No último 16 de junho, a Corte Suprema da Justiça dos EUA anunciou duas decisões altamente perigosas não só para a Argentina e seu povo, mas para todos aqueles que reivindicam a soberania e a primazia dos direitos humanos por sobre pretensões do grande capital. A apelação argentina foi rechaçada, deixando firmes as decisões judiciais que, desde 2012, ordenam a Argentina a pagar 100% do demandando por vários fundos conhecidos como “abutres” – encabeçados por NML Capital – e de pagá-lo antes de continuar pagando os demais bônus reestruturados em 2005 e 2010. Além disso, convalidou o pedido dos mesmos abutres para que a Argentina identifique os ativos que possui fora de seu próprio território, a fim de lhes facilitar novas ações em busca de cobrar o que os tribunais estadunidenses decidiram que a Argentina lhes deve.
Ambas decisões são tão repudiáveis como esperadas. Em um contexto mundial onde a vida humana, a vida da natureza, a soberania e os direitos dos povos e das nações estão cada vez mais fragilizados pelo acionar do grande capital – a financeirização e crise perpétua da economia capitalista mundial, o auge da economia-cassino e o recrudescimento de sua força exploradora e depredadora do trabalho humano e dos bens naturais – colocam em evidência a consolidação de uma institucionalidade jurídico-política que não reconhece limites de usura e a avareza do capital. Uma verdadeira arquitetura da impunidade que, começando com a própria Lei da Imunidade Soberana dos EUA que, em 1976, estabeleceu que a soberania das nações termina quando assim o determina o mercado que seguiu se construindo nos anos do auge neoliberal depois da assinatura de múltiplos tratados e acordos de livre comércio, de “cooperação econômica”, de proteção aos investimentos e de prorrogação das jurisdições nacionais em favor de tribunais estrangeiros e fóruns arbitrários como o CIADI.
O ataque destes fundos especulativos não é novo
Por mais que se encontre agora respaldado pelo tribunal máximo estadunidense, isso faz parte de um processo de endividamento cruel, ilegítimo e ilegal, cujos altos custos o povo argentino vem pagando há vários anos. Para não ir muito longe na história, os bônus, hoje em mãos destes abutres, remontam diretamente às dívidas odiosas acumuladas pela ditadura (76-83) e ao endividamento imposto durante os anos 90, sob a força extorsiva das mesmas e o apoio decidido do FMI, BM, Club Paris e outros. Uma dívida considerada fraudulenta e arbitrária em sede judicial (Caso Olmos, Causa N 14.467, Juizado Nacional no Criminal e Correcional Federal N 2 da Capital Federal, em 13 de julho de 2000) e que se encontra igualmente denunciada em outras causas ainda abertas em tribunais argentinos.
30.000 desaparecidas e desaparecidos, a entrega do patrimônio público, os sucessivos ajustes e o colapso econômico de 2001 com suas horrendas sequelas em termos de empobrecimento, desemprego, exclusão e reordenamento da economia, aprofundamento da exploração e extrativismo a serviço do pagamento de uma dívida que, por sua provada ilicitude, são apenas exemplos do custo humano, social, econômico e ecológico que só continuará crescendo se os problemas não forem encarados a fundo.
Até agora, o governo argentino tentou “ganhar” o jogo da dívida jogando com as mesmas regras estabelecidas por seus pretendidos credores. Colocou como objetivo o retorno aos mercados internacionais de capitais para se endividar novamente e continuar se submetendo à dependência e dominação desses mesmos capitais, apostando num capitalismo “mais humano” que, todavia, não deixa de ratificar que sua natureza é exploradora e depredadora. Os resultados estão à vista: mais de USD 400 bilhões pagos desde o fim da ditadura em 1983 e mais de USD 174 bilhões na última década, em conceito de uma dívida que no mesmo período aumentou de USD 43 bilhões para mais de USD 240 bilhões. O fato de que a moratória parcial do pagamento sobre a dívida, depois do colapso de 2001, permitiu a economia argentina iniciar um processo de recuperação, indica que existem alternativas para o pagamento perpétuo do que nem sequer se deve.
Não permitamos que os abutres continuem voando!
Chamamos aos povos, aos movimentos e organizações, governos e instituições da integração, sobretudo de nossa América e do Sul inteiro, a unir forças para colocar fim a esta investida e a toda possibilidade que os abutres de qualquer tipo sigam vivendo do que é nosso:
Os abutres não seguirão voando tão facilmente sobre nós se desde o nosso país não lhes seja permitido passar. Juntos podemos avançar na construção de novas realidades de vida e de bem viver, logrando também pôr fim à impunidade com que opera o sistema econômico e financeiro internacional e que os responsáveis reparem os crimes cometidos, pagando suas dívidas conosco.
NÃO devemos, NÃO pagamos! Somos os povos e os credores!
América Latina e Caribe, julho 2014
Jubileo Sur/Américas.
Tradução: Ana Rogéria, Jubileu Sul Brasil.
III Assembléia regional do Jubileu Sul Américas
Declaração de Manágua. “Pela Reparação das Dívidas e a Construção de Alternativas”30 de Junho de 2010, por