocado uma bandeira palestiniana numa rede social.

Esta evolução não me surpreende, mas assusta-me: a deterioração é brutal e muito rápida. Não existe uma base comum de valores. Sempre houve uma profunda fratura na sociedade israelita, mas esta vai ainda mais longe. Perguntaram-me muitas vezes sobre os riscos de uma guerra civil: sempre disse que não era possível.

Hoje, tenho muito menos certezas. E isso não tem nada a ver com Gaza. Não há apenas dois Israéis sociológicos. Estamos perante dois projetos sociais irreconciliáveis. Com o governo mais fraco que alguma vez tivemos à frente do país, e Netanyahu incapaz de controlar os seus ministros, alguns dos quais são doidos varridos.

A este respeito, o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, tomou a iniciativa de distribuir cerca de 15.000 armas a colonos e civis em cidades mistas. Estará ele à procura de uma conflagração na Cisjordânia e mesmo em Israel?

Isto traduz o desejo de uma parte significativa da opinião pública e da classe política de completar a nakba: «Não acabámos o trabalho em 48-49, talvez o possamos fazer agora». Os palestinianos veem o que se passa em Gaza como uma vontade de expulsar uma parte da população do território para o Sinai...

É um projeto que está na mente de alguns dirigentes israelitas. Há um ou dois anos, ter-lhe-ia dito: «São sonhos de loucos», mas hoje, nada é de excluir.

Vou dizer-vos uma coisa muito dura, mas em que acredito absolutamente: se acordássemos uma manhã e descobríssemos que já não havia palestinianos, nem árabes, em Gaza, na Cisjordânia ou em Israel, sem que tivéssemos de fazer nada de errado, sem que tivéssemos de sujar as mãos para isso, o sentimento da maioria dos israelitas seria de alívio. Não é uma vontade, é um sonho: é pior. Nem sequer é um plano, é: «Oh, isso seria bom...».

Há também a situação do movimento pacifista israelita, que retirou a sua verdadeira força do seu carácter judaico-árabe. Tínhamos 20% da população connosco. Em 2000, esta frente desfez-se e os árabes deixaram de vir a Telavive manifestar-se. Os judeus eram os porta-vozes, os árabes eram a massa destas manifestações. Os palestinianos em Israel dizem-nos: «Se querem manifestar-se, venham ter connosco. Nós já não vamos manifestar-nos convosco». É uma derrota pesada.

Acha que os Estados Unidos estão dispostos a acompanhar o governo israelita até ao fim, à custa de uma enorme catástrofe humanitária e de uma conflagração regional que conduza a um confronto direto com o Irão?

Não sei. Na minha opinião, temos de prestar atenção à evolução no bom sentido de uma parte da comunidade judaica americana, que já não se identifica com Israel. A longo prazo, penso que este é um grande problema para Israel. Os Estados Unidos já não são um aliado incondicional. Dizem: «Apoiamo-los, mas temos uma palavra a dizer».

Em 2001, escreveu um livro intitulado Israel-Palestina: o desafio binacional. Continua a acreditar nesse horizonte?

É importante evitar um mal-entendido com que me deparo frequentemente. Nunca falei de uma «solução binacional», mas sim de um desafio. Aconteça o que acontecer, seja qual for o resultado político - um Estado, uma federação, dois Estados, que ninguém pode prever - há duas entidades, duas comunidades que vivem aqui.

Se quisermos uma solução pacífica, estas duas entidades terão de poder existir independentemente do quadro político. E isso exige igualdade, o que é o mais difícil, uma vez que o ponto de partida é uma situação de total desigualdade. Este princípio de igualdade é essencial para que se possa pensar numa verdadeira coexistência.

Quanto à sua forma... O Talmude diz: «Desde a destruição do Templo de Jerusalém, a profecia é dada às crianças e aos pobres de espírito». Eu já não sou uma criança e espero não ser um pobre de espírito... Por isso, abstenho-me de fazer profecias. Qual será a melhor solução, a longo prazo, não sei ao certo.

Em França, qualquer manifestação de solidariedade para com os palestinianos é equiparada a uma «apologia do terrorismo»...

A França é um país péssimo, com uma liderança péssima. Não sei que mais dizer, é o que sinto... Ouvi De Villepin com nostalgia: houve uma altura em que a França tinha algo a dizer ao mundo. Já não é o caso.


Entrevista de Benjamin König e Rosa Moussaoui, publicada a 23 de outubro no jornal L’Humanité. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net

Michael Warschawski

é um jornalista e militante da esquerda anticapitalista israelense, cofundador e presidente do Centro de Informação Alternativa de Jerusalém. Ele se define como pacifista e antissionista, e reivindica a substituição do Estado judeu por um Estado binacional.

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